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Não, o Brasil não é fruto de estupro

Elevação da Cruz em Porto Seguro (1879). (Foto: Halley Pacheco de Oliveira/Wikimedia Commons)

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Quase peço desculpas ao leitor por falar da bolha dos bem-pensantes. Mas como é gente influente que não só inventa bobagens como as impõe ao cidadão comum, devo contar qual é a novidade deles: nós, brasileiros, somos resultado de séculos de estupro.

Isso porque saiu um estudo da USP mostrando que três quartos dos brasileiros têm o cromossomo Y europeu, e só 14% têm mitocôndrias europeias. O Y é passado de pai pra filho; logo, o pai do pai do pai do seu pai – lá até 1.500 – tem 3 chances em 4 de ser um branco. Já as mitocôndrias são um pedaço da célula herdado da mãe da mãe da mãe. As mitocôndrias campeãs são as africanas, com 36%, e em segundo lugar vêm as americanas, com 34%.

Os divulgadores de ciência ficaram estarrecidos ao descobrirem que – rufam os tambores – o Brasil se fez com o português se misturando com mulheres dos trópicos. Quem poderia imaginar! Os progressistas deram então um salto acrobático para a conclusão de que este país é resultado de estupro em massa.

Pecados originais e santos de nascença

Se fosse, e daí? Matar-nos-íamos todos? O propósito deles é comprarmos indulgências na mão desses sacerdotes ateus que falam em nome da Nossa Senhora da Ciência. Enquanto os cristãos afirmam ser toda a humanidade pecadora de nascença, a religião ateia dos progressistas divide a humanidade em categorias hierárquicas que já nascem com um status moral.

Ninguém escolhe nascer branco ou mestiço, nem fruto de estupro. Mas a religião progressista decidiu que a brancura é o signo infame da descendência de Jafé, que trocou de lugar com Cam. Decretou que Adão, espúrio, escolheu comer a maçã sozinho, e fez uma angelical Eva engoli-la na marra. E pontificou que o sexo entre homem e mulher é pecado espúrio, ao contrário do sexo entre iguais.

Mas se o cristão tinha ritos purificadores e esperança de ir para o céu, nessa religião ateia, não há: ou bem se é santo de nascença, ou bem se nasce destinado ao inferno. Neste vale de lágrimas, os que carregam a chaga da brancura e da virilidade devem prestar deferência abnegada aos que nasceram já santos.

Tenho dificuldade, porém, em sentir o paraíso desses santos: que tipo de mulher, negro ou gay se sentiria pleno e realizado com uma romaria de psolistas pedindo desculpas por ser homem, branco, hétero?

Os porta-vozes da Ciência são sacerdotes embusteiros que se fingem de cientistas. Assim, quando apareceu esse estudo dos cromossomos e mitocôndrias, eles não se desfizeram da crença de que o Brasil se divide entre brancos e pretos. Em vez disso, aproveitaram para apontar mais um pecado irredimível em nós: brasileiros são fruto de estupro.

Japoneses estupradores

A pirueta pseudocientífica foi tão apressada, que nem reparou na totalidade de categorias do estudo. Vejamos os dados. Empatadas com as mitocôndrias europeias, estão as eurasiáticas, seguidas pelo lanterna, os 2% de “leste/sul-asiáticos”.

Como essas mitocôndrias eurasiáticas todas vieram parar no Brasil? Não é informado; ninguém reparou nelas ao repercutir o estudo. Da região da Sibéria e do Cáucaso não vieram muitos imigrantes para o Brasil. Das duas, pelo menos uma: ou esse DNA veio da Ásia através do Alasca, com os ancestrais dos índios; ou veio pela Europa, com os ancestrais dos europeus.

Neste caso, podem descender de mulheres capturadas no Cáucaso pelos otomanos e vendidas pelos três continentes velhos. Se for este o caso, salta para 28 a porcentagem de mitocôndrias dos brancos na composição do genoma brasileiro.

As lanternas mitocondriais, “leste/sul-asiáticos”, só podem ser as japonesas, uma vez que não tivemos expressiva imigração de outros povos do leste e do sul da Ásia. Os campeões incontestes do Y são os europeus, com 75%, seguidos pelos africanos (14,5%), japoneses (5,1%), os misteriosos eurasiáticos (4,9%) e os índios (0,5%). Ora, não são só os europeus que têm muito mais Y do que mitocôndrias. Os japoneses também! Eles têm 2,45 vezes mais Y que mitocôndrias. Se essa discrepância implica estupro, então japonês é estuprador, e a imigração japonesa foi na verdade a invasão de uma horda nipônica a agarrar brasileiras.

É mais racional agarrar um terço do que crer em divulgadores científicos.

Mulher não engravida de mendigo

Já que os progressistas abandonaram o conhecimento escolar de história do Brasil, teriam de olhar para a coluna asiática do gráfico que eles tanto divulgaram, e concluir que esse tipo de diferença não pode advir sempre de uma horda guerreira estupradora.

Que pode, então, explicar o sucesso do Y japonês? Gostem as feministas ou não, o normal é os maridos terem condições financeiras melhores do que as mulheres.

Isso não se deve a Deus baixar do céu e decretar aos recém-casados: “A partir de agora tu ganharás mais que ela, e tu menos que ele”, acabando assim com uma igualdade prévia entre os sexos. Não. As mulheres escolhem homens com condições sociais melhores do que as suas, e os homens normalmente não acham isso ruim, nem veem com bons olhos a ideia de ser bancado pela esposa.

Dado o sucesso da colônia japonesa no Brasil, é razoável supor que os filhos homens dos japoneses tivessem maiores chances com as mulheres filhas e netas de brasileiros, enquanto que as filhas dos japoneses, com seu padrão elevado, terão uma oferta menor de homens no Brasil. Explicar essa discrepância só por estupro é delírio.

De volta à escola

Mas o conhecimento escolar de história do Brasil deveria impedir que os devotos de Nossa Senhora da Ciência se boquiabrissem com a pesquisa. Afinal, a história de Caramuru e Paraguaçu é tão conhecida que virou filme. (Camila Pitanga, antes de resolver que era negra, servia para interpretar índia.)

O romance histórico de Ana Miranda também ganhou as grandes telas com Desmundo, que cria a história de uma das órfãs enviadas de Portugal para o Brasil a fim de sanar a falta de mulheres brancas.

Ela reproduz, como epígrafe do romance, a carta verdadeira do Padre Manoel da Nóbrega a El-Rei em 1552: “Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra há de mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos pecados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas órfãs […], porque são tão desejadas as mulheres brancas, cá, que quaisquer farão bem à terra”.

Que grande pecado seria esse? Poligamia! Os tupinambás eram poligâmicos, e os portugueses foram na onda. Mas tinha casamento cristão com índia.

Caramuru e Paraguaçu, que se juntaram antes de D. João III decidir criar as capitanias, tiveram de ir à França para casar na igreja. Uma filha do casal, porém, teve o primeiro casamento cristão celebrado no Brasil, e o marido era um europeu.

Caramuru provavelmente foi exceção no século XVI, no que concerne ao casamento cristão. O poligâmico mais famoso é João Ramalho, o português fundador de São Paulo. Ele tinha dezenas de esposas, e vivia nu como um cacique no coração da Mata Atlântica.

Sua descendência são os bandeirantes, mamelucos que sequer falavam português e viviam na mata, guerreando com índios e procurando ouro. Levavam no sangue o Y de João Ramalho, e as mitocôndrias de dezenas de índias.

Será possível que um único homem, vindo de sociedade e clima tão diferentes, teria condição de se embrenhar na selva tropical, sobreviver nela e ainda domar tribos de índios canibais armados de flechas e tacapes?

Ora, a antropologia é uma ciência que serve para compreender a História. Jorge Caldeira redigiu um livro para público amplo, intitulado História da Riqueza no Brasil, que sintetiza conhecimentos históricos e antropológicos na explicação do início brasileiro.

Os caciques tupinambás mantinham as filhas consigo e tinham por meta trazer os melhores genros para a taba. Os filhos homens é que iam embora ao casar. Os europeus eram genros cobiçadíssimos, porque traziam consigo uma coisa muito importante para o desenvolvimento da humanidade, que os índios desconheciam: o ferro.

Assim, um modelo em vigência por essas matas era o do genro europeu provendo o intercâmbio entre a oferta de ferro e a oferta de madeira e macacos. Os tupinambás chegaram à idade do ferro pelo comércio!

Depois de muito prosperar, o genro era como que promovido a cacique. Nessa ocasião, os caciques que queriam manter boas relações consigo lhe ofertavam uma filha, o que era o signo de uma aliança política tribal. E por isso João Ramalho tinha trocentas esposas.

Imagine-se agora a quantidade de filhos que João Ramalho e vários outros portugueses portadores de ferro não deixaram espalhados entre o Paraná e o Ceará. Agora lembremos que a comunicação pelo interior do país se fazia com tropas de burros, sendo corriqueiro os tropeiros rodarem, no mínimo, entre Minas Gerais e São Paulo.

E agora imaginemos a facilidade com que um homem não poderia manter famílias distintas em pontos do país. E lá vai o cromossomo Y de João Ramalho, que vai persistir mesmo após gerações de tropeiros se misturando com negras e caboclas, até resultar num pretinho brasileiro do século XXI, de Y europeu. Por outro lado, será dificílimo, se não impossível, uma mulher bígama ter filhos e engabelar dois maridos.

Não é de admirar que o Y negro tenha tido um desempenho inferior, uma vez que os africanos chegaram ao Brasil como mercadoria. Ingressando em posição tão desfavorável à ascensão social, não admira que aconteça com seu Y o oposto do que aconteceu com o dos japoneses.

É razoável supor que a maioria dos africanos não tenha deixado descendência entre nós: em geral, eram do sexo masculino e tinham vida breve, consumida no canavial.

A pequena proporção de mulheres, que vinham para ser criadas ou concubinas, estava obviamente vulnerável a sofrer estupros, mas não é sensato resumir cinco séculos de presença negra a escravas estupradas.

Sem África, não há samba nem Machado de Assis. De resto, note-se que ainda assim o Y dos negros ficou muito à frente do dos índios, sendo-lhes 30 vezes superior. Mesmo que os caciques tupinambás sejam tataravôs de muitos mandachuvas brasileiros, sua influência ficou gravada não no Y, senão nas mitocôndrias.

A carta de Caminha

Se pudessem escolher, os progressistas teriam suas genealogias compostas por Gretas Thunbergs fazendo ciranda em florestas geladas, sem uma gota de miscigenação e a milhares de quilômetros da América. Se escuros, gostariam de ser negros puros como aqueles fotografados por Leni Riefenstahl.

Têm uma mania de pureza: simpatizam com naturebices livres da técnica, veem com maus olhos a comida de origem animal e fazem mistura equivaler a estupro. Se tivessem poder, não duvido que proibissem os portadores de cromossomo Y europeu de se reproduzir, e fixassem cotas cromossômicas para retificar o país.

Se eu pudesse escolher as minhas origens, não pensaria em nada mais bonito do que a Carta de Caminha a El-Rei. Caminha estava com Cabral em 1500 quando foram achadas estas terras em que estamos. Num dia de Páscoa, após toparem com ramos de rabos-de-asno e aves chamadas fura-buxos, e eles avistaram um monte.

Mas eles não puderam se demorar, porque apareceram homens pardos, nus, apontando flechas. Até aí, temos o normal da humanidade: tribos não recebem estranhos amigavelmente. Os lusos tentaram conversar, mas não deu certo.

Navegando mais e mais, conseguiram começar a se entender com aquela gente. Caminha ficou fascinado: descrevia a boa saúde, a beleza, os adornos de pena, as pinturas corporais, os beiços furados, as genitálias depiladas. Quais as chances de um europeu saído da Idade Média se encantar assim com gente tão diferente?

Primeiro, os índios eram desconfiados e cuspiam a refeição oferecida. O processo avançou quando os portugueses avistaram uma festa: “Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita.”

“E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.”

Ao fim do processo, que durou dias, todos estavam “misturados”. Os índios afinal ficaram encantados com o projeto dos portugueses de erguer uma cruz, e os ajudaram, maravilhados com o ferro. Até participaram do começo da missa, mas saíram quando o sol esquentou.

Nesta terra, como contava Caminha ao rei, não havia nenhuma riqueza material significativa. Trocando em miúdos, aqui só mato e canibal da pedra lascada. Recomendava que a Coroa marcasse presença por causa dos humanos aqui presentes. Para isso, deixaram dois degredados a fim de aprenderem a língua, e ficaram ainda mais dois marinheiros, que fugiram para cá.

Não é de surpreender que os incas e os espanhóis não tenham dado bola para este mato. E ainda assim o português veio, ficou, casou na Igreja com canibais, e cá estamos hoje. Quantos países terão começado a sua história com uma festa, e quantos povos tão diferentes terão começado a se entender espontaneamente numa festa?

O México começou com guerra. Os EUA, como uma migração de ingleses. O começo do Brasil foi este: tão improvável, tão insólito, tão bonito, que mais parece um milagre. Vá lá que é cheio de defeitos, mas assim são as coisas humanas.

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