“Podemos perceber tal doença na nossa Suprema Corte, talvez a última barreira democrática contra a infestação dos insetos da corrupção sistêmica”| Foto: Dorivan MarinhoSCO/STF

As sociedades ocidentais se basearam num conceito muito simples, porém de fundamental importância, que permitiu a elas a ordem necessária para viabilizar avanços de todos os tipos, desde avanços tecnológicos e filosóficos, morais e sociais, jurídicos e artísticos. Tal conceito é: “o crime não compensa”. À primeira vista tal conceito não parece tão primordial assim, apenas uma frase feita. Mas reflitamos um momento sobre tal sentença. 

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Nenhum pequeno grupo se sustenta — para não precisar nos elevar às grandes sociedades organizadas — se sua organização permitir transgressões às regras primordiais do coletivo. Ainda que tais leis sejam despóticas ou imorais, a manutenção de uma certa ordem balizada por regras gerais é o mínimo exigido para que se mantenha uma comunidade mais ou menos unida; seja unida para e pelo bem (liberdade), seja para e pelo mal (despotismo). Percebemos, por exemplo, ao estudar as sociedades primitivas, que um dos primeiros passos após a aglutinação dos indivíduos, formando assim uma nova coletividade, era a eleição — ou a tomada de poder — de uma ou mais pessoas que gestarão, em seguida, as regras (“constituição”) daquela nova agremiação social. 

Toda ordem que se segue a este ato fundante, depende estreitamente da aceitação — por via livre e consciente, ou por medo e repressão — das regras postas pelo soberano ou pelo conselho dos sábios. As transgressões dessas regras de abrangência geral, significam, pois, a quebra da paz social e, por consequência, o estorvo ou a lesão da comunidade como um todo.

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Como se formam as leis de uma sociedade — os embates dialéticos entre lei natural e leis positivas

Tais leis, de maneira mais ou menos assertiva, se baseiam nas ditas leis naturais (mais tarde denominadas de Direitos Naturais) não escritas, que basicamente se percebe através de um movimento natural de autoconsciência de cada indivíduo, independentemente da cultura inserida ou dos hábitos singulares praticados. Não é preciso criar leis para dizer que a vida possui um valor irrevogável em si mesma; que a liberdade de consciência e propriedade são necessárias para o mínimo de civilidade; que a autodefesa é um valor tão arraigado quanto instintivo, que atentar contra ele torna-se algo antinatural e ditatorial. 

As regras, quando retamente pautadas nessas leis naturais, são imprescindíveis para a manutenção ordeira da sociedade. O sistema jurídico, ético, social e até mesmo eclesial, dependem dessa relação entre os princípios gerais abstratos e o pragmatismo das leis escritas — relação dialética que tem sua origem na teoria ética de Platão. O ato de macular tais regras pragmáticas acarreta o que costumeiramente denominamos de “crime”. 

Como surge um governo despótico e um governo democrático

De maneira primeva: um governo e suas leis se tornam mais ou menos despóticos, na medida em que se aproximam ou se afastam das leis naturais. Quanto mais afinadas às leis naturais, mais livres são àqueles governos e princípios; quanto mais distantes dessas leis naturais, mais tendentes ou realmente despóticos são tais governos e suas regras. Sendo assim, não há como comprar — adequadamente —, por exemplo, o modo medieval de governo baseado na monarquia absoluta, e o governo moderno baseado — geralmente — nas livres eleições.

Ainda que na Idade Média as leis naturais encontrassem amplo debate, se tornando regra fundante, tal conhecimento não encontrou paralelo na aplicação política; enquanto que na modernidade, onde as leis naturais são geralmente dispensadas, os governos tentam aplicar a democracia política aberta, porém sem bases sólidas. O que se espera de uma sociedade livre é o livre casamento entre a compreensão filosófica e aplicação jurídica das leis naturais, numa sociedade organizada politicamente sob o trato democrático-eletivo. Assim sendo, as bases que sustentam um agir moral individual, refletem adequadamente num pragmatismo político de mesmo teor ético, só que agora, coletivo. 

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O Ocidente só chegou a este patamar pois havia uma cultura “do crime não compensa” que permeava a mentalidade social de uma maneira geral — ainda que na aplicação política, por vezes, não encontrasse paralelo. Essa percepção cultural garantiu à posteridade o adubo moral para que o terreno do Ocidente produzisse uma evolução técnica e social nunca antes vista na história. Somente uma cultura guiada por princípios virtuosos pode garantir à posteridade avanços reais; uma sociedade que duvida de que a corrupção seja um mal em si — justificando corruptos, ou ideias corruptas em troca de benesses —, deixa de saber para onde caminha. E lembremos, para quem é cego, o caminho do paraíso é semelhante ao do inferno. 

Direito Natural x Direito Positivo

Entretanto, como já alertei em outro ensaio na Gazeta do Povo, há uma ânsia pela revogação de todos aqueles princípios que estruturam o próprio Ocidente. Sendo eles tratados como antiquados, preconceituosos e até mesmo antinaturais.

E aqui é bom que se diga, os princípios basilares arrogados no Direito Natural: valor inegociável da vida, liberdade de crença, culto, expressão, propriedade e autodefesa, não estão apoiados pura e simplesmente na legalidade jurídica.

Primeiramente pois tais Direitos Naturais são anteriores à normatização formal por via jurídico-estatal; segundo porque esses Direitos têm caráter universal, não sendo passível de mudança ou revogação, apenas de aceitação ou não-aceitação.

O antissemitismo nacional-socialista, por exemplo, tinha aporte jurídico e justificações pseudofilosóficas, e nem por isso significava que ele era justo e moral frente ao Direito Natural. Muito menos poderia ser o antissemitismo considerado um dos Direitos Naturais simplesmente porque foi normatizado por uma Câmara e aplicado por um juiz. Daí fazemos a distinção de Direito Natural de Direito Positivo. Porque nem sempre, apesar de se esperar que sim, o segundo se baseia no primeiro.  

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Brasil e a institucionalização do crime

O que está acontecendo no Brasil se trata, pois, da institucionalização da injustiça. A burla começa a ser vista como moralidade, e a ética passa a ser instrumento de perseguição dos santos. Percebemos isto através de casos concretos que nos faz, por hora, sair do terreno das abstrações jurídico-filosóficas. Por exemplo, é possível ver a olho nu a verdadeira força-tarefa política que se levanta contra a Lava-Jato, assim como toda e quaisquer leis que pretendem realmente cessar a sangria da corrupção sistêmica nacional. 

Aqui citemos alguns casos recentes para ilustrar: a mutilação das imprescindíveis, e cuidadosamente construídas, 10 medidas contra a corrupção; as recorrentes mudanças de chefes que lideravam a Lava-Jato em diversas instituições, recentemente o Presidente Temer — que também é investigado por corrupção — trocou, sem justificativa razoável, o chefe da Polícia Federal; por fim, a construção da retórica de que a Lava-Jato não passa de uma conspiração para perseguir homens e mulheres de “santidade política ilibada” — tal paranoia alcança os patamares de artigos escritos em mídias e universidades, teses doutorais, jargões populares, além de uma constante e masturbatória discussão acadêmica acerca desses construtos ideológicos esquizofrênicos. 

Quando vemos indivíduos se juntando às massas para defender um corrupto confesso, quando a análise factual da realidade e todas as comprovações documentais e lógicas não te levam a constatar a obviedade que se impõe, e por fim esses indivíduos acabam por endossar o culto do deus político — aquele que não é mais humano, mas uma ideia que em todos habitam —; nesse instante mostramos que há algo acima do bem e do mal, da justiça, da moralidade e da legalidade jurídica, isto é: a ideologia. A corrupção deixa de ser uma mácula no Estado de direito e um crime contra o povo, e passa a ser um puxadinho institucional do país; algo como que os ministérios petistas dos últimos governos. 

A corrupção de toga e os mais iguais

E tal cancro é tão profundo que podemos perceber tal doença na nossa Suprema Corte, talvez a última barreira democrática contra a infestação dos insetos da corrupção sistêmica. Os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, por exemplo, não escondem mais suas militâncias pró Lula. Tentam encenar de maneira muito despudorada uma espécie de análise e reinterpretação jurídica, o que não passa de uma apologética muito bem construída para um fim determinado, fim esse que todos nós sabemos qual é. 

A maneira com que atacaram Rosa Weber após ela manter a decisão contra o habeas corpus de Lula, por exemplo, foi a face do desespero de alguém que vê seu pupilo sendo condenado. Marco Aurélio, o mais militante de todos os ministros, tentou até o último segundo manter a liberdade do ex-presidente, passava até mesmo certa consternação e tristeza ao serem negadas as suas investidas de advogado do “paciente”. 

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A mensagem que se esconde por trás de toda esta construção retórica, é a afirmativa de que há pessoas, partidos e ideologias que estão acima de qualquer regramento legal. A eles nem mesmo o Direito Natural se aplica. A lógica que sustém tal panorama político-ideológico não é de uma moral que a todos cortam de maneira uniforme. Ou seja, a ideia de que a mesma regra que vale para mim, vale também para outros. 

E tal cenário de desigualdade jurídica acontece, hipocritamente, através daqueles que defendem uma suposta igualdade social; no entanto, na hora de serem testados na coerência de suas arguições, se escondem atrás de uma bastilha de fanáticos, foros privilegiados e construções míticas de perseguições internacionais.

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O jeitinho brasileiro não é desculpa para ser corrupto

É verdade que nossa cultura nacional tem arraigada em si o vergonhoso “jeitinho brasileiro” como sendo o seu mantra de esperteza, afinal, “malandro é malandro e mané é mané”. No entanto, a sanidade social tem que transpor os meros jargões populares através de indivíduos que empossam a ética como modo de vida e não como discurso hipócrita; os construtos anômalos deste senso comum que se coaduna com o espírito de banditismo sob a maquiagem de boa “sagacidade” bandoleira, não é desculpa para corrupção, muito menos bálsamo para os parvos.

Ainda que o corpo esteja doente, o sistema imunológico não para de trabalhar em prol da recuperação da sua totalidade. Ou seja, as instituições encarregadas de reafirmar a legalidade e os princípios em que se assentam a ética social desse país, não devem se deixar levar por um éter cultural venenoso e nem reafirmar os vícios vadios da “maioria” — supondo que seja a maioria. 

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Não há sociedade organizada onde os indivíduos duvidam que levar uma vida justa é um princípio inigualável e irrevogável. E grande parte dessa sensação de que o crime é algo compensatório, se dá também pela má aplicação, ausência de punição, e negligência em evitar tais burlas. Mas não só por isso.

Um analgésico para o câncer 

Se uma nação deixa de acreditar na distinção entre o certo e o errado, moral e imoral, entre o corrupto e o não-corrupto; qualquer ação de cunho punitivo, pura e simplesmente aplicada, não terá outro efeito senão tratar os sintomas enquanto deixa a doença crescer. Vejo muitos candidatos à presidência apregoando muitas ideias aparentemente sensacionais no combate à corrupção, no entanto, o combate a corrupção começa na identificação das raízes do problema e não meramente em aplicações jurídicas unilaterais. Pessoas incapazes de entender a origem do problema, são também incapazes de propor curas eficazes. 

No Japão, devido aos altos índices de suicídio na floresta de Aokigahara, as autoridades apelaram às mensagens de apoio como tentativa de dissuadir o possível suicida de tirar a própria vida. A estratégia era lembrar, através de pequenas mensagens, a preciosidade e inigualável riqueza que era a vida de cada um daqueles que adentravam às trilhas da floresta japonesa a fim de darem fim a própria existência. Ainda que de maneira diferente, tendo como objeto outros fins que não evitar a morte de um ou mais indivíduos; a adequada estratégia de combate à corrupção se assemelha muito à estratégia japonesa acima citada. 

Enquanto nossas leis, compreensão moral e aplicação política estiverem baseadas no escambo de benefícios, enquanto a honra, o caráter e a hombridade pessoal for tão barata quanto o suborno e a ascensão política e profissional, falar em combate à corrupção por meios de leis positivistas e milagreiros jurídicos não passa de fetiche tolo. Enquanto não recordarmos vividamente e reafirmarmos de maneira aberta que o crime não é uma via possível aos sensatos, não conseguiremos sequer diminuir a corrupção, quanto menos vencê-la. 

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Conclusão

O mesmo problema citado no início do ensaio: a falta de complementação entre princípios morais estruturantes e aplicação político-institucional se dá também aqui. Sem correspondência clara entre a mudança da mentalidade cultural de que o crime é uma via possível e justificável e a criação de meios jurídicos, educacionais e policiais efetivos de combate à corrupção, não adiantará criar leis — pois o próprio sistema corrupto se encarregará de dar a essas leis a nulidade em sua aplicação. 

Não afirmo, todavia, que nada deve ser feito de efetivo agora — ainda que a cultura se encontre marinando naquele senso comum bandoleiro que acima expus —, óbvio que os corruptos devem ser exemplarmente punidos, assim como as leis contra tais burlas devem ser aplicadas na medida do possível.

Não obstante, se o que se quer é vencer de fato a corrupção sistêmica, apostar tão somente em instrumentos e esquecer dos princípios que antecedem a instrumentaria, é a receita perfeita para a manutenção do câncer e o fracasso do corpo social; os analgésicos (instrumentos) são parte do tratamento contra a corrupção (câncer), mas somente eles não destroem o tumor, é necessário tratamentos mais incisivos e cirurgias profundas. Em suma, apenas mudar as peças do tabuleiro é burrice quando é o tabuleiro que está destruído.