Fenômenos sociais, como todos os fenômenos complexos, têm muitas causas. A estatística nos dá algumas ferramentas para destrinchar essas causas, como a análise de componente principal. Cientistas que trabalham com seres vivos e sociedade sabem disso. Ou, ao menos, deveriam saber.
Em setembro deste ano, um estudo da USP revelou, com uma amostra de mais de mil idosos miscigenados brasileiros, que sua herança mitocondrial, ou seja, materna, era 70% advinda de mulheres de ancestralidade negra ou indígena, enquanto a herança do cromossomo Y (masculino) era composta em 75% de DNA de homens de ancestralidade europeia. Um grupo de influenciadores que falam de ciência nas redes sociais interpretou essa informação de forma a concluir que esse resultado teria vindo principalmente, ou de forma importante, do estupro dessas mulheres por esses homens.
A essa interpretação, os influenciadores somaram histórias individuais de senhores estuprando mulheres escravizadas e bandeirantes estuprando índias. São histórias horrendas. Porém, são também um apelo à emoção, não uma análise detalhada das várias causas de um fenômeno. São o que Carl Sagan chamaria de “evidências anedóticas”.
Essa interpretação, além de não ser científica, exagera o papel do estupro nas origens da população brasileira. É, portanto, uma interpretação bastante difamatória contra os brasileiros do passado. Não disputamos, aqui, que o estupro seja uma das causas da desproporção entre heranças materna e paterna em mestiços. Mas disputamos que seja uma causa majoritária, ou uma das mais importantes.
Nos cromossomos masculinos dessa amostra, 5,1% da herança está em homens de ancestralidade do leste ou sul asiático. A representação das mulheres com essa ancestralidade na herança materna é de 2%, menos da metade da paterna. Enquanto isso, a herança euroasiática materna é 14% e a paterna é quase 5%. Se seguirmos a interpretação dos influenciadores, a conclusão é que mulheres euroasiáticas foram mais estupradas no Brasil que as do leste e sul asiáticos.
Desconhecemos evidências que corroborem isso. Seria mais razoável supor que esses números representam a proporção de pessoas dessas origens que vieram ao Brasil.
A interpretação do estupro como causa principal ou importante da miscigenação brasileira também deixa de fora um fato curioso: que os homens negros representam 14,5% da herança do cromossomo Y, enquanto os homens indígenas ocupam apenas 0,5% da média do cromossomo na amostra (lembremos que é uma média, e que ainda há homens com cromossomo Y 100% indígena). Homens de origem africana teriam estuprado mais mulheres que homens de origem indígena no Brasil? É outra consequência da interpretação dos influenciadores. Uma consequência que está em conflito com a história de escravização e marginalização dos homens negros.
Até aqui, mesmo os leitores leigos em genética e história devem estar com uma pulga atrás da orelha a respeito da escolha do estupro como causa importante da miscigenação. Não é possível usar os métodos mais rigorosos para destrinchar as diferentes causas da miscigenação e apontar qual foi o real tamanho da importância do estupro nisso, mas podemos elencar explicações alternativas e concorrentes com ele.
Aqui, para entender as explicações alternativas, algumas premissas fundamentais, baseadas em teorias básicas da biologia, precisam ser aceitas: que nós somos animais sexuados, com dimorfismo sexual (diferenças entre machos e fêmeas), e que a cultura não é 100% responsável pelos nossos comportamentos. Ou seja, não somos folhas em branco ou “tábulas rasas” em que a cultura escreve o que quiser: temos propensões e tendências inatas a nos comportar de uma forma ou de outra. Parte dessas tendências e propensões inatas são diferentes (nas médias, não em todos os indivíduos) de acordo com o sexo dos organismos. Quem nega alguma dessas premissas não está de acordo com o conhecimento acumulado da biologia moderna a respeito do ser humano e, portanto, não participa do debate de forma informada.
Como em outras espécies, humanos do sexo masculino variam mais no sucesso de ter filhos que os do sexo feminino. Isso significa que o número de filhos que as mulheres têm se concentra mais em torno de sua média que o número de filhos que os homens têm. Também significa que haverá mais homens nos extremos: há mais homens com zero filho que mulheres, e mais homens no extremo de grande número de filhos, em números até biologicamente impossíveis para uma mulher, que precisa no mínimo de noves meses entre uma gestação e outra. Uma razão para essa maior variabilidade de sucesso reprodutivo entre os homens é a capacidade de escolha das mulheres. Essa escolha tem vieses, ou seja, alguns homens são mais atraentes que outros.
Num estudo envolvendo mais de dez mil pessoas de 33 países localizados em seis continentes e cinco ilhas, o psicólogo David Buss descobriu que as mulheres valorizam principalmente características de aquisição de recursos em homens, enquanto eles valorizam principalmente sinais físicos de capacidade reprodutiva nelas. Em se tratando de europeus com recursos raríssimos valorizados pelos caciques, como machados de ferro, não é exagero dizer que os primeiros europeus no Brasil tiveram grande sucesso em serem mais atraentes para as mulheres nativas, escravas e suas descendentes, por várias gerações, pelo simples fato de externarem grande capacidade de aquisição de recursos em função de seu contato com a Metrópole.
Característica valorizada, repetimos, por mulheres de várias culturas, o que indica que a cultura tem pouco poder de alterar essa preferência feminina, que provavelmente tem bases biológicas. Isso não deveria ser surpresa para biólogos, já que as mulheres são responsáveis por uma carga maior de cuidado parental, ao nível fisiológico, por gestarem os bebês, e precisam ter boa perspectiva de encontrar parceiros que sejam bons provedores. Há exceções? Sim. Entre os zulus, como o próprio estudo aponta (que não vieram para as Américas). Em fenômenos complexos, sempre há exceções. Mas o projeto da ciência não é uma coleção de selos de exceções, mas generalizações e simplificações com capacidade de fazer previsões precisas.
Homens também têm preferências. É digno de nota, aqui, que a maioria dos homens não apresenta uma excitação sexual preferencial por sexo coercitivo, ou seja, estupro. 90% dos homens heterossexuais se excitam mais com estímulos consensuais, ou seja, ao saber que a parceira deseja o ato sexual. Dos outros 10%, há aqueles que são indiferentes à qualidade do estímulo quanto a representar coerção ou consentimento, e os que preferem sinais de que a mulher está sendo coagida a ter sexo com eles. Os que agem sobre essa preferência representam uma minoria. Por essa razão, pesquisadores do sexo como David Thornton propõem que entre os estupradores há um transtorno parafílico coercitivo, uma preferência fora da normalidade. É uma área de pesquisa ainda verde, mas é o que temos para nos perguntar como eram os homens de 400 anos atrás. Como a própria genética mostra, a natureza humana mudou muito pouco nos últimos milênios.
Outra questão biológica a respeito do estupro é que uma criança que resulte dele terá menor probabilidade de ter bom cuidado parental. Estupradores não são famosos por serem bons pais. Dessa forma, essa criança tem menor probabilidade de sobreviver e deixar descendentes que crianças que são fruto de reprodução consentida.
Há outras questões que tocam marginalmente a biologia aqui, como o fato da poligamia entre os nativos e o favorecimento dado pelos caciques aos primeiros homens europeus a chegarem a Pindorama, mas, a fim de não me estender, sugiro leitura do artigo de Bruna Frascolla a respeito.
Temos, portanto, motivos para pensar que a desproporção de grupos na herança paterna e materna dos miscigenados brasileiros resulta mais de preferências, consentimentos e escolhas do que de estupros, especialmente ao longo de meio milênio. Não é possível que cinco séculos de interação entre homens e mulheres brasileiros possam ser resumidos a um crime sexual que desagrada não só às suas vítimas, mas também à maioria dos homens que teriam poder de cometê-lo. Ainda hoje, estupradores são quase rotineiramente linchados no interior do Brasil. Descrever nossa cultura como uma “cultura do estupro” é não apenas algo que carece de evidências: é um insulto a todos nós, que somos na maioria resultantes dessa mistura.
Como toda instituição humana, a escravidão foi (e ainda é, pois infelizmente não desapareceu completamente) ambígua. Havia uma parte dos escravos que, como o Tio Tom que virou xingamento para os americanos, aparentavam aceitar sua condição. Foi necessário queimar pestanas por milênios até que se chegasse à conclusão de que nada do que sustentava a escravidão tinha realmente fundamento, quando paramos para pensar a respeito dela. De Frederick Douglass aos avós de Charles Darwin, gente de diferentes fenótipos e diferentes histórias de vida chegaram a essa conclusão, e alguns, como Douglass e Luís Gama, dedicaram suas vidas a espalhar essa conclusão.
No meio dessa ambiguidade, considerando os instintos humanos e o que acontece quando homens convivem com mulheres, houve bastante sexo com consentimento nas origens do Brasil. Como não são capazes de apontar para os cromossomos para dar base à sua inflação da importância do estupro como causa da miscigenação, alguns dos influenciadores científicos resolveram adotar a retórica de algumas feministas radicais que afirmam que sexo entre homens e mulheres sempre é estupro, pois há um desequilíbrio de poder entre homens e mulheres no “patriarcado”.
Analogamente, os influenciadores afirmam que qualquer relação sexual entre os sinhozinhos e as escravas só poderia ser estupro em função de seu “desequilíbrio de poder”. Isso não é conhecimento, muito menos ciência. Isso é delírio foucaultiano. A resposta a isso é a mera sabedoria do senso comum: estupro é o que acontece quando (geralmente) um homem violentamente força uma (geralmente) mulher a se submeter às suas vontades sexuais. A maioria de nós entende que esta é a natureza desse crime. E essa natureza é capturada pobremente por obnubilações abstratas de poltrona sobre “poder”. Escravos e seus senhores eram humanos, não heróis e vilões de quadrinhos. Alegar que o estupro foi uma causa importantíssima da miscigenação é ter essa dicotomia de heróis vs. vilões como premissa.
Houve estupro, e houve sexo consentido. Mas, como não é possível que uma parte da população tenha se comportado como vilã, consistentemente, durante séculos, é improvável ao ponto de quase impossível que o estupro seja mais importante que outros fatores para explicar por que somos o que somos. Ao menos que quase tudo o que sabemos sobre natureza humana esteja errado.
O raciocínio dos influenciadores para fazer a conclusão contrária cai por terra quando se estuda mais genética de populações. Um estudo deste ano mostrou que todas as linhagens masculinas sobreviventes fora da África têm origem no sudeste asiático, pouco mais de 50 mil anos atrás. O que é mais provável: que uma horda de asiáticos estupradores varreu o planeta na época, ou que eles tinham alguma vantagem que atraía as mulheres?
Minha dica: para chegar mais perto da verdade nessa questão, ignorem influenciadores e escutem a sabedoria do senso comum, que está muito mais próximo da ciência do que modas ideológicas do nosso tempo.
*Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.
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