“Cuidado com o visco”, pedia um anúncio publicado pelo jornal Ohio State Journal, em 21 de dezembro de 1918, pediam as autoridades de saúde norte-americanas (o CDC, protagonista das discussões contemporâneas sobre o assunto, só seria criado em 1946). Desconhecida no Brasil - salvo pelas aparições em cenas importadas da cultura pop - a tradição bretã do beijo sob a plantinha que simboliza paz e fertilidade foi posta sob suspeita às vésperas de um Natal que, um século depois, encontra circunstâncias similares.
“Você vai demonstrar melhor seu amor por seu pai, mãe, irmão ou irmã e o resto da sua família permanecendo em sua própria casa, em vez de fazer as visitas anuais de Natal, realizar reuniões familiares e festas em geral”, dizia a propaganda. A segunda onda da pandemia de Gripe Espanhola já havia atingido os Estados Unidos no outono daquele ano, mas, em algumas cidades, um terceiro pico estava a caminho, justamente por conta das festas de fim de ano.
De acordo com o historiador Lendol Calder, em entrevista dada à revista do Museu Smithsonian, o espírito natalino daquele ano enfrentava um paradoxo. Por um lado, havia a preocupação com a gripe; por outro, os americanos ansiavam pela temporada de festas de 1918 porque os jovens sobreviventes das trincheiras da Europa e das bases militares durante a Primeira Guerra Mundial estavam começando a voltar para casa.
Calder conta que a cidade de Milwaukee, no Wisconsin, foi uma das que aplicou medidas restritivas mais severas, a ponto de fechar igrejas em pleno período do Advento (ainda que, segundo os fiéis que protestavam na época, os bares continuassem abertos). Mesmo assim, as missas e cultos foram liberados para o dia de Natal. Uma exceção que remonta a uma conhecida história da própria guerra.
Há relatos controversos sobre a “trégua de Natal” ocorrida nas imediações da cidade de Yprès, na Bélgica, onde soldados alemães e ingleses se enfrentaram por meses. Alguns textos narram que houve quem acreditasse que ceder ao espírito natalino contaminaria os ânimos para o combate - e associam a isso o fato de a dita “pausa” nunca mais ter acontecido nas trincheiras.
Quer a justificativa seja real ou não, fato é que que, na noite de 24 de dezembro, nenhum tiro foi disparado nas trincheiras de Yprès. Nas palavras do general Leslie Marmaduke Walkinton: “Estávamos na linha de frente; a cerca de 300 metros dos alemães. E nós estávamos - eu acho que era véspera de Natal - cantando canções de Natal (...), e os alemães faziam o mesmo. E estávamos gritando um para o outro, às vezes comentários rudes mas, com mais frequência, apenas comentários de brincadeira. De qualquer forma, um alemão acabou dizendo: ‘Amanhã, se vocês não atirarem, nós não atiramos’. E a manhã chegou e nós não atiramos e eles não atiraram”.
A origem de tudo
A própria etimologia da expressão que nomeia a festa romana “Natalis” indica o que que está por trás da ocasião: a celebração do início de tudo. Não por acaso, essas festas têm em seu cerne o ambiente familiar.
“Em quase todas as civilizações que já existiram, há diferentes eventos e festas nos quais se celebra o princípio da história, no seio da família. É um aspecto que transcende o próprio contexto temporal e articula aquele ser humano com o seu passado e com a memória da história”, explica o professor Marcus Boeira, professor de Lógica e Filosofia do Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Visiting Scholar na Pontificia Università Gregoriana/Roma.
Segundo o pesquisador, essa “busca pela origem” se manifesta na simbologia de uma festa que se perpetua. “É o primeiro modo de articular o presente com o passado - e isso não acontece só no Natal cristão”, explica Boeira, recordando da benção Urbi et Orbi, na qual o Pontifex Maximus romano (à época do Império, o sumo-sacerdote) invocava a origem de Roma.
Neste contexto de união entre passado, presente e futuro diante da lembrança da origem, os membros da família representam todos os que já passaram por ela - uma união evidenciada pelo sobrenome. “O sobrenome é uma identidade existencial. Ele nos coloca dentro de um contexto muito maior do que nós mesmos e, a partir disso, produz o sentido de que a alteridade só é possível dentro de algo permanente. E o nome disso é família”, diz o especialista.
“Para os cristãos”, prossegue Boeira, “o Natal diz respeito à origem da vida pela encarnação do Verbo Divino. Mas, do ponto de vista antropológico e social, esse vínculo com a origem serve para lembrar ao mais secularista dos homens que, mesmo imerso em uma cultura que valoriza o objeto, algo dentro dele clama por sentido”. Esta ânsia se manifesta de forma clara na família, onde o encontro do Natal une, para fazer referência a Edmund Burke, “os mortos, os vivos e os sequer nascidos”.
Um Natal sem família é, portanto, o sequestro da oportunidade anual que se tem de experimentar o recomeço, o contato com o outro que extrapola as meras relações de utilidade do dia a dia. Em 1963, o filósofo alemão Josef Pieper propôs, em seu livro “In tune with the world” (“Em sintonia com o mundo”), que a natureza de um feriado festivo - especialmente os de cunho religioso - não se dá apenas em contraste com um dia de trabalho.
“Celebrar um feriado significa fazer algo que não está vinculado a outros objetivos, que foi removido de todos ‘para quê’. A verdadeira festividade não pode ser imaginada como residindo em qualquer lugar, mas no reino da atividade que é significativa em si mesma”, diz o filósofo, que questiona: “Como podemos visualizar algo que não serve a mais nada, que por sua própria natureza só tem significado em seus próprios termos?” Um questionamento relevante para um fim de ano no qual passou-se mais tempo do que nunca cumprindo funções diante de telas, sem hora para começar ou acabar.
Segundo Pieper, escritores histórico-culturais têm apontado com frequência que "uma união de paz, intensidade de vida e contemplação é essencial para a festa, de modo que celebrá-la equivale a (...) confrontar diretamente as realidades superiores nas quais repousa toda a existência”.
“Por fundamento último”, diz o filósofo, “entendo a convicção de que a ocasião festiva primordial, a única que pode justificar em última instância toda celebração, realmente existe; que, para reduzir à frase mais concisa, no fundo tudo o que é, é bom, e é bom existir”.
O Natal “cancelado”
Mais de 1,6 milhão de pessoas morreram em decorrência da Covid-19 no mundo. Para algumas famílias, lembrar que “tudo o que é é bom”, pode ser um tanto mais complicado neste dezembro. Para outras, os meses de confinamento podem ter desvanecido a memória de que “é bom existir”, um mal cujo antídoto costuma ser servido nas festividades do fim do ano.
Diante do aumento de infectados pelo novo coronavírus, entretanto, a recomendação de alguns especialistas em saúde é que o Natal de 2020 seja - ainda que apenas em sua forma “material” - “cancelado”. Até agora, poucos municípios e estados voltaram a endurecer as medidas de distanciamento. Mesmo assim, famílias acostumadas a lotar a mesa devem se preocupar menos com a lista de compras, enquanto presentes chegam aos destinatários pelas mãos das transportadoras sem passar por debaixo da árvore.
Na Igreja Esperança, de Belo Horizonte, o pastor e teólogo Guilherme de Carvalho, colunista da Gazeta do Povo, decidiu suspender as reuniões presenciais (que tomariam apenas um quarto da capacidade da igreja, sem crianças nem idosos) do domingo de Natal. O evento será substituído por uma transmissão. Em conversa com a reportagem, Carvalho conta os desafios viver um feriado religioso em comunidade, no meio da pandemia.
“Tem o pessoal que acha que é tudo bobagem, que é tudo conspiração, e não entende por que a Igreja reduz atividade. Só que a gente não pode simplesmente mandar um membro da comunidade passear. O líder de Igreja tem desafios sociais mais complexos do que gerenciar uma briga no WhatsApp”, conta o pastor. “Em um momento em que pessoas de orientações políticas diferentes perderam o contato físico que ocorre em festas coletivas, é muito difícil manter vivo o sendo se comunidade”.
Carvalho lembra que, no começo da pandemia, durante uma live com o geneticista Francis Collins, o pastor americano Timothy Keller afirmou que muitas igrejas precisariam ser “replantadas” depois da pandemia. “Acho que só agora o pessoal está entendendo. A musculatura social, a massa muscular das comunidades está murchando. Passar o Natal sem as igrejas se reunirem não vai passar batido. É motivo de preocupação e muita engenharia”, diz o teólogo.
O antídoto para este “ressecamento”, lembra o pastor, está no resgate do rito do Natal como algo que está além do tempo. “Ao longo do ano litúrgico cristão, há o resgate da história da redenção. Isso dá um contexto narrativo para a vida, e muitas igrejas evangélicas deixaram de seguir por causa do espírito iconoclasta que existe no protestantismo. Mas há uma tendência de reversão, de retomada do calendário litúrgico por causa da eficácia pedagógica e simbólica disso”, explica.
Para o teólogo Felipe Magalhães, da PUC-Minas, o Natal de 2020 pode ser uma oportunidade para ressignificar essas festividades de fim de ano. “As pessoas terão que se readaptar para algo mínimo. Para alguns, o evento pode ser um convite à interioridade. Para outros, pode gerar um sentimento de abandono - principalmente para quem perdeu parentes queridos”, avalia.
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