Com medo de tudo o que considera fascista, obscuro e reacionário, a esquerda não hesita em se dizer vítima de uma perseguição e de censura por causa de uma tal onda conservadora mundial. No Brasil, casos como a do falso veto à exibição de um documentário sobre Chico Buarque e o da retirada de cartazes do cinema nacional na sede da Ancine, sem falar nas declarações de funcionários recém-nomeados para o terceiro escalão da burocracia cultural, alimentaram o temor imaginário de uma “idade das trevas”.
Toda essa gritaria, quando confrontada com a realidade, prova ser uma contradição. Porque hoje em dia é a esquerda que pratica atos flagrantemente obscurantistas, reacionários, persecutórios e, sinceramente, fascistas. Refiro-me a atos que vão desde o achaque a personalidades do mundo LGBT que contrariam a cartilha do movimento ou simplesmente tiram uma fotografia ao lado do presidente até a violência propriamente dita. No Chile, por exemplo, os manifestantes de inspiração ultraesquerdista têm queimado, saqueado e vilipendiado igrejas católicas sem que se ouça nenhuma voz progressista chamando os atos daquilo que eles realmente são.
A nova moda do “fascismo do bem” é, na verdade, uma moda antiga, uma prática disseminada pelo mundo, mas tornada famosa por ninguém menos do que ele mesmo, Adolf Hitler: a queima de livros em praça pública. Recentemente, uma biblioteca do norte da China promoveu a queima de livros considerados “ilegais” ou impróprios”. Eram livros religiosos ou que de alguma forma continham críticas ao Partido Comunista. E não se trata de um ato tresloucado de comunistas exaltados numa província remota e atrasada. A queima segue orientações do Ministério da Educação da China.
Sem querer ficar para trás nesta tradição de ignorância ilustrada, pelo menos 100 feministas queimaram exemplares do livro “Psicoterapia Pastoral”, escrito pelos autores cristãos Juan Manuel Rodríguez e Misael Ramírez. O livro conta histórias de gays, lésbicas e transexuais que – pecado dos pecados! – se converteram ao cristianismo. O ato de selvageria bibliófoba ocorreu no México governado pelo presidente progressista López Obrador, durante a Feira Internacional do Livro de Guadalaraja, a segunda mais importante do mundo.
O ato violento, obscurantista, reacionário, intolerante e, sinceramente, fascista foi cometido sob o disfarce de uma “performance artística” – provavelmente para ficar imune a qualquer tipo de repressão. Intitulada “Um violador em tu caminho”, a “obra-prima” do coletivo é uma coreografia na qual centenas de mulheres vendadas gritam coisas como “Estuprador és tu” e “o Estado opressor é o macho estuprador”, tendo um bumbo marcial ao fundo. A coreografia teve uma versão brasileira apresentada em Porto Alegre no domingo, dia 7 de dezembro, e divulgada pela ex-deputada Manuela D’Ávila pelo Twitter, plataforma na qual foi vista 2,9 milhões de vezes.
As responsáveis pela fogueira de livros cristãos e pela coreografia pertencem a um coletivo chamado Las Tesis, dedicado a lutar – atenção! – contra a violência de gênero. O grupo tem origem chilena, mas já realizou manifestações na Alemanha, Colômbia e Estados Unidos.
Hitler, maoístas e Al-Qaeda
A prática da queima de livros é antiga. Na China, ela remonta ao século III a.C., quando o imperador Qin Shihuang, o mesmo dos incríveis guerreiros de terracota, ordenou a queima de livros como forma de consolidar o poder do seu novo império. Shihuang tinha como alvo específicos os preciosos livros de poesia, filosofia e sobretudo história – para que seus feitos não pudessem ser comparados aos de seus antecessores.
Depois da invenção da prensa por Johannes Gutenberg, os livros se tornaram mais populares e se disseminaram com mais rapidez, o que reduziu a eficácia da destruição de livros para fins políticos. Afinal, era praticamente impossível localizar e destruir todos os exemplares de um livro específico. A partir do século XV, portanto, a destruição de livros se tornou um gesto mais simbólico, de propaganda política.
As fogueiras de livros promovidas por Hitler se tornaram o símbolo máximo da superioridade da força sobre a razão. Tendo como alvos livros escritos por judeus, pacifistas, religiosos, liberais, anarquistas, comunistas e homossexuais, as fogueiras públicas eram atos burocraticamente chamados de “Atos Contra o Espírito Antigermânico”. Não se sabe ao certo quantos livros foram destruídos nestes atos. Num dos maiores deles, realizado em maio de 1933, em Berlim, estima-se que 25 mil exemplares tenham sido reduzidos a cinzas.
A ojeriza por Hitler e os nazistas não pôs fim à prática. Durante a Revolução Cultural promovida por Mao Tsé-tung na China, nos anos 1960, a ordem era destruir todo e qualquer livro que não estivesse de acordo com a propaganda oficial chinesa. No Sri Lanka, budistas em conflito com os tamils puseram fogo na biblioteca que abrigava 100 mil livros raros de história e literatura daquele povo. Em 2012, membros da Al-Qaeda no Mali queimaram cerca de 350 manuscritos raríssimos.
No Brasil, o maior expoente da queima pública de livros foi o ditador Getúlio Vargas, que em 1937 deu vazão ao seu espírito piromaníaco ordenando a destruição de quase 2.000 exemplares de livros de Jorge Amado e José Lins do Rego.
Bases morais
Quem estabeleceu as bases morais modernas para o repúdio à destruição de livros foi o poeta inglês John Milton que, em seu panfleto político de 1644, Areopagitica, escreveu sobre homens “que matam homens [são] homens que matam uma criatura racional (...) mas homens que destroem livros matam a razão em si). A ideia dos livros como instrumento de doutrinação política cujo poder precisa ser enfrentado ganhou popularidade com Fahrenheit 451, romance distópico de Ray Bradbury, no qual um personagem diz que “um livro é uma arma carregada na casa do vizinho”.