Evento ‘Democracia Inabalada’, em Brasília (DF), no dia 08 de janeiro de 2024: Lula, Alckmin, Rodrigo Pacheco ao lado dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso| Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
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Uma pesquisa divulgada no último dia 9 pela Atlas Intel mostrou que 47,3% dos brasileiros acreditam que o país “vive sob uma ditadura do judiciário”. Foram ouvidas 1615 pessoas entre os dias 8 e 9 de fevereiro de 2024. O levantamento compõe um quadro preocupante sobre a opinião dos brasileiros em relação ao Supremo Tribunal Federal e seus ministros.

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Enquanto quase metade da população apresenta uma percepção de mudança do regime político em que vivemos, outros 16,7% não concordam com tal afirmação, mas acreditam que muitos juízes “cometem abuso e ultrapassam suas atribuições. No total 51% responderam que não confiam no trabalho dos ministros. Entre os ministros campeões de imagem negativa para os respondentes, figuram Dias Toffoli (60%), Gilmar Mendes (57%) e Alexandre de Moraes (56%). Por outro lado, 60,9% dos entrevistados percebem que a corrupção está aumentando e 44% e quase 70% responderam ter pouca ou nenhuma confiança na capacidade do Estado brasileiro em investigar, comprovar e punir esquemas de corrupção.

A pesquisa veio à tona pouco mais de um mês depois das solenidades oficiais que marcaram o aniversário dos eventos do 8 de janeiro, sob o lema Democracia Inabalada, num evento marcado pela baixa adesão política e falta de interesse da audiência. Em que pese o esforço institucional e midiático, não contou com os governadores dos estados mais populosos do país (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, entre outros). Na busca por amplificar o interesse sobre o tema, a Rede Globo mudou sua programação de horário nobre no dia 10, veiculando o documentário 8/1 - A Democracia Resiste. A produção espantou 58% dos telespectadores em pouco mais de uma hora.

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Os dados da pesquisa espantam, se consideramos a intensidade do discurso oficial, reproduzido diuturnamente nos principais meios de comunicação. Na cantilena repetida por integrantes dos três Poderes, amplificada por grande parte da imprensa, o país teria se livrado de um golpe de Estado iminente, numa trama onde confusamente se misturam o ex-presidente Jair Bolsonaro, integrantes de seu governo, militares da ativa e da reserva, e um bocado de vândalos, senhoras de idade e alienados de toda sorte que se reuniram para o quebra-quebra em Brasília.

O levantamento veio à tona um dia depois da Polícia Federal desencadear a operação Tempus Veritatis, que levou à prisão do ex-assessor para assuntos internacionais Filipe G. Martins, além da apreensão do passaporte do ex-presidente, e da busca e apreensão generais Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); e Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil; do almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante-geral da Marinha; do ex-ministro da Justiça Anderson Torres; do ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira; e do atual presidente do PL, Valdemar da Costa Neto — preso por posse de arma supostamente não registrada.

A operação foi precedida de uma série de ações policiais mirando atores importantes da oposição ao atual governo. No dia 18 de janeiro, o deputado federal Carlos Jordy (PL-RJ) recebeu a visita da Polícia Federal na sua casa, na 24º fase da Operação Lesa Pátria. A ação foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Jordy é investigado por suspeita de participação nos atos de 8 de janeiro de 2023.

A suspeita se relacionaria com uma troca de mensagens entre o parlamentar e Carlos Victor de Carvalho, suplente de vereador em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Carlos recentemente foi preso e logo depois liberado na Operação Ulysses, que procurava apurar a participação de pessoas durante o 8 de janeiro. Em troca de mensagens durante o período de acampamento nos quartéis, teria chamado Jordy de “meu líder” e pedido orientações sobre o que fazer.

No dia 25, foi a vez do deputado federal Carlos Ramagem (PL-RJ) ser alvo de ações de busca e apreensão. A operação deflagrada pela Polícia apura suposta espionagem ilegal realizada pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) no período em que Alexandre Ramagem esteve à frente da agência.

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A "Abin paralela", como tem sido chamada por investigadores, é acusada de monitorar ilegalmente pessoas e autoridades públicas, incluindo tentativas de associar indevidamente membros do STF e políticos adversários ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Entre os alvos dessa espionagem estariam três ministros do STF, o ex-deputado federal Rodrigo Maia, e a promotora responsável pelas investigações do caso Marielle Franco. As atividades ilícitas incluíam invasão de dispositivos eletrônicos e infraestrutura de telecomunicações.

A mesma investigação rendeu outra operação policial no último dia 29. Dessa vez, a Polícia Federal realizou novas buscas e apreensões mirando aquilo que seria o “núcleo político” da “Abin Paralela”. No centro do esquema, estaria o vereador Carlos Bolsonaro . Segundo os policiais, Carlos seria o nome principal da família na operação do esquema de espionagem ilegal.

No último dia 30, o deputado André Fernandes foi intimado a depor numa investigação da Polícia Federal sobre suspeita de falsificação de dados eleitorais. O suposto crime cometido por Fernandes diria respeito a sua autodeclaração de cor, que em 2018 se declarou como “pardo” e, em 2022, como “branco”.

Loucademia de polícia? 

Para além da intensidade de operações policiais visando integrantes de um campo político expressivo, é bem possível que a percepção dos brasileiros em torno do regime de governo que ora impera tenha a ver com a forma como essas ações têm se estabelecido.

Os acontecimentos em torno do 8 de janeiro merecem uma investigação séria, assim como as denúncias do uso ilegal da Abin ou a existência de uma trama para dar um golpe de Estado. Contudo, a sucessão de problemas envolvendo a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da República e o STF parecem estar contribuindo para a desconfiança de grande parte da população quanto à idoneidade dos processos.

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No caso da operação contra Jordy, poucas horas depois da busca e apreensão, o deputado esclareceu nas redes que a investigação se baseava toda num print de uma foto falsificada. O que acontece é que Carlos Victor de Carvalho havia sido preso após o 8 de janeiro por causa de uma foto nas suas redes em que aparecia em meio à multidão que invadiu os prédios públicos em Brasília. O problema é que a foto tinha sido adulterada pelo próprio Carlos, como forma de mostrar apoio às manifestações, utilizando uma imagem de um evento de apoio a Bolsonaro do ano anterior.

O problema é que a Polícia Federal já sabia desse engano, que teria fundamentado sua soltura logo após a prisão há poucas semanas. Ainda assim, a foto falsificada foi utilizada como elemento de prova para justificar busca e apreensão contra o líder da oposição na Câmara. Por isso, Jordy chegou a falar em procedimento “de pesca probatória”, quando uma autoridade usa de uma desculpa ou subterfúgio para justificar o escrutínio da intimidade e das contas de determinada pessoa, a fim de procurar elementos que o incriminam em qualquer ilegalidade.

Já Ramagem usou suas redes sociais para esclarecimento, colocando várias dúvidas quanto ao suposto esquema em investigação. Ele afirmou que nunca usou o sistema First Mile para monitorar autoridades nem mandou apagar registros de uso. Ao contrário, sob sua gestão teria sido realizada uma revisão geral dos processos da Abin, incluindo uma investigação específica sobre o uso irregular do sistema.

Ramagem também atribuiu a responsabilidade pelo controle do First Mile a Paulo Maurício Fortunato Pinto, ex-secretário de Planejamento e Gestão da Abin, que foi exonerado justamente por causa disso, mas posteriormente reintegrado em posição superior durante a gestão Lula. Segundo o deputado, o agora Secretário de Planejamento e Gestão da agência é que deveria estar sob investigação, por suspeita de ter apagado registros (logs) do sistema. Para reforçar seu ponto, cita inclusive uma busca e apreensão da Polícia Federal contra Fortunato Pinto em 2022, onde teriam sido encontrados valores equivalentes a R$ 1 milhão em dólares.

Por sua vez, a investigação da Polícia Federal contra o Carlos Bolsonaro se baseia na análise do sigilo telemático de Ramagem, que revelou uma conversa sua com uma assessora de Carlos Bolsonaro. Entretanto, as evidências apresentadas, incluindo um print da conversa, carecem de detalhes cruciais como a data e o contexto específico, levantando dúvidas sobre a interpretação dos fatos. A representação da PGR e a decisão do STF apresentam inconsistências, incluindo a identidade dos interlocutores e a natureza do pedido feito a Ramagem.

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Apesar das suspeitas levantadas pela conversa, não há provas concretas de que Ramagem tenha fornecido informações ilegais ou interferido em inquéritos. A PF admite que os inquéritos citados na conversa não estão relacionados à família Bolsonaro, indicando uma possível falta de precisão nas acusações. Além disso, a comunicação entre Carlos Bolsonaro e Ramagem, conforme relatado, ocorria principalmente por meio de assessores, o que complica a atribuição direta de responsabilidades.

A investigação até o momento parece incompleta, com falta de evidências claras e depoimentos de figuras-chave. O parecer da PGR, resumido e com fundamentação jurídica questionável, e a decisão de Moraes, apesar de mais detalhada, ainda deixam lacunas significativas na narrativa dos fatos. Essas inconsistências e a aparente falta de uma investigação mais aprofundada sugerem que ainda há muitos aspectos dos alegados crimes na Abin que precisam ser esclarecidos.

Quanto ao caso envolvendo o deputado André Fernandes, chama atenção que a Polícia Federal tenha empregado recursos para apurar um suposto crime eleitoral baseado numa informação absolutamente irrelevante, tendo em vista que diz respeito à autoidentificação do candidato. Ademais, na intimação, foi dito que a denúncia foi formalizada por parlamentares, mas sem citar quais.

As ações envolvendo a prisão de Filipe G. Martins e a busca e apreensão contra grande parte da cúpula do antigo governo ainda não demonstraram indícios sólidos que as justificassem. A fundamentação que veio a público parece baseada na confirmação da existência de reuniões em Brasília, depois da derrota eleitoral de outubro, envolvendo os investigados.

Sabemos pela imprensa que houve conversas entre os envolvidos, mas pouca coisa além de mensagens dispersas e trocas de notícias. Nenhuma conversa aberta sobre tentativa de golpe ou coisa que o valha. Além disso, divulgou-se um vídeo na imprensa como um grande trunfo, no qual Bolsonaro discursa para seus ministros poucos meses antes da eleição alertando para o que via como trapaça iminente com atuação direta de ministros do STF. No material, o ex-presidente alerta para a necessidade de reagir ao quadro que se apresentava, mas que não se tratava de dar um golpe, de usar armas ou coisa parecida.

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Por enquanto, esse único fruto da delação do Coronel Mauro Cid permanece juridicamente pouco consistente, ainda que tenha justificado a prisão de pessoas contra os quais não parece haver nada além da palavra de um militar investigado por falsificação de documento e negociação de objetos doados para o ex-presidente.

Essa sucessão de erros e inconsistências em ações do aparato do sistema de justiça criminal contra políticos da oposição ao atual governo tem chamado atenção de lideranças políticas, autoridades públicas e até alguns poucos jornalistas que ainda insistem em fazer o trabalho de controle externo do poder.

Em recente reportagem, a Revista Crusoé fala numa “disputa de poder” dentro da Polícia Federal, que estaria marcada por cisões internas. Para além da perseguição sistemática contra agentes e delegados considerados bolsonaristas ou lavajatistas, estaria em jogo na corporação a atuação de um grupo político ligado ao ministro Alexandre de Moraes. Essa força, envolvendo cerca de 15 servidores, teria se consolidado durante os anos anteriores, no contexto dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, operando como um braço armado do STF para investigações de cunho eminentemente político.

Apesar de reconhecer a gravidade dos eventos em questão, incluindo os atos do 8 de janeiro e o funcionamento de um esquema ilegal de espionagem, a revista questiona a utilização política de parcela da instituição como instrumento de poder pouco republicano nas mãos de autoridades do Poder Judiciário.

Infelizmente, a maior parte dos questionamentos quanto às arbitrariedades cometidas evita analisar o problema de maneira sistêmica. Caso o fizesse, seria forçoso reconhecer que não se trata de um problema já por si mesmo grave de aparelhamento da principal força policial do país.

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É importante ter em mente que as operações foram todas chanceladas pela PGR e pelo STF. Enquanto tais, refletem um esforço organizado de atuação institucional que se relaciona com outras ações controversas, todas elas com significado político.

Tem método

A percepção da população quanto à atuação das Cortes não decorre do conjunto recente de fatos narrados aqui. Ela reflete o processo de sedimentação de opiniões em torno dos posicionamentos de atores institucionais em diversos momentos da nossa história recente. Em parte, relaciona-se com um esforço concertado do STF interferir diretamente na vida política da nação.

Esse movimento não é novo e tem um histórico que remete a décadas de um ativismo judicial cada vez mais crescente, gestado por intelectuais em encontros de movimentos como Direito Alternativo, Direito achado na rua, e afins.

Os problemas decorrentes do posicionamento político do Judiciário demoraram a serem percebidos pela sociedade. Enquanto as decisões dos ministros giravam em torno de obrigar o Estado a fornecer um tratamento com remédio importado pelo SUS, não parecia haver uma questão politicamente relevante.

Pouco a pouco, as Cortes passaram a interferir em questões administrativas de maneira recorrente, criaram crimes por analogia e se posicionaram publicamente como atores com uma visão de mundo e uma agenda política definida, de orientação francamente esquerdista.

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O que se vê é a estruturação de um novo arranjo de poder, em que o Supremo atua diretamente para impor uma agenda política de mudança social, a despeito de indicações de preferência dos cidadãos durante os processos eleitorais. Nesse processo, institui os parâmetros daquilo que é considerado aceitável, sob argumentos de promoção da civilização contra a barbárie.

Na retórica dos ministros, tem se tornado cada vez mais comum a definição de um espaço de disputa que divide bem e mal, trevas e luz, democracia e autoritarismo, em termos não raro pouco claros e muitas vezes cambiantes. Obviamente, o Supremo sempre aparece como defensor dos primeiros, contra opositores demonizados no segundo.

Entre os inimigos de ocasião, incluem-se os defensores da liberalização do armamento civil, da proibição do aborto e da atual legislação contrária às drogas. Esse quadro de alinhamento com a agenda progressista vigente na maior parte dos países europeus tem sido matizado com posições que fariam corar qualquer alegado liberal, com o STF impedindo reformas nas leis que regem a estabilidade do funcionalismo público, a retroatividade de cobrança de impostos e a transparência do sistema eleitoral.

O reflexo prático disso é que tudo o que se coloca contrário a essa agenda entra na casa do amigo contra inimigo. Ou, em termos mais sutis, da ameaça contra as instituições, do conflito entre os Poderes etc. Os opositores das opiniões vigentes no Supremo são tomados com opositores do Supremo enquanto instituição, sendo rebaixados ao estatuto de inimigos públicos que merecem ser combatidos, mas não com a denúncia, a retórica parlamentar etc., e sim com o poder de polícia, que é próprio dos magistrados.

O problema é que os ministros não são eleitos por vontade popular. Enquanto a disputa legislativa no Congresso pode garantir uma posição em detrimento da outra, o ponto em questão pode permanecer em aberto, variando conforme correlação de forças resultante do processo eleitoral. Na hora que o Supremo transforma um debate político num debate sobre legalidade da posição em si mesma, ou da possibilidade mesma de ter um posicionamento e defendê-lo em público, qualquer atividade de oposição está sujeito à criminalização, como “inimiga das instituições”.

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Em uma palavra, o Legislativo pode escolher criminalizar ou descriminalizar a venda de crack conforme a composição parlamentar apontada pela vontade do povo. Na prática, o crack pode ser liberado numa legislatura e proibido na outra. No momento que o Supremo toma para si a tarefa de julgar se a venda de crack é uma questão constitucional, não importando o que diga a letra da Lei, ficar contra essa decisão se torna um problema de ficar contra o arranjo constitucional vigente no país.

Com isso, o STF realiza em toda medida a definição da esfera política moderna nos dizeres de Carl Schmitt: amigo contra inimigo. Porém, o inimigo aqui não é somente uma facção inimiga ou rival, passa a ser mesmo o inimigo em si mesmo, o inimigo das instituições, da legalidade, da sociedade como um todo.

Além disso, a política em si mesma não é somente a esfera de disputa por uma agenda. É também um espaço de poder, de negociação, de chantagem, de busca por vantagens e interesses conspícuos. Isso inclui usar de recursos institucionais à disposição para favorecer seu grupo político ou candidato de preferência, de maneira legal ou não. É isso o que faz um prefeito na hora que escolhe o local de uma praça ou a ordem de implantação de uma nova iluminação pública, assim como um presidente quando decide por políticas econômicas que favorecem este ou aquele grupo econômico. Por isso que comumente se diz que são decisões “políticas”.

Por conseguinte, no momento que ministros da Suprema Corte abraçam um papel politicamente ativo, também começam a aparecer suspeitas de outras motivações da ação que ultrapassam interesses ideológicos. No caso brasileiro, os próprios magistrados não parecem se importar com esse tipo de comprometimento, não se esforçando em desmentir matérias na imprensa sobre sua atuação nos bastidores ou mesmo se posicionando publicamente sobre assuntos que não deveriam ser de sua alçada.

Então pululam aberrações, como ministros mandando censurar reportagens que os desabonem pessoalmente; negociando com parlamentares que figuram como réus em processos nas Cortes para impedir o avanço de agendas legislativas; ou simplesmente indicando cargos para o Executivo ou candidatos preferenciais para a Procuradoria Geral da República e vagas em aberto nos tribunais superiores de Justiça.

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Quando as coisas ficaram piores

Esse novo arranjo reflete a falência do chamado Presidencialismo de Coalizão, um regime cuja governança se dava pela combinação de multipartidarismo, proporcionalidade eleitoral e presidencialismo com poderes imperiais, com um Executivo organizado com base em grandes coalizões para atender aos interesses de uma base parlamentar ampliada.

Em 2019, a demolição desse modelo passa por um processo de aceleração, precipitado pela própria falta de disposição do Presidente Jair Bolsonaro em compor grandes coalizões segundo os padrões de negociação estabelecidos. Também é reflexo do descompasso entre a agenda de direita eleita nas urnas em 2018 e as preferências ideológicas das Cortes, que refletiam os interesses dos social-democratas e socialistas que governaram o país por mais de 20 anos.

O primeiro sintoma de agravamento ficou evidente quando da censura à revista Crusoé, em matéria que citava as ligações do ministro Dias Toffoli com investigados da Lava Jato.

Com a pandemia, o enfraquecimento da capacidade de mobilização política veio junto com a hiperinflação dos poderes das Cortes. O STF impediu a nomeação de Ramagem para a Polícia Federal; alijou o Poder Executivo de prerrogativas tradicionalmente estabelecidas; mudou as regras do jogo seguidamente, autorizando e desautorizando autoridades eleitas; impôs mecanismos de censura à liberdade de expressão; abriu inquéritos de ofício, sem objeto definido e sem perspectiva de encerramento (Fake News, Milícias Digitais, Atos Antidemocráticos), nos quais os ministros figuravam como vítimas, acusadores, investigadores e juízes dos processos; impediu que advogados de defesa tivessem acesso aos autos dos processos; ordenou bloqueio de contas bancárias e perfis de cidadãos sob acusações pouco fundamentadas; e anulou as condenações do presidente Luís Inácio Lula da Silva, demolindo o edifício que fundamentava a Operação Lava Jato.

Inicialmente os abusos que foram se somando um a um tiveram no escudo da ameaça contra a saúde pública um argumento forte para sua justificação perante parcela da sociedade. Logo, com o fim da pandemia, a argumentação passou a girar em torno da defesa da democracia contra uma ameaça iminente, que sempre girava em torno da figura de Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

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Nesse caso, os ministros encontraram no movimento de origem alemã intitulado Democracia Militante uma muleta para seu ativismo declarado. A teoria, exposta por Karl Lowenstein em 1937, defende que a democracia possua seus próprios dispositivos de exceção para usar contra as pessoas que ameacem sua existência, incluindo-se a restrição de direitos políticos e a censura.

Nesse processo, chama a atenção a aliança entre a lógica institucional e determinados setores dos meios de comunicação. As especulações em torno de um suposto Gabinete do Ódio, por exemplo, mal desenhado em reportagens incompetentes, passaram a ensejar investigações parlamentares, que colecionavam depoimentos desconexos, mas cuja existência servia para justificar ações policiais que nunca chegavam à conclusão alguma, mas que iam somando quebras de sigilo, prisões e operações de destruição de reputação que transformavam os suspeitos em inimigos públicos.

Dessa forma, a atuação do bolsonarismo passou a ser classificada como uma ameaça perene à democracia. A identificação dessa ameaça se dava principalmente em torno das críticas do bolsonarismo às decisões dos ministros do Supremo. Em vários momentos, o então presidente da República demonstrou disposição de fazer o enfrentamento político da questão, mas nunca parecia encontrar os meios adequados para avançar numa agenda de reforma institucional eficaz.

Bolsonaro influenciou diretamente a organização de grandes protestos de rua em mais de uma vez, onde muitas vezes subiu o tom contra ministros do STF e adversários políticos. Porém, nada disso parece ter ultrapassado as fronteiras do tensionamento institucional. Para além da incompetência política do seu entorno, não se pode descartar a possibilidade que a existência de processos judiciais envolvendo figuras poderosas do Congresso tenha dificultado o avanço de qualquer proposta mais concreta de contenção dos excessos da Suprema Corte.

Com esse papel de defesa da ordem democrática contra o governo que a ameaça, as Cortes assumiram uma posição proativa durante as eleições de 2022.

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O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), comandado por ministros do STF, dentre os quais os mesmos que protagonizam as práticas questionáveis aqui elencadas, tomou uma série decisões que contribuíram para levantar em muita gente dúvidas sobre a idoneidade do processo.

Entre as decisões mais polêmicas das Cortes, encontram-se a desmonetização e cassação de perfis em redes sociais, o bloqueio de contas bancárias, a inclusão de apoiadores de atos públicos nos diversos inquéritos abertos pelo Supremo, a proibição e censura prévia de um documentário produzido pela Brasil Paralelo, a proibição de veicular vídeos nos quais o então candidato Lula defendia a legalização do aborto, criticava a classificação da Nicarágua como ditadura, entre outras decisões controversas.

Depois da posse de Lula, as arbitrariedades judiciais que foram se somando tem certamente contribuído para reforçar na população o sentimento de uma ditadura em curso. Principalmente no que concerne às prisões de adversários e/ou opositores do governo, bem como ao seu tratamento durante esses eventos.

Nesse aspecto, a morte do preso Cleriston Cunha, um dos acusados dos eventos de 8 de janeiro, foi bastante significativa. A defesa de Cleriston alega que ele sequer havia se envolvido diretamente nos atos. No aspecto humanitário do problema, o preso já tinha sido encaminhado seguidamente para o atendimento hospitalar, devido a problemas graves de saúde, mas teve seu pedido de domiciliar negado pelo STF. Em 20 de novembro, Cleriston infartou e morreu atrás das grades.

O caso se soma a outros anteriores, que nunca ficaram esclarecidos, como o do jornalista Oswaldo Eustáquio, que entrou na prisão andando e saiu na cadeira de rodas. Como eles, outros presos têm alegado tratamento ilegal ou desumano, como o Coronel José Eduardo Naime, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, entre outros.

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Por mais surpreendente que possa parecer, um observador atento não ficaria surpreso com esse posicionamento. A identificação do Supremo com uma agenda de luta contra inimigos da democracia, que coincidiam em gênero, número e grau com o então presidente e seus apoiadores, foi igualmente partilhada pela campanha petista, que colocava Lula como única alternativa possível para a preservação do Estado Democrático de Direito.

Essa identidade comum, amplificada por escolhas editoriais, reportagens e comentaristas de renome na grande imprensa, contribuiu para a percepção comum entre o eleitorado de Bolsonaro que a disputa não era entre dois candidatos, mas uma luta contra um “consórcio” envolvendo os tribunais superiores, amplos setores da esquerda e parcela considerável dos meios de comunicação. Diante desse quadro, como era possível pensar que os juízes responsáveis pela regulação da disputa não agiriam em prol do campo considerado democrático, contra aqueles que supostamente ameaçavam o regime político vigente?

Certa ou errada, essa percepção encontra respaldo na identidade comum que os atores envolvidos tomaram para si.  Esta se tornou parte integrante do discurso oficial após o 8 de janeiro, quando uma insurreição de fanáticos promoveu o maior quebra-quebra da história de Brasília, num evento em que resta muita coisa a explicar, como a ausência das principais autoridades da República, a falta de resposta para alertas da Abin sobre os riscos do evento e a ineficácia de instituições de controle social responsáveis pela segurança dos prédios.

Grande parte da mídia tratou de pintar o ato desde o início como uma “tentativa de golpe de Estado”, como se houvesse uma ameaça iminente de tomada dos poderes estabelecidos na balbúrdia de uma turba ensandecida, sem armas de fogo, apoio militar ou institucional. As prisões que se seguiram, juntamente com as investigações e o julgamento relâmpago dos envolvidos, chancelaram essa tese, sem que houvesse muita chance de argumentação em contrário, resultando na condenação de centenas de pessoas comuns pela mais alta instância do Poder Judiciário, que figurou como vítima, investigadora, acusadora e juiz de seus supostos algozes, condenados com penas pesadas e sem direito à apelação.

Para completar, a incompetência política de ministros do STF tem coroado a percepção de muitas pessoas quanto à legitimidade de todo o processo. Na diplomação do presidente Lula, o ministro Alexandre de Moraes foi agraciado com um cumprimento de natureza militar pelo corregedor da corte eleitoral, Benedito Alves, enquanto levava Lula ao plenário do TSE para receber o diploma. “Missão dada é missão cumprida”, disse Benedito, o mesmo que, poucos meses antes, ganhara calorosos tapinhas no rosto de  Lula quando da posse de Alexandre de Moraes como Presidente do TSE.

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Poucos dias depois, Moraes, Gonçalves e Ricardo Lewandowski (hoje ministro de Lula), o vice-presidente do TSE, participaram de uma celebração organizada pela agora primeira-dama, Rosângela Silva, na residência do advogado criminal Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, defensor de muitos dos investigados pela Lava Jato. A comemoração também teve a presença dos ministros do STF Dias Toffoli e Gilmar Mendes, além de Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União, conhecido por sua recente ação contra o ex-procurador da Lava Jato e posteriormente deputado federal cassado, Deltan Dallagnol. O evento foi animado por um grupo de samba.

Essa quebra total de decoro, onde juízes de uma disputa comemoram ao lado dos vencedores, não passou despercebida pela população. Para completar o quadro, poucos meses depois, o futuro presidente do STF, Luís Roberto Barroso, em discurso exaltado na União Nacional dos Estudantes, declarou que “derrotamos o bolsonarismo”, para uma plateia de esquerdistas entusiasmados. Enebriados pela bolha midiática, os ministros têm demonstrado seguidamente a própria inaptidão política, contribuindo para consolidar na percepção de dezenas de milhões de brasileiros a imagem de um regime sob o comando de um consórcio que envolve os juízes que deveriam atuar na sua regulação.

Um caso de análise para a Ciência Política

Infelizmente, as autoridades envolvidas nesses eventos não parecem dispostas a rever seus posicionamentos. É provável que atribuam a percepção compartilhada por milhões de pessoas ao efeito da “desinformação” produzida pelas redes sociais bolsonaristas e utilizem disso como argumento para sua regulação, possivelmente pela ação do próprio Poder Judiciário. Contudo, a bolha de ressentimento que parece estar se formando por baixo desse esforço da oficialidade não deveria ser ignorada.

Tradicionalmente, esse receituário de perda de legitimidade das instituições costuma descambar em radicalização extrema na América Latina, quando associado com crises econômicas que, cedo ou tarde, sempre vêm, principalmente num contexto de falta de controle de gastos públicos, redução do preço das commodities, aumento da inflação dos alimentos e abandono de qualquer esforço de combate à corrupção.

Ademais, a percepção dos brasileiros quanto ao tipo de regime que vigora no país já é motivo suficiente para uma revisão dos critérios utilizados para analisar esse mesmo regime. A grande profusão de intervenções de natureza judicial que afetam a possibilidade da existência de uma oposição livre, com consequências para o processo mesmo de disputa eleitoral, impõem um elemento a mais para a avaliação da sociedade brasileira contemporânea.

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Tradicionalmente, a ciência política tem utilizado do termo “democracia iliberal” para avaliar os regimes políticos na América Latina. Fareed Zakaria, ao cunhar o termo no final dos anos 1990, identificou um fenômeno global onde governos eleitos democraticamente ignoram limites constitucionais e privam seus cidadãos de direitos fundamentais, um padrão que também tem sido observado em vários países da América Latina​​.

Este conceito reflete uma realidade na qual, apesar da existência de processos eleitorais, há uma erosão significativa da liberdade de imprensa, restrições à formação e atuação de organizações, e limitações no acesso a informações, criando um ambiente onde a competição política genuína é comprometida. A análise desse fenômeno na região, especialmente no período de 1978 a 2004, tem revelado que a democracia iliberal tornou-se a norma, com transições de regimes muitas vezes não levando a democracias liberais plenas, mas a formas iliberais de governo​​.

Nesses casos, haveria uma espécie de coexistência entre eleições livres e justas com um ambiente institucional deteriorado, podendo haver restrição a direitos fundamentais como liberdade de expressão, funcionamento da imprensa, livre associação ou circulação de pessoas. Afinal, não faria muito sentido falar em democracia plena num país onde grandes parcelas do território são dominadas pelo crime organizado, por exemplo.

No contexto presente, a discussão se o caso brasileiro é uma democracia liberal ou uma semidemocracia parece destinada à crítica roedora dos ratos. Talvez o país possa estar atingindo o patamar daquilo que comumente tem se denominado “autoritarismo eleitoral”. O conceito é utilizado para descrever sistemas políticos que realizam eleições regulares, mas onde essas eleições não cumprem com os padrões internacionais de liberdade e justiça, servindo mais como uma ferramenta de legitimação para o regime no poder do que como uma genuína expressão da vontade popular.

Estudiosos desse tipo de regime, como Andreas Schedler e Lucan Way, focam em como regimes autoritários podem manter uma fachada de competição democrática, enquanto efetivamente limitam as chances de alternância de poder por meio de restrições à liberdade de imprensa, uso indevido de recursos estatais, e outras formas de manipulação eleitoral.

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Na verdade, a ciência política não tem um termo muito apropriado para descrever o que está se passando por aqui. Até mesmo o conceito de “juristocracia”, que descreve um sistema ou processo político no qual os tribunais, especialmente as cortes constitucionais ou supremas, desempenham um papel central na determinação das políticas públicas, muitas vezes tendo a última palavra em questões controversas que vão desde direitos individuais até políticas governamentais amplas, parece impreciso e insuficiente para descrever todas as dimensões do que ocorre atualmente.

A situação de insegurança jurídica no qual o país se encontra não me permite cravar uma análise precisa sobre a questão. O que me parece é que a Nova República como a conhecíamos deixou de existir já faz algum tempo. A percepção de grande parte dos brasileiros é que o Brasil não é uma democracia, nem está inabalada, precisamente o contrário do mote alardeado pelo discurso oficial. E acho que as autoridades públicas deveriam levar mais a sério a opinião da população, quando tanto investimento numa narrativa parece estar indo por água abaixo.

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