No início dos anos 70, o escritor Nelson Rodrigues assistia a jogos do Fluminense no Maracanã ao lado do presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici. As informações de que havia tortura no Brasil eram recorrentes e Nelson se recusava a acreditar nelas porque tinha ouvido da boca do próprio Médici que tudo não passava de boato.
Até que Nelsinho, filho do escritor que vivia na clandestinidade e praticava ações armadas com o grupo MR-8, foi preso, em 1972. Ao visitar Nelsinho, o pai viu que ele estava muito machucado. Então, mudou a postura. Passou o resto da década relatando o caso de Nelsinho e pedindo, em cartas e artigos, por uma anistia ampla, mas que não incluísse os torturadores.
Nelson Rodrigues precisou experimentar um drama familiar para se tornar um crítico aberto da ditadura – ainda que antes tenha se posicionado, de maneira pontual, contrário à censura da imprensa e à prisão de personalidades do meio cultural, como compositor Caetano Veloso.
Para o presidente João Figueiredo, Nelson escreveu, em junho de 1979, no jornal Última Hora: “Escuta aqui, Figueiredo. Muitos presidentes realizaram obras maravilhosas, faraônicas. Construíram estradas, acabaram com a inflação – o diabo. Mas nenhum deles teve a chance que você tem. A bondade está acima das leis. A generosidade, a clemência, a misericórdia são os mais belos sentimentos que um ser humano pode ter. Deixe o petróleo pra lá. A inflação que se dane. Um país não pode viver dividido. Você estendeu a mão. Como podem apertá-la os brasileiros que estão detidos? Solte esses rapazes, Figueiredo. Meia-dúzia de obras gigantescas não colocam um presidente na História. Você é o único brasileiro que tem essa oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo, solte meu filho.”
Nelsinho seria libertado em 1979. O pai morreria em 1980. Conhecido anticomunista e crítico dos grupos de esquerda, Nelson não foi a única personalidade conservadora que, em algum momento, fez oposição ao regime militar.
Procurados, historiadores e especialistas não quiseram falar sobre o assunto. Alegaram que os nomes de intelectuais citados pela reportagem apoiaram a ditadura em algum momento, principalmente no início.
Oposição cultural e religiosa
Defensora de primeira hora da ditadura e amiga pessoal do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, que governou o Brasil entre 1964 e 1967, a escritora Raquel de Queiroz, que na juventude havia sido militante do Partido Comunista mas desde os anos 30 se aproximara da direita, seguiu defendendo o regime militar até o fim.
Mas, assim como Nelson Rodrigues, ela criticava a censura e a perseguição aos adversários do regime. Poucos meses depois do golpe militar, Queiroz já escrevia que “o governo precisa identificar e punir os inimigos públicos que estavam leiloando o Brasil a essa espécie de socialismo degenerado que se convencionou chamar comunismo internacional”. Mas fazia a ressalva de que essa punição deveria ser efetivada “sem se atacar essa cidadela que o próprio coração da democracia: a liberdade de pensamento e de palavra”.
O governo Castelo que Raquel de Queiroz defendia foi criticado pelo escritor Gustavo Corção, mas pelo motivo oposto. Segundo ele, o governo colocava em risco o combate ao comunismo ao não ser firme o bastante com a oposição. Corção representa um raro caso de intelectual que criticou a ditadura por não ser rígida o suficiente. “Devo dizer-lhe que não sou grande admirador desse governo”, escreveu ele sobre Castelo Branco.
“Disse que os militares salvaram o Brasil de uma invasão comunista, mas não disse que daí por diante governaram bem. Acho que eles foram tímidos e quiseram entrar depressa demais no terreno da legalidade. Os atos institucionais, que os militares tiveram a má ideia de encomendarem aos mais ilustres juristas, na minha opinião, são umas porcarias.” Em outra ocasião, Corção justificou o uso de violência contra comunistas: “Há violências boas. Há violências santas. Deus ama os violentos e vomita os mornos”.
Mas o mais comum era que os defensores do regime militar criticassem a censura e a tortura, inclusive entre alguns líderes católicos conservadores.
Uma frase famosa de Nelson Rodrigues questionava os católicos de esquerda: “A Igreja está ameaçada pelos padres de passeata, pelas freiras de minissaia e pelos cristãos sem Cristo”. Mas houve também lideranças religiosas conservadoras que agiram em defesa dos direitos humanos durante o período de perseguição. Foi o caso do cardeal Eugenio de Araujo Sales. Conservador, opositor dos cristãos adeptos da Teologia da Libertação, amigo do político baiano Antonio Carlos Magalhães, ele assumiu o comando da igreja na Guanabara em 1971.
Dom Eugenio permaneceria no posto (já com a Guanabara fundida ao Rio de Janeiro) por 30 anos. Neste meio tempo, manteve uma relação próxima com os militares, ao mesmo tempo em que criou a Pastoral Penal e celebrava, pessoalmente, missas de Natal e ano novo nas unidades onde havia presos políticos.
Oposição política
No caso do político Carlos Lacerda, um dos principais apoiadores do golpe militar de 1964, a oposição surgiu a partir do momento em que ele se viu sem espaço no governo. “Dias após o golpe contra Jango, Lacerda apoiou a indicação e posse imediata de um dos chefes do golpe para a Presidência da República. A escolha recaiu sobre um oficial lacerdista, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco”, afirma o pesquisador Carlos Alberto Gasparini no artigo Carlos Lacerda e o Golpe Militar de 1964. “Após a posse deste, em 15 de abril de 1964, a meta principal do governador passou a ser a cassação dos direitos políticos do ex-presidente JK [Juscelino Kubitschek], para uma evidente operação de limpeza com vistas à sucessão presidencial – de fato, Lacerda era candidato às eleições de outubro de 1965”.
Mas o plano deu errado e Lacerda rapidamente se posicionou como oposição. “Com a prorrogação do mandato de Castelo até 15 de março de 1967 e com a data da eleição presidencial transferida para outubro de 1966”, escreve Gasparini, “[Lacerda] passou a fazer oposição aberta ao governo, pois tais medidas atrapalhavam seus objetivos de chegar à Presidência da República”.
A partir de então, Lacerda passou a ser investigado e perseguido pela ditadura. Em outubro de 1966, ele chegou até a se unir aos antigos adversários, os ex-presidentes Juscelino e João Goulart, numa Frente Ampla pela redemocratização. Em 28 de outubro de 1966, em seu jornal, a Tribuna de Imprensa, ele publicou um manifesto pedindo eleições livres e diretas e reforma partidária.
Carlos Lacerda se manteria na oposição até falecer, em maio de 1977, poucos meses depois das mortes de JK e Jango.
Oposição militar
Entre os militares, também houve oposição, incluindo entre aqueles que não se alinhavam com a esquerda. Ao todo, 6.591 foram perseguidos pela ditadura. Foi o caso, por exemplo, de Rui Moreira Lima, brigadeiro com 94 missões como piloto da caça na Itália, na Segunda Guerra Mundial, no currículo. Por se opor ao golpe de 1964, ele foi preso e aposentado compulsoriamente.
Afastamento do trabalho, períodos de detenção e pressão sobre os familiares se tornaram o procedimento padrão contra militares de alta patente que se manifestassem abertamente contra o regime. Foi assim com outro brigadeiro, Francisco Teixeira, também veterano da Segunda Guerra. Preso em três diferentes ocasiões, ele teve os direitos políticos cassados e seus filho e a filha foram detidos sem provas. Pouco antes de morrer, em 1983, Teixeira criou uma entidade para defender os colegas perseguidos desde a ditadura, a Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM).
Já o marechal Henrique Teixeira Lott, candidato a presidente em 1960 e conhecido por sua posição firme contra qualquer tipo de golpe desde que garantiu a posse de Juscelino, em 1955, foi isolado depois do golpe. Ao morrer, em 1984, não recebeu nenhum tipo de honra militar. Lott era conservador, nacionalista e anticomunista. Mas havia sido perseguido por não concordar com os rumos do regime militar.
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