No documentário Democracia em Vertigem, Petra Costa não adulterou apenas fotos para mostrar que a guerrilha urbana de esquerda era inofensiva nos anos 1970. Ao longo de mais de duas horas, praticamente a cada três ou quatro frases o espectador encontra uma omissão importante, uma falsa narrativa ou uma indução conspiratória.
Em meio a isso, há registros caricatos de um ou outro crítico ao PT, falas emocionadas da mãe da diretora sobre Dilma, e Lula se comparando a Jesus Cristo.
Mas o filme cumpre seu papel: o de ignorar fatos, dados e evidências para vender ao mundo a visão que o PT tem sobre o impeachment, a prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro.
Aqui estão as 45 inconsistências do filme.
1. Dimensão das manifestações a favor do impeachment de Dilma
Houve diversas manifestações populares contra o governo de Dilma Rousseff, especialmente em cinco oportunidades. O protesto do dia 13 de março de 2016 foi o maior ato político da história do país, superando as Diretas Já. O documentário mostra alguns poucos reacionários aleatórios, omite a real dimensão dos protestos e o quanto a saída da presidente mais impopular da história era desejada pelos brasileiros.
2. “Não havia expectativa de uma prisão tão rápida. Pegou todo mundo de surpresa”
O filme diz que “seu processo [o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva] chega à segunda instância mais rápido do que qualquer outro da Lava Jato”. Não é bem assim. Um levantamento feito pelo economista Carlos Goés mostrou que o período de tramitação do processo dele entre a condenação na primeira e a segunda instância do TRF-4 não foi atípica. “Olhando os dados, mesmo somente para aqueles que estão restritos aos da Lava Jato, não dá pra dizer que há nada de extraordinário na tramitação do processo do Lula”, afirmou.
3. “Entre os 443 parlamentares, apenas 2 eram da classe trabalhadora”
Petra diz que Lula decidiu se tornar político quando viu que apenas 2 entre 443 parlamentares eram da classe trabalhadora. Cegamente, confia na fala de Lula, não a checa (uma metodologia que domina todas as duas horas de documentário). A frase muito provavelmente é falsa, já que nunca houve 443 parlamentares no Congresso.
4. “O PT representava a esperança de que as desigualdades do país seriam enfrentadas”
Um estudo feito pelo World Wealth and Income Database apontou que a desigualdade de renda no Brasil não caiu entre 2001 e 2015. O crescimento econômico verificado no país teve pouco impacto na redução da desigualdade, porque beneficiou principalmente os 10% mais ricos.
5. “Com Lula, a taxa de desemprego atinge o menor índice da história”
A dissertação do economista Rafael Baccioti mostrou que as taxas de desemprego registradas no Brasil nos anos 1980, 1970 e 1950 foram menores do que durante o governo Lula, com números entre 2% e 3%.
6. Mensalão
No julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, ficou claro que o Mensalão foi um esquema de desvio de dinheiro público cuja finalidade era a compra de apoio parlamentar no Congresso Nacional. Tudo para favorecer a aprovação de projetos de interesse do governo Lula.
7. Dilma perdeu prestígio porque atacou bancos e juros
Quando Dilma assumiu a presidência, a taxa Selic estava em menos de 8,75%. Ao final de 2011, ela chegou a 12,5%, quando passou a cair até 7,25%. Não deu certo, os juros voltaram a subir e passaram dos 14%. Só voltaram a cair quando a equipe econômica de Michel Temer assumiu. Dilma discursava contra rentistas, mas seu governo foi o que mais os favoreceu.
8. "Cotas racistas"
O documentário mostra uma manifestante que pede a saída de Dilma e diz que o PT instituiu “cotas racistas”. Mas uma pesquisa de 2013 realizada pelo Ibope apontou que 62% dos brasileiros eram a favor dos três tipos de cotas no acesso a universidades: baixa renda, escola pública e raciais. Quando analisadas apenas a reserva de vagas para alunos de escola pública e pobres, o percentual chegava a 77%.
9. Bolsa Família foi criado por Lula
O documentário sugere que a ajuda aos mais pobres foi uma benevolência exclusiva dos governos petistas e ignora que houve programas de distribuição de renda antes dos governos do PT. Em 2001, o próprio Lula criticou o Bolsa Escola de FHC, chamando-o de "esmola".
10. Michel Temer foi um traidor desde o início do mandato
Quando a onda de protestos anti-Dilma varreu o país no início de 2015, Michel Temer escreveu em seu Twitter: “O impeachment é impensável, geraria uma crise institucional. Não tem base jurídica e nem política". Ao longo daquele ano, ele assumiu a articulação política do governo e desempenhou bem a tarefa. Quem afirmou isso foi o então deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), um dos vice-líderes do governo Dilma na Câmara.
11. “Dilma tirou cargos do PMDB”
A rebelião de Temer se deu, segundo o documentário, porque Dilma tentou restringir a influência do PMDB no governo. Não foi bem assim. Em 12 de março de 2016, ele conseguiu evitar que o partido rompesse com o governo. Quatro dias mais tarde, a presidente nomeou Mauro Lopes ministro da Aviação Civil.
12. Crise econômica
Por algum motivo, Petra não achou que era uma boa ideia explicar que as políticas econômicas da Era PT levaram à maior crise econômica da história brasileira e a mais de 10 milhões de desempregados. Só depois de meia hora é que ter havido alguma crise econômica é mencionada, sem explicar suas dimensões, é claro.
13. Petrobras espionada pela CIA
Documentos vazados em 2013 indicaram que o governo dos Estados Unidos teria espionado a Petrobras. Apesar da gravidade, é um enorme salto argumentativo deduzir que desejavam o impeachment para poder pôr as mãos na companhia.
14. “Moro: homem treinado nos Estados Unidos”
O então juiz participou em 2007 do International Visitors Leadership Program, o mesmo programa do qual participou… Dilma Rousseff em 1992.
15. “Aécio não aceita o resultado”
O documentário diz que Aécio Neves ele não aceitou o resultado da eleição e por isso entrou no Tribunal Superior Eleitoral contra a chapa Dilma-Temer. Mas o próprio deputado, antes senador, admitiu que entrou com a ação apenas para “encher o saco” do PT.
16. “Aécio apoia o impeachment”
Quando os pedidos de impeachment de Dilma começaram, Aécio Neves rejeitou a tese. Aécio decidiu aderir ao movimento apenas em 2016, quando compareceu às manifestações em São Paulo e foi hostilizado na Avenida Paulista.
17. “Grupos de direita usam algoritmos de redes sociais”
Estudos mais recentes mostram que a influência de algoritmos de redes sociais para a polarização política foi superestimada. Além disso, militantes e grupos de esquerda usam as mesmas arenas do debate público que a direita.
18. Crise internacional
O documentário fala que após uma “queda global em commodities e série de erros econômicos o país entrou em crise”. Mas um relatório do FMI mostra que 183 dos 192 países analisados registraram crescimento econômico superior ao brasileiro entre 2015 e 2016. De acordo com estudo do economista da FGV Marcel Balassiano, mais de 90% dos países do mundo cresceram mais do que o Brasil entre 2011 e 2018.
19. Dilma responsável por todos os problemas do país
Para Petra, quem era a favor do impeachment “acreditava que a presidente era a responsável por todos os problemas do país”. Sem nenhum dado ou pesquisa, é só a opinião dela mesma. Um estudo do professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Reinaldo Gonçalves concluiu que cerca de 90% do resultado negativo do desempenho econômico durante o governo Dilma se deu a partir de “falhas nacionais”, isto é, podem ser atribuídas à forma como o país foi conduzido.
20. Fraude fiscal é pior que corrupção
Dilma sofreu impeachment porque o Congresso considerou crime de responsabilidade as fraudes fiscais e contábeis protagonizadas pelo governo. Chamá-las de “pedaladas fiscais” é diminuir a magnitude delas e suas consequências perversas. O economista Carlos Goés explicou a gravidade dessas fraudes.
21. Julgamento do Tribunal de Contas
O pedido de impeachment foi baseado no julgamento do Tribunal de Contas da União, que rejeitou as contas de Dilma Rousseff em outubro de 2015 devido às fraudes fiscais. Nada disso é mencionado no documentário.
22. “Precisamos de uma comissão internacional”
“Por que não se cria uma comissão internacional de direito público para analisar se teve fraude fiscal ou não?”, pergunta Lula no documentário. Simples: é para isso que existe o TCU, e ele rejeitou as contas de Dilma.
23. Quando começou a queda de Dilma?
Para o então deputado federal Jean Wyllys (PSOL), a queda de Dilma começou no Dia do Trabalho de 2013, quando a presidente teria discursado dizendo que ricos, banqueiros e rentistas tinham de “pagar pela crise”. O discurso, na verdade, tratou da correção da tabela do Imposto de Renda e de reajuste dos valores do Bolsa Família. Não faz sentido acreditar que empresários manipulariam os balanços de suas próprias empresas, com muitos indo a falência, para prejudicar uma presidente.
24. Discurso de posse de Michel Temer
A edição do documentário sugere que Temer estaria atentando contra o estado laico ao afirmar que seu governo seria “um ato religioso”. Mas o que ele realmente disse foi “o que nós queremos fazer agora, com o Brasil, é um ato religioso, é um ato de religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso País”. Era uma referência a unificar a sociedade, dividida e polarizada após o impeachment.
25. O acordão de Romero Jucá e Sérgio Machado
Em áudio vazado de Romero Jucá e Sérgio Machado, o então senador afirma que era mais fácil mudar de governo e estancar a sangria, fazer um acordo nacional. Petra afirma que essa seria a motivação do impeachment. Mas omite maldosamente o trecho em que Machado revela: “Eu acho o seguinte, a saída [para Dilma] é ou licença ou renúncia. A licença é mais suave. O Michel forma um governo de união nacional, faz um grande acordo, protege o Lula, protege todo mundo”. O suposto acordão era para proteger o PT também.
26. Arrependimento de Lula
Quando Petra pergunta a Lula se ele se arrependeria de algo, ele lamenta não ter enviado projeto ao Congresso “para regular os meios de comunicação”. Porém, em 2004 seu governo encaminhou um projeto ao Congresso para criar um conselho de classe com poderes para punir jornalistas. A proposta não foi aprovada.
27. Liberdade de imprensa do PT
Lula se gaba de “fazer o que nós fizemos” com liberdade de imprensa, mas não foi bem assim. Em 2004, por exemplo, Lula pediu a expulsão do jornalista americano Larry Rohter porque ele escreveu que o ex-presidente nutria certo apreço por bebidas alcoólicas, sem falar nos milhões pagos a blogueiros para que eles defendessem o governo.
28. Liberdade para legislar
Lula também gabou-se dos governos do PT terem deixado “o Congresso funcionando livremente”. Mas foi sob o seu próprio governo que ocorreu o Mensalão, justamente para evitar que congressistas se opusessem livremente aos projetos do governo.
29. Quais as acusações contra Lula?
O documentário afirma que, depois de dois anos de investigação, a única “acusação de fato” era de que Lula teria recebido um triplex de uma empreiteira. Só isso. Ele ignora que havia diversos outros processos contra o ex-presidente, inclusive alguns dos quais ele foi inocentado. Lula foi condenado em dois processos por corrupção e lavagem de dinheiro, além de ser réu em seis outras ações penais.
30. Marisa morre 4 meses após ser acusada
O documentário sugere que a ex-esposa de Lula, Marisa Letícia, morreu em consequência da perseguição sofrida por ele e pela família. O que o filme não conta é que o ex-presidente atribuiu a Marisa Letícia a responsabilidade pelos aluguéis não pagos em um imóvel que o MPF afirma ser de fachada e adquirido com dinheiro da Odebrecht.
31. Lula liderava pesquisas, mas…
Em 2018, Lula liderava as pesquisas para a Presidência. Mas também tinha a maior rejeição entre todos os candidatos, com 31% (tecnicamente empatado com Jair Bolsonaro). Uma eventual vitória não seria fácil.
32. Lava Jato x economia
Em uma audiência, Lula pergunta ao juiz Sergio Moro se ele “se sente responsável pela Lava Jato ter destruído a indústria de construção civil deste país?” Mais uma narrativa petista: a de que a Lava Jato prejudicou a economia no governo Dilma. Estudos, porém, mostram que integridade e combate à corrupção ajudam o ambiente de negócios e a economia.
33.Votos "esdrúxulos" dos parlamentares
O documentário mostra diversos parlamentares usando motivos alheios à acusação para justificar o voto pelo impeachment de Dilma e, assim, sugere que o procesos foi injusto. Mas o impeachment não é um instituto somente jurídico, mas também político. O teor dos votos no impeachment de Fernando Collor foi similar.
34. Condução coercitiva de Lula
O documentário critica a condução coercitiva de Lula para um depoimento, apesar de afirmar que ele nunca havia se negado a testemunhar na Polícia Federal. Mas o ex-juiz Sergio Moro justificou o pedido dizendo que a condução coercitiva era necessária para evitar maiores tumultos e transtornos.
35. Conversa vazada entre Dilma e Lula
O documentário pormenoriza o teor da conversa e foca na ação de Sergio Moro, que posteriormente foi anulada pelo ministro do STF Teori Zavascki. Ambos foram processados pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot por obstrução de justiça, mas foram absolvidos.
36. Conversa entre Temer e Joesley Batista
O documentário edita maliciosamente um diálogo que sugere que o então presidente Michel Temer teria apoiado possível obstrução de justiça feita pelo empresário Joesley Batista a fim de Eduardo Cunha não delatá-los. O ex-presidente foi absolvido em 2019 porque a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal foi considerada “frágil”. O laudo pericial do áudio apontou interrupções, ruídos e falas ininteligíveis que, suprimidos, impediram compreender o sentido completo da conversa.
37. "O Congresso muda de posição. Temer não deve ser investigado?"
O documentário critica o fato de parlamentares que antes se diziam defensores do combate à corrupção terem protegido Michel Temer das investigações. Mas as investigações contra Temer continuaram depois que ele deixou o cargo. Temer até foi preso por alguns dias.
38. “Temer fez tudo que eles queriam, leiloando reservas de petróleo para empresas estrangeiras”
A menção do documentário se refere à mudança do modelo de concessão do Pré-Sal. Antes em regime de partilha, o modelo mudou para concessão. Mas, desde 2015, integrantes da equipe ministerial de Dilma eram favoráveis à alteração. Tanto o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, quanto o da Fazenda, Joaquim Levy, defenderam mudanças na legislação.
39. “Temer fez tudo que eles queriam, enfraquecendo leis que proíbem o trabalho escravo”
Em 2017 o Ministério Público do Trabalho editou uma portaria que buscava tornar regras mais objetivas a fim de coibir eventuais arbitrariedades de agentes da Administração Pública. Isso porque mais de 90% das denúncias acerca de trabalho escravo eram julgadas improcedentes ao final do processo. O documentário não mostra que, por decisão da Ministra do STF Rosa Weber, a norma foi suspensa e nunca entrou em vigor.
40. “Temer fez tudo que eles queriam, aprovando medidas de austeridade que prejudicariam os mais pobres”
As medidas de austeridade começaram com Dilma Rousseff logo após vencida a eleição em 2014, e se intensificaram em 2015, ano em que foram cortados 87% do valor dos programas sociais.
41. Dimensão das manifestações contra Temer
Segundo estimativas das polícias militares, os protestos contra Dilma reuniram, em centenas de cidades, 2,4 milhões de pessoas em 15 de março de 2015 e 3,6 milhões em 13 de março de 2016. Já as manifestações pedindo o “Fora Temer" reuniram, em setembro de 2016, 48 mil manifestantes.
42. Sergio Moro tirou Lula da eleição presidencial
Uma jornalista fala, em inglês, que a prisão de Lula decretada pelo Sérgio Moro o tirou de vez da eleição presidencial. Não é verdade: a suspensão dos direitos políticos se dá a partir da condenação em segunda instância por causa da Lei da Ficha Limpa, sancionada pelo próprio Lula.
43. E a facada?
O documentário que fala sobre polarização e enfraquecimento da democracia ignorou uma tentativa de assassinato contra o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral.
44. Um passado clandestino falso para seus pais
O documentário conta um pouco da história familiar de Petra e os mostra militantes de esquerda que atuaram na clandestinidade durante a ditadura. Mas, de acordo com uma análise do jornalista Astier Basílio em O tempo do Poeira: História e memórias do jornal e do movimento estudantil da UEL nos anos 1970 2018), “todos os anos, os pais de Petra visitavam a família em Belo Horizonte. Era, portanto, uma clandestinidade que permitia férias.”
45. A mãe da diretora não é alheia aos negócios da empreiteira da família
A mãe de Petra, Marilia Andrade, não é uma comentarista política neutra e alheia aos negócios da família como o documentário faz parecer. Ela é uma das acionistas da Andrade Gutierrez e sempre atuou nas empresas do grupo.No jantar de 60 anos do grupo, por exemplo, Lula e Dilma estavam presentes. Na ocasião, ela aproveitou para fazer lobby para que a Presidência liberasse a venda de queijo cru em Minas Gerais.
Enfim
Tudo bem Petra se declarar petista desde sempre e o documentário transmitir a visão político-partidária dela do início ao fim, com certa devoção messiânica e sebastianismo em relação a Dilma e Lula.
“No Brasil, até o passado é incerto”, já disse o ex-ministro Pedro Malan. E é nesse ritmo que Democracia em Vertigem tenta reescrever a história ao ignorar, por mais de duas cansativas horas, que a maior ameaça recente a democracia brasileira foi, na verdade, protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores.
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