“Nós não vendemos café, bolos ou tortas. Por favor, não insista.”
Esta é a estratégia número um do Preto Café: subverter a lógica do mercado. Praticando a lógica do mercado, mas de um jeito “disruptivo”. Ali não existe compra e venda, e sim um conceito de “economia sem preços”. É uma proposta, não um comércio. Mas, na prática, é comércio. Quer dizer, mais ou menos...
Trata-se de fazer política oferecendo café, bolos e tortas pelo valor estipulado pelos próprios clientes – que os sócios chamam de associados – a partir de uma tabela de custos exposta ao lado do balcão. O associado é, então, “convidado a avaliar a cadeia produtiva” para decidir quanto deixará de contribuição.
Não é apenas um café com quitutes. É um lugar de consumo consciente. Um lugar político, um espaço para se pensar, é conceitual.
O Preto Café abriu suas portas no Largo do Arouche na metade do ano passado, após um ano de experiência na Vila Madalena. Fica dentro da Galeria Arouche, em um espaço simples, mas aconchegante, e decoração clean, com um pequeno balcão e algumas (poucas) mesas. Funciona de segunda a sexta-feira, das 12h às 18h.
Reinventando o gourmet
Ao chegar, um rapaz sorridente, Ian, que é um dos sócios, faz a primeira pergunta: “Já conhecem o nosso conceito?”
Para os que vieram pela primeira vez, ele explica: consuma o que quiser do cardápio e pague o quanto achar que valeu a experiência. Para ajudar os associados com alguma referência de valor, Ian aponta o quadro ao lado da tabela de custos: diversos bilhetinhos pregados com valores deixados pelos que já passaram por lá, junto com beijos, abraços, parabéns e emoticons desejando muita sorte, florzinhas de gratidão, etc.
E, por ironia do destino, todos os valores eram similares e até superiores aos praticados em qualquer café gourmet da cidade. Em meio aos elogios rasgados, aparecem clientes bem generosos que desembolsaram 30 reais por um café e uma fatia de bolo. Afinal, é preciso reinventar o conceito de gourmet.
R$ 320 por dois cafés
Exemplo disso foi o casal Milibi e Leonardo, de 22 e 21 anos, que estiveram por lá e pagaram valores acima do que consideravam justo pelos cafés e fatias de bolo. “Esse tipo de negócio requer coragem e eu faço para incentivar isso”, diz ela. Não é apenas um café, é um café com coragem.
Duas moças entraram no Preto Café pela primeira vez e, ao serem apresentadas ao quadro de custos, sentiram uma pontada de culpa pelo risco: “Mas e se eu for injusta na hora de pagar?”, questionou uma delas. “É uma relação de confiança, né?” Na dúvida, deixaram R$ 10 por dois cafés.
Mas a primeira pergunta que qualquer pessoa faz quando é apresentada a este modelo inusitado de negócios é: e o que acontece se o associado sair sem pagar? Não, isso nunca aconteceu, garante Carol Gutierrez, uma das sócias. “Às vezes a pessoa pode pagar 1 real pelo café, mas no geral elas são justas. Assim com temos casos de receber pouco, já chegamos a receber R$ 320 por dois cafés”, explicou.
Militância
Na mesinha abaixo do quadro de custos, um pote de vidro redondo recebe a contribuição dos associados em dinheiro. Ao lado, a maquininha de cartão. Na hora do “pagamento”, ninguém vê o valor doado, para que a pessoa se sinta à vontade.
O cardápio é bem enxuto: tipos variados de café (de agricultura familiar, vale ressaltar), tortas e bolos veganos. Já o público é variado: hipsters (uniformizados ou não), estudantes, trabalhadores da região, senhoras da terceira idade e jovens ao estilo humanas.jpg.
Oficialmente, o Preto Café não é um café, e sim um “espaço de cultura livre”. Ali se realizam oficinas, workshops, apresentações, manifestações culturais, grupos de leitura – os eventos recentes trataram de questões como “usos disruptivos e inventivos de usar os espaços públicos”, “ roda de conversa sobre alimentação e jornalismo gastronômico na periferia”, “resistência trans no Arouche”, e temas similares. O conceito do espaço não é ter lucro, e sim praticar militância. É debater, ser disruptivo, repensar a cidade.
É um lugar político, mas não deixa de ser um negócio. Mas não é um negócio, é um lugar político.
Com essa proposta, o café leva algumas vantagens: impostos e ausência de vigilância sanitária. O único tributo pago pelo espaço é o ITCMD (Imposto sobre Transmissão "Causa Mortis" e Doação), de 4%, que incide sobre as doações dos associados.
Fora, Temer!
Meu café e a torta de abobrinha – muito bons, por sinal! – vieram com um acompanhamento edificante com sabor especial: sobre a mesa, um livrinho de ilustrações “Doria para descolorir”, com direito a “Fora Temer” na capa. Dentro, diversas ilustrações de artistas de rua em preto e branco com mensagens desconstruídx, mulheres nuas, críticas sociais foda e ataques ao PSDB: Políticos Salafrários Destruindo o Brasil. Essa sacada deve ter encarecido meu café em uns 30%, pelo menos.
É tudo muito bonito, cheio de boas intenções, mas e aí, o projeto se paga?
Até agora, não.
De acordo com a tabela, o Preto Café custa, em média, R$ 19,5 mil mensais. Nos últimos meses, o faturamento tem ficado entre 60% e 70% da meta, segundo os sócios. Até agora, nenhum dos cinco participantes do empreendimento tirou algum dinheiro do negócio, mesmo com cada um deles dedicando um dia da semana ao trabalho de ficar tirando cafés, lavando pratos e servindo mesas. Mas eles ainda apostam que vai ser possível fechar a conta, contando com o público “diversificado” da região central de São Paulo.
A meta é chegar a 2,2 mil clientes por mês. Na média, dizem, os últimos meses ficaram em metade disso.
Pensando em matemática básica, para conseguir se pagar, o Preto Café precisaria desses 2,2 mil clientes pagando pelo menos R$ 9 por cabeça. Pelas contas de junho até agora, se o ritmo se mantiver como na primeira quinzena (586 clientes em 9 dias úteis, com faturamento de R$ 4,2 mil), o mês terá 1,3 mil clientes pagando, em média, R$ 7,26. Ou seja, o faturamento em 20 dias será de R$ 9,5 mil.
Ou os clientes não estão pagando valores tão justos assim, ou eu não sei fazer conta com o capitalismo do bem, mesmo sendo de humanas.