A lei brasileira permite aborto em caso de estupro e em caso de necessidade, ou seja, “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”.
O código penal é sucinto, e não fixa detalhes. Antes, quando a politização não tinha cansado todo mundo, quando os médicos não eram vistos como vilões das “estruturas de poder” foucaultianas, quando a biologia não era construção social, gente normal interessada na questão do aborto se lembrava da recomendação do Conselho Federal de Medicina de descriminalizá-lo desde que feito até os 3 meses.
Uma cláusula do tempo existe sempre, porque gravidez não é download, que a gente pode cancelar a qualquer hora, e tanto faz cancelar no começo como no fim. Alguém já tentou imaginar um aborto aos 8 meses? Isso estaria mais para filme de Tarantino, e pessoas sensatas nunca defenderam.
O que cada lado esquece
Estava tudo pronto para o aborto no Espírito Santo, quando os médicos descobriram que a gravidez era muito mais avançada do que o declarado. Eles teriam que matar um feto de cinco meses. Eu tive uma colega de escola que nasceu com essa idade, porque a mãe teve uma série de complicações e morreu. Ninguém precisa sequer ser religioso para ter objeção de consciência nesse caso. Não é um embrião, que a fé manda considerar um ser humano. É um bebê já formado, com chances de vida fora do útero.
Este, a meu ver, é o fato que vem sendo deliberadamente negligenciado por antibolsonaristas. E aí penso que, no fim das contas, a grande maioria da gente politizada usa apenas o atual ocupante da presidência como bússola para decidir questões morais. Seja uma feminista do PCdoB, seja um liberal desiludido com o governo, a tentação será a de reduzir o imbróglio da menina à questão de ser contra ou a favor da descriminalização do aborto. A causa antiaborto tem um carimbão da agenda de costumes religiosa, logo, pessoas iluminadas só poderiam ser a favor do aborto no caso da menina de dez anos. Assim, sem precisar saber mais nada.
Do outro lado – que foi o que começou a confusão desta vez –, a questão foi resolvida com igual simplismo. A agenda de costumes que elegeu Bolsonaro inclui a oposição ao aborto. Logo, se uma pessoa vai fazer um aborto, é preciso ir lá impedi-la, mesmo que isso se dê dentro da lei.
Não importa se a pessoa é uma criança de dez anos estuprada, nem qual é o seu estado de saúde. Vá lá que exista (não sei se existe) alguma determinação legal mandando obedecer ao mesmo prazo que o Conselho Federal de Medicina recomenda. Ainda assim, esse pessoal tem certeza plena e absoluta de que a criança tem todas as condições físicas de levar a gravidez a termo. Apresentam supostos laudos da menina grávida que apontam diabetes, mas sua certeza permanece tão inabalável, mas tão inabalável, que expõem nome e endereço da criança, e vão na porta dela fazer barraco.
O que eu sei que não sei, e o que eu acho que sei
Eu sei que eu não sei qual é a coisa certa a ser feita, e que não sou obrigada a saber. Faltam-me conhecimentos de medicina, do estado de saúde da menina, e aliás até da menina e de sua família. Ainda bem que eu não sou uma médica com essa batata quente na mão, e ainda bem que nenhuma pessoa de minhas relações passou por uma situação dessas.
O que eu acho que eu sei é que o estuprador, fugitivo, nunca será oficialmente encontrado com vida. Li que o capixaba fugiu para a Bahia, onde tem parentes. Acho que a essa altura o homem já foi encontrado e executado; e que, se não foi, será. Acho que nenhum cidadão brasileiro confia no sistema penal, e prefira entregar esse estuprador para o Estado. Acho que as pessoas não pensam assim por serem bárbaras e carniceiras, mas sim porque veem a justiça soltando bandido toda hora. É superlotação, é pandemia… Certo é que o sujeito precisa ser muito azarado pra apodrecer na cadeia.
Acho também que a pior pessoa nessa história toda não é Sara Winter, nem a feminista que vai pra porta do hospital celebrar aborto: é o estuprador. Que saiu de cena, enquanto as pessoas se esbofeteiam cheias de certezas ideológicas.
Acho que o Brasil ganharia se as pessoas largassem as oportunistas sórdidas que usam criança estuprada como palanque, e em vez disso se voltassem a discutir essas cadeias que não prendem ninguém, esses juízes que soltam todo mundo, essa polícia que não resolve crimes.
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