No dia 31 de março, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, chamava as favelas de comunidades de exclusão. Dizia que seriam um enigma brasileiro durante esta peste global: será que as péssimas condições sanitárias poderiam ser contrabalançadas pela escassez de idosos da população local? Sendo ou não, iremos descobrir analisando as pilhas de corpos depois. Acertado, Mandetta disse que essas comunidades de exclusão foram plantadas por anos no Brasil.
O que ele e o leitor não imaginam é que essas comunidades de exclusão fazem parte da colheita do enorme jardim de abobrinhas da academia. Stanislaw Ponte Preta escreveu o FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assolam o País); é mister agora termos o FEBEACÁ (Festival de Besteiras que Assolam a Academia), que abastece fartamente o FEBEAPÁ.
Hoje, nossa estrela da horticultora de abobrinhas é a arquiteta e urbanista carioca Paola Berenstein.
O artista cartorial
Essa sumidade da arquitetura brasileira escreveu A estética da ginga. Nas palavras da socióloga com bolsa 1-A do CNPq que o prefacia, “a autora tece percursos reflexivos que sustentem a formação de um novo profissional, o arquiteto-urbano”.
O livro foi publicado pela primeira vez em 2001, tem pelo menos 4 edições e de fato diploma arquitetos segundo o seu pensamento. Ainda assim, das 166 páginas, contei apenas 8 em que se encontra uma proposta para lidar com favelas. Que diabos ela faz nas 158 restantes?
Enche muita linguiça para enunciar a seguinte tese: cada barraco é um Fragmento (assim, com maiúscula), um conjunto de barracos forma um Labirinto e um conjunto de vielas labirínticas forma um Rizoma. (Rizoma é uma palavra cujo significado os deleuzianos nunca explicam de forma inteligível, mas deixam claro que tem uma conotação meliorativa. Se for cantar uma deleuziana, chame-a de rizomática, que ela vai gostar.) Além disso, a favela é legal porque inspirou Hélio Oiticica.
O livro tem três capítulos e em cada um deles Paola Berenstein fala de uma obra de Oiticica. No capítulo Fragmento, ela relaciona a obra Parangolé ao barraco; no Labirinto, Os Penetráveis às vielas; e, no Rizoma, o Éden às favelonas. Sem dúvida, é interessante um trabalho de estética e história da arte sobre a relação de Hélio Oiticica com a Mangueira. Mas Paola Berenstein não diferencia estética de urbanismo. E até no campo da estética seu trabalho está longe, muito longe, de ser gentil ou respeitoso com moradores de favelas.
De minha parte, creio não afirmar nada de mais ao dizer que um pobre dificilmente constrói a sua casinha irregular sem uma intenção estética, já que ele faz o mais bonito possível. Quando a casa é feita de tijolos, pinta-a com a cor que achar mais bonita. É bem intuitivo, não? Já para a Dr.ª Berenstein:
“existe arquitetura quando existe arte. […] existe arte quando há artistas que produzem arte, ou, em outros termos, quando existe uma vontade artística explícita. É essa vontade que legitimaria a construção como arte e, consequentemente, como arquitetura”.
Os pós-modernos padecem de síndrome de cartório, pois sempre falam em legitimidade. A construção física, para ser arquitetura, precisa ser arte, porque alguma autoridade intelectual disse que sim. Então se “legitima” por meio de um artista. Podemos considerar um artista o favelado que constrói uma casinha? Nananinanão. Artista é só aquele que vai para a galeria. Por isso precisamos de Hélio Oiticica para salvar a favela:
“Os favelados que constroem seus barracos nas favelas o fazem com o único objetivo de abrigar sua família. E é exatamente porque seria vão falar em estética das favelas sem o viés de um artista que utilizaremos como ferramenta teórica a obra de Hélio Oiticica, que, como artista – ou seja, com vontade artística explícita –, representou esteticamente a sua experiência em favelas”.
Como na favela só tem pobre, precisamos de um artista-cartório para “legitimar” a sua arquitetura. E note-se bem que é só uma função cartorial mesmo, já que Hélio Oiticica apenas se inspirou na favela, não construiu nada lá. Se o leitor quiser “legitimar” sua casa, convide um artista para se hospedar nela e pintar um quadro depois.
Brincadeiras à parte, a filósofos da arte contemporânea, como Arthur Danto, defendem que o que determina se um objeto é arte é ter sido feito por um artista. Logo, uma lajota pintada de vermelho por um artista é arte; uma pintada por um pintor de paredes, não. Como decidir quem é artista ou não é outra história – daí vem esse elitismo absurdo que Paola Berenstein adota.
Segundo o senso comum e cânone anterior ao urinol de Duchamp, nós olhamos para uma obra, admiramo-nos com sua beleza e engenho e concluímos que a pessoa ou o grupo de pessoas que o fez só pode ser artista. Assim fica fácil determinar, inclusive às cegas, quem é artista. Depois que Duchamp pôs um urinol em exposição dizendo que era arte só porque era dele, os acadêmicos ficaram nessa pedantismo onanista.
Descobertas incríveis
Legitimada a favela pelo cartório Oiticica, Paola Berenstein faz descobertas incríveis. Ela menciona Stephen Hawking, Nietzsche e uma montanha de autores pós-moderno desmascarados por Sokal e Bricmont em Imposturas intelectuais por fazerem mau uso de termos científicos. Como boa acadêmica dessa corrente, ela consegue dizer as coisas mais simples da maneira mais palavrosa e obscura possível.
Pergunto ao leitor: a arquitetura lida mais com o tempo ou com o espaço? Existe alguém que não responderia “o espaço”? Mas essa obviedade é algo a ser descoberto e provado com muitas abobrinhas:
“A partir do momento em que nos distanciamos das preocupações temporais objetivas da prática arquitetural, não mais assumindo o conceito de tempo ligado como o encadeamento previsível das horas de um relógio (tempo ‘mensurável’), constatamos que o conceito de espaço é geralmente considerado prioritário em relação ao de tempo no pensamento arquitetural”.
Falou difícil para descobrir uma coisa óbvia. E depois, o que ela faz com isso? Toma esta decisão:
“Uma arquitetura sobretudo ‘temporalizada’ seria possível a partir da valorização da temporalidade sem, necessariamente, menosprezar o espaço, mas com a tentativa de inverter a ordem habitual – a espacialização do tempo torna-se a ‘temporalização’ do espaço”.
Que diabos é uma arquitetura temporalizada? Ela não nos dá mecanismo nenhum para reconhecer uma construção que tenha sido feita segundo essa arquitetura.
Outra descoberta dela eu não comento, pois fala por si:
“o tempo é essencialmente ‘diferido’, diferente, diferenciado. O que chamamos de tempo real seria ‘não-diferido’ e, mesmo fazendo parte da nossa vida, está longe de ser a regra no cotidiano. Na realidade, apesar de todo desenvolvimento tecnológico, o homem continua sempre a ter seu corpo e sua inelutável materialidade e, assim, ele conserva hábitos primitivos, tais como o de construir uma casa para nela habitar”.
Coisas que ela não descobriu
Toda essa conversa de temporalidade vem porque a forma do barraco é provisória. O homem favelado construiria – sem estética – o seu abrigo e o aprimoraria indefinidamente com puxadinhos. O tema da precariedade dos barracos é abordado de maneira muito rica por Hernando de Soto em Economia Subterrânea, que descreve e explica a vida dos informais no Peru. Casa feita de material vagabundo é casa com risco de ser derrubada. Casa com tijolo é feita quando há a expectativa de que as autoridades não vão derrubá-las.
Algo que Hernando de Soto reparou no Peru, e eu aqui (sem fazer nenhum esforço), é que existe um mercado imobiliário em favelas. Os puxadinhos vão sendo feitos para aumentar o valor imobiliário e o proprietário poder cobrar mais aluguéis. Hernando de Soto chegou a mencionar o expediente de que se valem os proprietários informais para impedir que os inquilinos (também informais) recebam a escritura quando o governo promove regularizações fundiárias: apresentam-nos às autoridades como hóspedes. O economista peruano, olhando para as favelas do seu país, fez uma reflexão sobre o caráter excludente da burocracia latina, a seu ver causadora de moradia, comércio e transporte informais.
Mas Paola Berenstein achou as favelas ótimas, pois é tudo experiência estética. O capítulo Labirinto tem páginas e mais páginas de onanismo intelectual com citações de Nietzsche, menções a Ariadne em Cnossos, adjetivações dionisíacas e experiências subjetivas do vagar ébrio pelas quebradas. Glorifica o fato de os forasteiros se perderem dentro delas, mas não das cidades projetadas. De o bebum conseguir chegar encachaçado em casa. De o forasteiro precisar de guia favelado etc.
Agora, ela não menciona qual será a sensação do socorrista ou do policial que tem que entrar em uma determinada residência numa situação de urgência. Se alguém infarta numa residência “cartesiana” (cartesiano, mau, é o antônimo de rizomático, bom), o SAMU chegará até a sua porta, e os socorristas irão como um raio até o paciente. Se uma mulher de bairro “cartesiano” for barbarizada pelo marido, a viatura chegará até a sua porta. Na residência “rizomática”, não.
Assim, não é de admirar que o controle territorial e a justiça sejam facilmente usurpados por forças armadas irregulares, tais como as do narcotráfico.
O que ela propõe, afinal?
Após três capítulos de empulhação e onanismo, há uma proposta no último parágrafo do último capítulo, e no breve epílogo. Cito o parágrafo final do Rizoma:
“Seria o caso de proceder por meio de quase não intervenções, ou seja, de intervenções mínimas que seguissem os fluxos naturais e espontâneos, as linhas de fuga e as linhas de desterritorialização das favelas já existentes. Tratar-se-ia de passar à ação respeitando não somente o caráter rizomático, mas também labiríntico e fragmentário das favelas, ou seja, seguindo o processo e a estética das favelas iniciados pelos favelados, a despeito da lógica preconizada por arquitetos, urbanistas e planejadores em geral.”
No epílogo, temos uma formulação mais sucinta:
“Quando, ao urbanizar favelas, se deseja preservar sua identidade própria, sua especificidade estética, é preciso pensar em conservar a noção de participação e, ao mesmo tempo, conservar os espaços-movimento”.
Há alguma instrução mais precisa de como seja essa tal conservação? Não; ela só recomenda que o “novo arquiteto” faça reuniões comunitárias para construção coletiva. A favela é muito bonita, inspirou Oiticica, e tem que ficar como está. Se mexer, estraga.
Em meio a tanto papo de estética, há uma ausência ululante: saneamento básico. E assim voltamos ao assunto de Mandetta. Por anos e anos, viemos formando o “novo arquiteto”, a quem cabe só ficar falando que a favela é bonita, rizomática, e coisa e tal – em vez de ir trabalhar.
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