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Os carros elétricos são a nova fronteira do movimento ecológico mundial, uma suposta panaceia para acabar com as emissões de gases que aceleram as mudanças climáticas. Estados americanos como Nova York e Califórnia, e a União Europeia, já aprovaram leis proibindo a venda de carros e caminhões leves movidos a gasolina a partir de 2035. No Brasil, um projeto de lei proposto pelo senador Ciro Nogueira (PP-PI) estabelecia a proibição de veículos à combustão a partir de 2040.
Mas será que o Brasil, terra do inovador etanol, precisa dos carros elétricos?
“O carro a gasolina e o carro a álcool têm um ciclo de vida menos danoso ao ambiente do que o carro elétrico porque a bateria tem metais pesados”, afirma o professor doutor Fernando de Lima Caneppele, da Universidade de São Paulo - Campus Pirassununga. “Então o descarte de um carro a álcool e a gasolina, que são os flex, têm menos pegada de carbono, menos agressão ao meio ambiente do que um carro elétrico, que vai ter que ter o descarte da bateria”.
Para entender o quão sustentável é o veículo elétrico, é necessário considerar os impactos pensando em todo o seu ciclo de vida. E neste quesito, “as baterias são o grande gargalo do veículo elétrico. Uma pelo custo, representando 40% do valor do veículo, que ainda é muito elevado; pelas questões da autonomia e do abastecimento; mas também pela questão de equacionar o problema da mineração”, afirma Flávia Consoni, professora do Departamento de Política Científica e Tecnologia da Unicamp, e coordenadora do curso de extensão “Mobilidade Elétrica: Políticas, Planejamento e Oportunidades de Negócio” pela Extecamp.
Consideradas o coração dos elétricos, as baterias acumulam a energia que alimenta o motor. Além de utilizar muita água em sua fabricação, elas são feitas a partir de metais como o lítio, o cobalto e o níquel, muitas vezes extraídos de países pobres ou com pouca regulamentação, causando impactos sociais e ambientais. A professora Flávia Consoni dá um exemplo: no Triângulo do Lítio da América Latina (que engloba Bolívia, Chile e Argentina), “na mineração de lítio nos salares, o consumo da água é muito grande e isso já tem provocado escassez de água nesta região”.
Apesar da vida das baterias não se esgotarem no carro (podendo ser utilizadas posteriormente para outros fins) e das empresas buscarem formas de reduzir ou eliminar o uso de metais em sua composição, o descarte das baterias, se feito inadequadamente, sem reciclagem, pode causar a liberação de substâncias tóxicas, causando a contaminação do solo e da água. “Já há tecnologias para fazer o descarte correto das baterias e a separação dos materiais, mas, mesmo assim, mesmo reaproveitando metais pesados e tudo o mais, o dispêndio de energia é muito grande e muito maior do que o de um carro flex”, afirma o professor Caneppele.
Emissões de gases
Pensando nas mudanças climáticas, um outro fator a considerar é a quantidade de dióxido de carbono emitida por um carro elétrico. Essa eficiência ambiental é medida “da fonte à roda”, que engloba todo o ciclo de geração de energia para o automóvel, desde a produção do combustível (fóssil, etanol ou eletricidade) até a produção do veículo. Ou seja, os veículos elétricos são tão limpos quanto as fontes de eletricidade usadas em seu ciclo de vida.
No Brasil, um carro movido a gasolina emite 151 gramas de dióxido de carbono por quilômetro. Um carro elétrico na China, emite 150 gramas. Isso porque grande parte da energia utilizada na China não provém de fontes renováveis. Segundo dados da IEA (International Energy Agency), de 2021, uma a cada quatro toneladas de carvão usadas em todo o mundo é queimada para produção de eletricidade na China. Já no Brasil, um carro elétrico emite 65 gramas de dióxido de carbono por quilômetro, bem menos do que seu equivalente chinês, pois 82,9% da matriz elétrica brasileira é de fontes renováveis, principalmente as usinas hidrelétricas (56,8%, segundo a Empresa de Pesquisa Energética). Enquanto isso, o carro movido a etanol consegue ser ainda mais sustentável, emitindo 46 gramas de dióxido de carbono por quilômetro.
Segundo Caneppele: “desde que seja com energia limpa, o carro elétrico é muito bom. Ele é melhor do que um com combustível fóssil. Eu só não sei se é melhor que o etanol. No Brasil, nós temos o etanol e já em alguns países do mundo. É um programa de mais de 40 anos, então eu acho que a solução no Brasil, que algumas montadoras estão falando, é o híbrido com etanol; às vezes, o combustível fóssil – a gasolina –, e mais a eletricidade”.
Um carro híbrido (elétrico, mas também movido à gasolina), emite cerca de 29g de CO2 por km. A emissão do híbrido flex é estimada entre 25 e 30g CO2/km, a mesma emissão que o carro elétrico híbrido (elétrico/etanol), que ainda não existe para venda, mas que também teria emissões entre 25 e 30g CO2/km no Brasil. Ambos são ainda mais sustentáveis do que o híbrido com gasolina, pois o ciclo da cana-de-açúcar tem uma pegada de carbono menor do que esse combustível fóssil. Mas baixar a emissão de carbono dos carros de passeio não resolve o problema da emissão de carbono no país.
Transporte rodoviário
Segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), os transportes no Brasil são responsáveis por 13% das emissões de carbono, sendo que 91% dessas emissões são provenientes do transporte rodoviário. De acordo com o professor Marcelo Alves, do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), “o Brasil ainda tem problemas logísticos que são grandes. Por exemplo: como transportar as mercadorias aqui dentro?” Ainda não há alternativa ao combustível fóssil para o transporte de carga no país, segundo ele. “Nós vamos ter o diesel, ou alguma coisa parecida, ou o biodiesel por muito tempo pela vantagem que eles têm. As distâncias são muito grandes; há regiões muito isoladas”.
As baterias dos veículos elétricos ainda têm pouca autonomia e ainda há o problema da infraestrutura: o Brasil não possui uma rede de distribuição de energia que atinja todas as localidades ou uma malha de eletropostos que seja muito grande no país. Sem contar o impacto no tempo, pois reabastecer um veículo elétrico é um processo bem mais lento do que encher o tanque, o que aumenta o prazo de entrega da carga.
O carro elétrico vale a pena?
De acordo com o professor Fernando Caneppele, hoje, um carro plug-in, 100% elétrico, não vale a pena: “a não ser que seja para um uso na cidade cujas distâncias são curtas, por causa da questão de tempo de abastecimento”.
Além disso, a indústria de carros elétricos ainda está em desenvolvimento em todo o mundo; são poucas as fábricas de baterias e peças, o que torna o custo de um carro elétrico muito alto, mesmo que seu custo de manutenção seja mais baixo do que o dos carros convencionais. Na Espanha, por exemplo, uma pesquisa da Organização de Consumidores e Usuários (OCU, na sigla em espanhol), mostra que o proprietário precisaria ultrapassar 100 mil quilômetros rodados para que seu investimento compensasse. Em países como Inglaterra e Canadá, a estimativa é que demore de oito a dez anos para um carro elétrico “se pagar”.
“No Brasil, nós temos de olhar para os modais de forma bastante distinta”, afirma a professora Flávia Consoni. “Então se a gente olha para o automóvel, ainda vai haver um período em que várias soluções de baixa emissão serão usadas de forma combinada.Até que não tenha um custo competitivo, o mercado do carro elétrico será muito pequeno. A gente ainda vai ter a solução de carros flex e híbridos. O ideal seria ter essa opção do híbrido, mas usando o biocombustível”.
“Mas isso que estamos conversando provavelmente daqui a seis meses, um ano ou dois anos, vai mudar”, afirma o professor Fernando Caneppele. “Com a evolução dos materiais vão mudando as características das baterias e as características do próprio carro. E, certamente, eles vão aumentar a autonomia”, completa.