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Meu desespero ninguém vê
Sou diplomado em matéria de sofrer
(Batatinha, “Diplomacia”)
A epígrafe desta vez é autorreferente. Vi Djamila no Roda Viva, e sofri muito, porque aquilo não terminava nunca. Marcinha pelo menos é engraçada, a gente ouve e depois escuta o Samba do Crioulo Doido. Djamila, não. Parece um gerador de lero lero, feito para criar frases prolixas e vazias que maus acadêmicos usam pra encher linguiça. Veja-se que sua primeira fala foi a seguinte:
“Eu queria pedir licença para prestar minha solidariedade ao povo do Amapá, sobretudo aos afroamazônidas, que vêm sofrendo aí com esse apagão. Por mais que o Conselho Nacional de Eletricistas já tenham [sic] alertado sobre essa precarização que infelizmente acontece no Brasil dessa lógica [sic]. É um povo que, enfim, vem sofrendo uma série de questões, ainda mais com a invisibilidade, né. Se Durval Muniz falou muito bem sobre a invenção do Nordeste, é importante falar também dessa invenção do Norte, enquanto que a gente, sudestino, ainda não visibiliza certas regiões, reproduz lógicas coloniais dentro do Brasil. Então acho que é importante aproveitar a audiência e chamar a atenção pro que está acontecendo no nosso país na região Norte.”
Por que os “afroamazônidas” (termo pedante que ela usou para não dizer “negros do Amapá”) são mais dignos da compaixão em algo tão tangível quanto um apagão? Sofrer de invisibilidade é algo que acontece a todos num apagão. Será que ela acha que a pele branca tem luz própria?
Mas eis que logo ela soluciona esse problema “visibilizando-os” a partir da audiência do Roda Viva, donde depreendemos que ser visível é o mesmo que ganhar destaque sob os holofotes. Qual o resultado dessa ação de Djamila? Com certeza ela passa por virtuosa para o seu nicho, mas não consta que as autoridades tenham mudado sua conduta em relação ao Amapá por causa da abertura do programa do Roda Viva. Tudo se passa como se as coisas se resolvessem assim: com palquinho na imprensa e sinalização de virtude.
Nesse trecho, vemos todos os componentes de um bom gerador de lero lero: cite um autor só para parecer que leu (sem apresentar o raciocínio dele), seja vago e prolixo. Essa lógica é ruim, os afroamazônidas sofrem de uma série de questões, os sudestinos são colonialistas com o Norte, e ser colonialista não significa implementar colônias nem montar uma economia de commodities, mas meramente não dar palquinho (“visibilizar”). Dando palquinho, descoloniza e aí resolve.
Não deixa de ser instrutivo: para um certo nicho que tem muito destaque na imprensa e na universidade, aparência é tudo. Resolver os problemas é ficar falando deles.
Ainda assim, ela não deixou de mostrar ignorância com relação ao Nordeste. Para mostrar o seu conhecimento do “Brasil profundo”, menciona que foi a Mossoró, no Rio Grande do Norte, e ao Acre. Ora, o Acre é mesmo uma região afastada, de difícil acesso, cuja capital não chega a meio milhão de habitantes e concentra mais da metade da população do estado. Já Mossoró tem 300 mil habitantes, IDH alto, e é uma cidade importante no Semiárido. Bagé, no Rio Grande do Sul, tem menos da metade da população de Mossoró, um IDH parecido, mas ninguém vai ao Rio Grande do Sul para tirar onda porque conheceu o “Brasil profundo”.
Seleção de abobrinhas
Tomei nota de uma série de abobrinhas. Djamila diz que linguagem é poder e atribui essa ideia a Lélia González – aquela, do pretuguês. Isso não é invenção de Lélia González; é invenção de Michel Foucault, um homem cis branco careca. Como todo o carro chefe dela é se fazer de vítima dizendo que a universidade só ensina europeus brancos, precisa substituir Foucault por uma brasileira negra que era sua adepta.
Supostamente, a universidade acaba com as “epistemologias negras” porque não dá autores negros. Djamila vive falando que escreve de maneira acessível para o povo, mas ela nunca explica o que entende por epistemologia, termo com o qual gente comum com certeza não está familiarizada. Epistemologia significa, em grego, filosofia da ciência ou do conhecimento (episteme é conhecimento ou ciência). Se não é nada razoável dizer que a ciência dependa de raça — pois é um projeto humano, e as leis de Newton valem para ingleses e polinésios —, ela deveria se esforçar um pouco para justificar a sua ideia de que existem epistemologias negras.
Perguntada sobre o efeito do trabalho dela, respondeu que é venda de livros e adoção por escolas. Comemorou o fato de ser um best-seller desde antes da morte de George Floyd. Eu me pergunto cá com os meus botões se o povo compra, mesmo, ou se tem algo parecido com o esquema da Universal para jogar os livros e filmes lá pra cima na lista de vendas. À falta de fiéis, burocratas da educação podem adotar em escolas e fazer as compras subirem.
Quanto à suposta ausência de negros, Djamila tem a pachorra de dizer que o geógrafo brasileiro mais citado, Milton Santos, é “invisibilizado”. Machado de Assis e Vieira, pelos parâmetros usados para inflar estatísticas, são negros também, e são dois outros grandes nomes constantes em qualquer curso de Letras e História.
Pretuguês
Djamila volta a falar que preto fala pretuguês, não português, porque Lélia diz que fala. Uma branquinha ressaltou que o português é um problema porque é a língua do colonizador, e é preciso falar “pessoas escravizadas” para acabar com o problema que é a palavra “escravo”. É curioso que os abolicionistas tenham conseguido acabar com a escravidão sem essa reforma vocabular, não é verdade? De repente, poderiam deixar as leis de lado, rasurar o dicionário, e pronto: ninguém se indispunha com os barões do café. Estes teriam não mais escravos, senão “pessoas escravizadas”. É uma imbecilidade acachapante.
As jornalistas brancas, também, faziam cada pergunta… A propósito: cada entrevistador tinha um pedigree de oprimido; ninguém era um homem branco. As branquinhas me fizeram entender que nem todo mundo que dá corda para esses intelectuais negros semiletrados é um racista. Eu achava que era condescendência de quem se sente superior ao negro, mas nem sempre: os leitores brancos de elite são intelectualmente limitados também. A jornalista Diamant fazia perguntas contritas como quem vai ao padre, queria ouvir o juízo de Djamila sobre a branquitude brasileira, falava mal da branquitude etc. Em algum momento, perguntaram a sério se era possível alguém ser antirracista e cometer atos racistas sem querer. Ou seja: alguém acha plausível a ideia de que existem os 100% antirracistas em tempo integral, e os 100% racistas em tempo integral.
Vera Magalhães revela uma alienação da realidade que é de boquiabrir. Assim como muitos não entendem que Trump e Bolsonaro são homens diferentes (pois acreditam na entidade Trampiboçonaro, um capiroto que faz maldades pelo mundo), existe ainda isso de não entender que os Estados Unidos e o Brasil são países diferentes.
E Vera Magalhães diz que o assassinato de George Floyd e do menino João Pedro levou milhões de pessoas às ruas nos Estados Unidos e no Brasil em plena pandemia. É claro que, de um ponto de vista estritamente lógico, é correto dizer que Madonna e Falcão levaram milhões de pessoas para shows pelo mundo. Se simplesmente somarmos o público de Madonna ao do célebre compositor de I’m Not Dog No, decerto dá milhões e milhões. Mas talvez seja enganoso falar desse somatório, não?
Supremacia branca
Djamila também palpita sobre a política de lá, porque afinal de contas tudo é um país só. Assim, pontifica que é importante tirarmos Trump, porque ele é um fascista e um supremacista branco. Aliás, Djamila e suas colegas têm a felicidade de serem incapazes de compreender o que é supremacismo branco. O mero (suposto) predomínio de autores brancos na academia brasileira é, para ela, supremacismo branco. O que quer dizer que os japoneses são supremacistas nipônicos do tênis de mesa, ou coisa que o valha. Supremacismo branco é pretender que os brancos são a raça superior, que deve aniquilar ou escravizar as demais. Sair-se bem numa área não é supremacismo.
E é bom Djamila inventar mesmo uma epistemologia para si, e até uma aritmética, para dar conta da estatística maluca, bovinamente engolida pela bancada, segundo a qual a maior parte dos eleitores de Bolsonaro é de homens brancos de classe alta. Deixemos de lado aquela conversa mole de que os negros são maioria no Brasil, e deixemos de lado até o sexo. O Brasil tem 210 milhões de habitantes, 147.306.295 eleitores, e Bolsonaro teve 57.797.847 votos. Metade disso — não falo nem de maioria, mas de metade — dá, arredondando, 28 milhões de votos. O terceiro estado mais populoso do Brasil, Minas Gerais, tem 21 milhões de habitantes. Pra dar 28, tem que somar com Santa Catarina, que tem sete. Acabamos de descobrir que o Brasil tem 28 milhões de ricos: tem mais rico que mineiro; só somando mineiros a catarinenses para igualar chegar ao número de ricos segundo Djamila. Repito: a bancada ouviu isso quieta.
A bancada também ouviu quieta Djamila se gabar de não ter rede social, quando ela tem aquela só de foto. O único homem da bancada (era negro retinto, pra compensar) aludiu ao Instagram dela depois, como se nada tivesse acontecido. Ela se gaba de não ter rede social porque isso faria com que ela estivesse fora da bolha, olhando nos olhos do povo de Mossoró (como se um auditório não fosse uma filtragem de audiência favorável).
Não, o Brasil não tem “conflito racial”
Uma última abobrinha merece mais destaque: para ela, existe um conflito racial no Brasil, e a gente comum só o nega porque a academia defendeu a existência de uma democracia racial. Primeiro ela diz que escreve de um jeito que o povo leia, porque a academia não é acessível; depois, defende que a academia moldou o povão: tudo isso sem enxergar contradição. Ainda por cima, Freyre foi difamado pela USP, que desde então propaga o racialismo de Florestan Fernandes: mas décadas de USP não são capazes de moldar o povão. Espero que isso seja uma admissão tácita de que os intelectuais racialistas escrevem mal e ninguém os lê fora da panelinha.
É falso que exista um conflito racial no Brasil, porque não existe, no Brasil, um conceito de raça. Para o nosso feliz senso comum, os homens têm cor preta, em vez de pertencerem à raça negra. Djamila fala de “povo negro” (que compreende até os “afroamazônidas” do Amapá!) do mesmo jeito que um teutão falava de povo alemão (Volk): os teutões ou alemães (Deutsche) se espalhavam pela Alemanha, Áustria, Suíça etc. Teutão poderia ser uma concepção étnica, ou seja, um conjunto humano de origem tribal que costuma ser identificado pela língua. No Brasil, não temos etnias além das indígenas, e quase todos os brasileiros têm o português como primeira língua. Pois bem: os nazistas passaram a considerar a etnia teutã uma raça, algo de especialmente biológico, e a reivindicar a unificação de todos os teutões sob o III Reich. Daí invadir a Áustria.
No Brasil, nada assim é sequer pensável dentro do nosso senso comum. Aqui, com certeza, existe preconceito contra os homens de cor escura: mas não porque cremos em raça, e sim porque muitos creem que em geral são pobres e vagabundos. No entanto, as pessoas que não gostam de preto fazem uma generalização. Têm a capacidade de reconhecer coisas boas em indivíduos de cor preta (só quem desgosta de Pelé é racialista), e por isso podem ter um amigo negro enquanto mantêm o preconceito. A melhor maneira de observar isso talvez seja a comparação entre os negros ricos dos EUA e do Brasil: lá, a discriminação continua; cá, negros são aceitos na elite desde os tempos do Império. No Baile da Ilha Fiscal, lá estava a Princesa Isabel nos braços de André Rebouças.
Djamila acha, no fim das contas, que só quem lê Foucault de segunda mão pode ser antirracista. Nem mesmo empatia o povo pode ter, pois – cito-a – “empatia é uma construção intelectual”. Nada mais falso e elitista. É preciso um brasileiro alisar muito banco de universidade para aprender a enxergar em Fulano o membro de raça, em vez de um indivíduo. Isso começou com a elite cafeicultora paulista, composta por racistas anti-negro. Depois a elite paulista continuou racista. Importou o novo racismo dos EUA, que é explicitamente anti-branco e veladamente anti-negro. Afinal, descrevem uma raça branca de inferioridade moral, e presumem uma raça negra de inferioridade intelectual, que precisa ser pega no colo e “visibilizada” por brancos excepcionais.
"Clarinha de turbante"
O único incômodo para Djamila na entrevista inteira foi lembrarem que ela se referiu pejorativamente a uma “clarinha de turbante”, uma psolista chamada Letícia Parks, de perceptível ascendência africana. Pelo léxico racista do movimento negro, quem tem no corpo algo de africano é negro. Se um branco e uma negra têm um filho, o sangue da mãe "contamina" a criança e faz dela uma negra: não uma branca, embora seja tão branca quanto negra, nem uma mulata.
Isso é bom pra deixar nazistas felizes com a pureza da raça branca, e deixar o movimento negro feliz com as estatísticas de negro infladas, usadas pra pedir cota. Na hora H, os negros de verdade (isto é, os negros segundo o senso comum, os de pele bem escura) jogam os pardos pra escanteio e espezinham os mulatos em função de sua cor — como Djamila fez com a psolista.
O malabarismo de Djamila — bovinamente aceito pela bancada — foi responder que aqueles que se descobriram negros tarde devem acatar a autoridade dos pretos que sempre se souberam pretos, e não devem “atacá-los”, isto é, criticá-los de maneira incisiva. Teria sido, portanto, uma espécie de legítima defesa contra a mulata que ousou criticar a negra de um jeito que ela não gostou.
O programa terminou com Djamila se dizendo herdeira de uma “dinastia de lavadeiras”, o que, ao meu ver, mostra uma mania de grandeza que encontrou na esquerda uma caminha quente. Afinal, é ridículo alguém dizer que descende de uma dinastia de advogados ou professores (profissões de classe média), mas ser pobre na esquerda é valorizadíssimo. Então ela, que já vive se vangloriando do pedigree de mulher negra, ainda resolveu que pertence a uma dinastia. Depois disse, rindo, que, se o Brasil fosse justo, ela seria rica.
Agora, o que ninguém nunca perguntou é: se o Brasil é tão horrível assim, como ela vende tanto e é tão bajulada?