- A doutora Zilda morreu, minha mãe disse ao telefone, com voz de quem tinha chorado.
Eu sabia, era impossível não saber. Não bastasse a tragédia de um terremoto que havia devastado o Haiti, ele havia feito vítimas brasileiras. E que vítimas. Sua morte naquele 12 de janeiro de 2010 era notícia em todos os veículos de comunicação. Zilda Arns Neumann foi fundadora da Pastoral da Criança, da Pastoral da Pessoa Idosa, conselheira nacional de Saúde e de Desenvolvimento Econômico e Social e consultora do Unicef, muito embora esse pedaço da sua trajetória não conste de seu currículo oficial. Havia salvado milhões da desnutrição infantil no Brasil e também em 17 países onde o programa foi implantado. Chegou a ser indicada pelo governo brasileiro para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz. Era definitivamente uma mulher famosa, que ganha agora uma justa homenagem em “Zilda Arns – Uma biografia”, do jornalista Ernesto Rodrigues, lançado pelo selo Anfiteatro.
Mas, para mim, ela era a doutora Zilda, a pediatra que me atendia à noite nos fundos de sua casa, de muro de pedras, no bairro Água Verde, em Curitiba, quando minha garganta resolvia incomodar. Era aquela senhora com jeito de avó: católica fervorosa, cabeleira loira impecável, sorriso largo, olhos pequenos, voz tranquila, generosa e amorosa. Curioso é que a cena da qual mais lembro é de enxergá-la por trás do palito de madeira que ela usava para verificar minhas amígdalas. Zilda tinha apenas 44 anos quando me conheceu, em abril de 1979, e definitivamente não era uma avó – tinha cinco filhos com menos de 15 anos e havia ficado viúva no ano anterior, após seu marido Aloysio enfartar no mar, no balneário de Betaras, tentando salvar a filha adotiva, Sandra.
Porém, de certa forma, era minha avó, sim. “Nossa, já tenho netos”, ela disse ao me conhecer. Zilda não só ensinou Teresinha a cuidar de mim e de meu irmão como foi a própria pediatra da minha mãe. Praticamente salvou sua vida quando bebê, em 1960, um ano após se formar médica, atendendo-a no Hospital de Crianças Dr. Cesar Pernetta – hoje Pequeno Príncipe, referência para o país em saúde materno-infantil – e nos postos da Associação de Proteção à Maternidade e à Infância Saza Lattes, onde fundou clubes de mães, embriões do trabalho que a consagraria.
Caso curioso este, de atender duas gerações. Então, vocês podem imaginar que, para minha mãe, sua morte era como a de alguém da família, que a conheceu como uma criança de saúde extremamente frágil e a viu tornar-se mãe. Mais que isso, ensinou a ser mãe. Primeiro, na verdade, ensinou a minha avó Angélica, uma agricultora que havia saído da roça e já tinha perdido dois filhos, um tanto por ingenuidade e desconhecimento de cuidados de saúde. O segredo que salvou Teresinha salvou também milhões de crianças no Brasil e fora daqui.
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Legado
Era em mulheres como minha avó que Zilda decidiu investir seus esforços, dando algo simples e poderoso chamado informação. Ela ensinou às mães a importância do pré-natal, do aleitamento (quando ninguém falava disso), da vacinação, da hidratação com soro caseiro, da nutrição e da criação com afeto. Juro que achei que minhas boas notas na escola eram dádiva dela, pois Teresinha não cansava de repetir: “A doutora Zilda falava para dar bastante peixe pra você, que deixa a criança inteligente, viu só?!”. Cresci com frases como essa, e também acompanhei minha mãe a uma favela do Boqueirão para pesar crianças magricelas e distribuir colheres de soro caseiro da Pastoral. Zilda foi uma presença forte na minha casa.
E na vida de quem acreditou na Pastoral da Criança, fundada por ela e D. Geraldo Majella Agnelo em 1983, sob sugestão do Unicef e a pedido de D. Paulo Evaristo Arns, seu irmão, e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Essa receita simples – que hoje chamaríamos com a palavra da moda de “empoderar” as mulheres – foi o segredo do sucesso de seu projeto. E fazia isso como se fosse uma grande mãe – não à toa, Zilda cravou nos voluntários da Pastoral uma imagem de santidade.
Oito anos após sua morte, falar dela ainda causa comoção. Recentemente, estive em Foz do Iguaçu (PR) para lançar uma exposição sobre o livro “Extraordinárias – Mulheres que revolucionaram o Brasil” (ed. Seguinte), que escrevi em parceria com Duda Porto de Souza. Entre 45 histórias de mulheres que mudaram o Brasil, uma seleção tímida perto do número de extraordinárias, a de Zilda está lá. Um registro para que não nos esqueçamos das mulheres que foram protagonistas em nosso processo histórico e possamos nos inspirar em seus exemplos. E, na palestra de abertura da mostra, para lideranças femininas locais, contei sobre esse laço com a pediatra. Muitas ali eram voluntárias da Pastoral da Criança e, ao final, vieram se confessar emocionadas por eu tê-la conhecido. A sensação ali era de que eu tinha convivido com uma santa pop.
Antes de Zilda, 127 a cada mil crianças nascidas vivas morriam de desnutrição por ano em Florestópolis, cidade que recebeu o projeto-piloto da Pastoral. Depois dela, apenas 20. E assim os índices caíram em todos os municípios atendidos pela rede de voluntários, provocando um “encalhe” de pequenos caixões nas funerárias. Ela foi um divisor de águas para a mortalidade infantil. Mas também para a vida de muitas mulheres. Ao suprir de informação, atenção e autonomia as mães e líderes comunitárias, deu também autoconfiança, um elemento poderoso na luta por igualdade de oportunidades que o feminismo busca e um instrumento para a mobilização da sociedade na exigência de direitos. E não se limitou a salvar seus filhos, mas acabou implantando 26 programas sociais para acabar com a miséria, o analfabetismo e outros problemas associados.
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Críticas, dificuldades e determinação
Embora não concorde com algumas posturas conservadoras de Zilda, próprias de uma fervorosa católica, não hesitei em defendê-la como uma das 45 extraordinárias selecionadas. Eu já sabia que ela tinha sido criticada por muitas feministas, especialmente pela postura contra o aborto. Contudo, não tinha a dimensão total de críticas e dificuldades que ela enfrentou, e que é tão minuciosamente relatada no livro de Rodrigues. Houve, em certo ponto, disputa de poder com outras pastorais e muita resistência de alas e lideranças conservadoras da igreja. Certa vez, a sanitarista deixou uma audiência no Vaticano vociferando: “Vamos bater a sandália para não levar nem o pó desse lugar”, teria dito. Apesar da fé, Zilda era uma pessoa que seguia a ciência e se preocupava com a saúde pública, lançando importantes campanhas como a de orientar que os bebês dormissem de barriga para cima, a fim de evitar a morte súbita – foi sua última mobilização em vida, em 2009, e que gerou bastante polêmica.
Houve ainda muitas chateações impostas pelo Unicef na prestação de contas, quando a Pastoral recebia verbas do órgão. Fato é que, apesar das dificuldades, a entidade foi sempre um modelo de retidão no uso do dinheiro e na declaração do movimento financeiro. Chegou a ser uma das maiores ONGs do planeta – presente em 4 mil municípios, com 270 mil voluntários e atendimento a 1,9 milhão de crianças apenas no Brasil. E Zilda foi sempre um trator, passando por terreno árido às vezes com diplomacia e cordialidade exemplar, às vezes com determinação germânica.
Nesse ponto, não consigo fugir do estereótipo para explicar sua força, nem Rodrigues consegue. Descendente de alemães, nascida no interior de Santa Catarina, na área rural de Forquilhinha, Zilda era a 12a de 13 filhos, cinco dos quais viraram religiosos. Desde pequena, ajudava nas tarefas do sítio e teve de conciliar estudos com brincadeiras, obrigações domésticas e religiosas, além de acompanhar a mãe nos partos pela região, o que lhe rendeu o apelido de “parteirinha”. Com os alicerces na fé, no trabalho e na educação, Zilda podia chorar escondida no banheiro um dia, mas se recompunha da derrota para voltar às suas defesas logo em seguida com o mesmo fervor, uma paixão que contagiava quem estava por perto, especialmente os voluntários, e que, dizem, lhe rendeu também a alcunha de “comandante”.
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Quem a conheceu nos bastidores, sabe que era difícil driblar sua determinação, pragmatismo e perfeccionismo, e a admirava pela retidão de caráter e dedicação ao trabalho. Não aceitava “nãos” e só se rendia a argumentos científicos para mudar seus direcionamentos. Era firme quando necessário, a ponto de falar incisivamente quando queria algo, puxar a orelha de quem julgava precisar e passar um dia inteiro à porta de um ministro que não tinha agenda para recebê-la – neste caso, Fernando Henrique Cardoso. E soube ser habilidosa em transitar por governos de diferentes legendas, não permitindo a associação de seu nome a grupos políticos, e ao manter boas relações com a imprensa para mostrar os resultados de suas ações. Atendia jornalistas a qualquer hora e conseguiu estabelecer uma parceria com a Rede Globo no projeto Criança Esperança, que gerou ciúmes em outras ONGs.
Rodrigues esmiúça bem esse temperamento e os bastidores de conquistas e derrotas, às vezes numa narrativa que se repete ao longo das páginas. Mas mostra, sobretudo, a trajetória de uma mulher real, de carne e osso, que enfrentou todo tipo de resistência para fazer o que acreditava. Não foi professora como o pai queria. Estudou medicina quando esta era uma carreira para raras mulheres, como evidencia a turma de 114 homens e apenas 6 garotas. Trabalhou dobrado para sustentar a casa depois de ficar viúva. Conheceu o Brasil como poucos, ao mapear a pobreza. Combateu políticas eleitoreiras como a distribuição de cestas básicas. Discordou de líderes religiosos, apesar de toda sua fé, e soube tecer bons contatos com todos os governos. Foi admirada por muitos, respeitada por muitos mais. E, embora não tenha levado o Nobel, conseguiu em muitos prêmios o justo reconhecimento internacional.
*Aryane Cararo é jornalista e escritora, co-autora do livro “Extraordinárias - Mulheres que revolucionaram o Brasil”.
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