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Antes genocídio demandava poder e tecnologia. Hoje, não. Basta sair de casa e pronto: somos genocidas.
Antes genocídio demandava poder e tecnologia. Hoje, não. Basta sair de casa e pronto: somos genocidas.| Foto: Pixabay

Antigamente era necessária uma rede de poder e técnica para se cometer genocídio. No mínimo, uma estação de rádio, como os ruandeses. No máximo, grandes obras de engenharia e infraestrutura, como os alemães. E uma grande dose de ódio, claro.

Hoje, ao que parece, o genocídio ficou acessível ao cidadão comum. Basta sair de casa para comprar tomates, ou para visitar a família, ou para tomar um chope com os amigos, e pronto: somos genocidas. Uma verdadeira “democratização do acesso ao genocídio”, diria o burocrata petista d’antanho, se o jargão burocrático petista não fossem águas passadas. “Genocida eu, genocida ela”, cantaria o cantor de axé no próximo carnaval, se houvesse próximo carnaval.

Nem todo mundo pensa assim, naturalmente. Dia desses, Demetrio Magnoli disse que há dois Brasis: o dos funcionários públicos e da “economia digitalizada” (home office), capaz de ficar em lockdown pra sempre, e o dos demais, que participam da “economia analógica ou presencial”, aflitos com o lockdown. Surgiu então uma “polarização cognitiva” – isto é, dois lados determinando o que é a Verdade – porque jornalistas e acadêmicos, pertencentes ao primeiro desses Brasis, ficaram defendendo o lockdown eterno.

Daí, segundo Magnoli, não é de admirar que as teorias conspiratórias floresçam no outro Brasil. Assim, para um Brasil, a Verdade é que só o lockdown salva, enquanto que, para o outro, a Verdade é que não há problema sanitário algum.

Concordo e discordo

Magnoli acerta em coisas importantes. Em especial, acerta na divisão por tipo de economia, amiúde confundida com a renda. Médicos e lojistas ganham mais que muito trabalhador de home office, do que professore bolsista de pós-graduação. Mas não podem fazer quarentena. É verdade que a base da pirâmide não pode fazer quarentena e o topo pode. Mas não dá para traçar um corte por renda e dizer “daqui pra cima, pode fazer quarentena; daqui pra baixo, não.” Daí resulta que a classe média está em polvorosa. Uns creem que os outros são genocidas. Outros abraçam a ideia confusa de que a China criou um vírus letal que não precisa de nenhuma medida sanitária para ser combatido.

Mas Magnoli simplifica demais esse quadro de ideias vigentes. Ele peca por imprudência ao dar por certo que a China não criou o vírus em laboratório (vide o texto de Eli Vieira). Demétrio Magnoli escreve bem sobre os totalitarismos da Segunda Guerra. Por que baixa a guarda perante um regime que enfileira uma minoria étnica fardada, com cabelos raspados, olhos vendados, e as faz marchar para vagões de trens que as deportam para campos de trabalho escravo? O que traz à cabeça de um estudioso da Segunda Guerra a notícia da apreensão de toneladas de cabelo humano?

Xinjiang pode ser Auschwitz de novo, aqui, sob os nossos olhos covardes. Olhos que teimam em desviar para o lado por não querer acreditar que Auschwitz é repetível. Magnoli sabe muito bem do que a Alemanha, louca e má, era capaz. Não há por que supor que a China seja mais humana.

Meu esquema

Não acho que exista dois Brasis cognitivamente divididos entre aqueles cujo trabalho permite fazer lockdown e aqueles que não podem. Em matéria de ideias, existem três categorias perante o lockdown: os observantes, os pecadores e os hereges. Os observantes são aqueles que estão mesmo em casa desde março porque acreditam naquele tipo de coisa que Átila diz. São acadêmicos, funcionários públicos, desempregados com poupança e trabalhadores de home office.

A categoria dos pecadores é interessante. Eles saem de casa para passear e fazer todas as suas atividades, sem se privar de nada. À guisa de pedido de desculpas, tiram muitas fotos de máscara para postar nas redes sociais. Poderiam tirar fotos sem máscara, se quisessem, já que as saídas de casa implicam comer alguma coisa em público, e de máscara não se come. Então essas pessoas aderiram com gosto àquele ritual esdrúxulo de obedecer aos letreiros dos restaurantes e cafés onde se lê “Obrigatório o uso de máscara”. Atravessam o saguão de máscara, sentam e tiram-na. E botam de novo para se fotografar de cara tapada, com um sorriso adivinhável apenas pelos olhos comprimidos.

As máscaras são um pedido de desculpas, um salvo conduto, aos observantes. O pecador sinaliza que pertence ao mesmo credo, como numa estrutura religiosa.

Por fim, há a classe de hereges: os que podem até passear menos do que os pecadores, mas só usam máscara a contragosto e estão de saco cheio das medidas do governo. Percebem que até placas anônimas em banheiros públicos contêm uma ordem em tom paternalista. Estão fulos. Aí inclui-se uma grande gama de opiniões: vai desde o velho doente que dá suas escapadelas, mas em geral fica em casa por prudência, até o sujeito que dá pirueta para acreditar, ao mesmo tempo, que a China liberou um vírus mortífero e que nenhuma prevenção de contágio é necessária.

Eu diria, portanto, que os dois Brasis são o dos que acreditam que o lockdown é sagrado e o dos que não acreditam. As crenças deste último grupo são bem menos homogêneas. Você vai ver, na rua, nos ônibus, muita gente de máscara. Mas vai ver também que dão um ocasional alívio para o nariz (o verão está de matar) e que não saem só para atividades economicamente essenciais, pois incluem o lazer em suas vidas. Parecem seguir um senso comum segundo o qual a Covid-19 é um problema real, porém não apocalíptico. Esse é o grosso da população. Tem classe média e tem pobre.

Os adeptos da religião do lockdown praticamente se restringem àquele nicho da classe média apontado por Magnoli, sem contudo coincidir com ele – do contrário, Polzonoff seria um legítimo loquidauner, já que é um jornalista trabalhando em romófis. Também existem os moradores de favela que chegaram ao ensino superior e têm esperanças de ascender socialmente, por isso mimetizam a moral do nicho elitista. (E é cilada: esse nicho, cujas rendas dependem de um jeito ou de outro do Estado, é justamente o que está em franca decadência, e não vai querer dividir as minguantes receitas com novatos.)

Os antibolsonaristas incondicionais

O que chama a atenção é a homogeneidade de opiniões desse grupo. Muitas vezes estão convictos de que quem não participa da sua fé tem uma falha de caráter. Contam-se nos dedos os observantes que acham que seus amigos estão apenas equivocados. Tal como nas demais religiões, existem os tolerantes e os intolerantes. Parece-me, porém, que os intolerantes são maioria nessa religião.

E é compreensível que assim seja. Afinal, se a Ciência provou que devemos tremer ante o vírus horrendo e que máscaras e distanciamento são obrigatórios, a conclusão necessária é que todos os que não cumprem são mentecaptos ou malvados. Procuram, então, uma explicação para a nossa impudência, e encontram Bolsonaro: teria sido ele, andando sem máscara, falando de gripezinha, o culpado. Se não fosse Bolsonaro, milhões de brasileiros achariam uma ideia perfeitamente sensata ficar trancado em casa por quase um ano sem ver vivalma, olhando pra Internet e TV.

Entra em campo então o antibolsonarismo incondicional, aquele sentimento que manda considerar qualquer coisa – até o regime genocida de Pequim – melhor do que Bolsonaro, porque sim. (Nesta altura, o tipo descrito dirá “Que passada de pano!”, ao que eu devolvo que o parvo Bolsonaro me é quase indiferente, e graças a isso não passei a vergonha de ficar defendendo incondicionalmente a “vacina do Butantã”, para acordar com amnésia hoje).

E aí temos um paradoxo: a aprovação de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial entre a gente comum. Enquanto isso, o antibolsonarismo incondicional dispara entre pessoas trancadas em casa que não saem da Internet nem desligam a TV. Não faço ideia do que sairá dessa combinação de coisas.

Algumas memórias

Desde março, viajei um bocado, encontrei amigos e fui visitar família em outro estado. Nunca temi pela minha saúde, pois sou jovem e sem problemas. Nunca ostentei foto de máscara e não boto fé na eficácia desse paninho na cara. (A Nature mostrou uma porção de estudos que comprovam a eficácia de máscaras hospitalares, o que não é exatamente uma surpresa). Eu temia, isso sim, pela gorda hipertensa e pelo nonagenário acamado com os quais moro.

Acontece que a gorda hipertensa é médica, tem que trabalhar, e o nonagenário acamado tem cuidadoras se revezando. Ou seja: eu era a pessoa que oferecia menos riscos, já que trabalho dentro de casa. E pensava tranquila, com fatalismo: é cruzar os dedos para eles saírem bem da doença, porque uma hora esse vírus vem parar dentro de casa.

O vírus chegou mesmo. Uma das cuidadoras achava que estava com chicungunha. (Em Salvador tivemos um surto de chicungunha no começo da quarentena). Ela saiu daqui com os sintomas, depois de ter dormido com o nonagenário. Fez o teste, e era Covid-19. Depois todos fizemos testes (daqueles que lembram a operação egípcia para tirar o cérebro da múmia) e não tivemos nada.

Eu julgava que a Covid-19 era uma fatalidade iminente, e errei. Acertei ao menos que a presença do vírus era uma fatalidade iminente. Outra coisa a que assisti com fatalismo são os efeitos da falta de academia de ginástica para quem realmente precisa dela. Os males da má alimentação aliada à falta de exercícios são mais certos do que os males da Covid-19 – que ataca justamente os gordos. Por fim, ainda não pude ver – mas é certo que verei – os males da falta de vida social sobre a saúde mental.

Se esta herege aqui puder dar um conselho, é este: não viva sob tensão. Tensão só serve para situações emergenciais que demandem reação física rápida. Tensão mata no longo prazo e embota o pensamento. Vejo mais suicidas do que genocidas por aí.

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