Carme Elias, atriz espanhola, sofre de Alzheimer e lançou em 2023 um livro a respeito, “Cuando ya no sea yo” (“Quando eu já não for eu”, em tradução livre). Um documentário a respeito de sua experiência ganhou o Prêmio Goya de 2024.| Foto: EFE/Alejandro García
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Uma nova classe de medicamentos para retardar a progressão do quadro da doença de Alzheimer está prestes a chegar ao mercado. São anticorpos monoclonais — moléculas feitas pela reação de células de defesa imunológica de animais de laboratório a substâncias estranhas. No caso, a “substância estranha” é a proteína beta-amiloide, que ocorre no cérebro humano.

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O acúmulo desta proteína em placas mata os neurônios e é tido como uma das principais causas da doença, caracterizada por demência progressiva e perda de memória. Uma vez que o anticorpo do medicamento, aplicado em injeção, se liga à beta-amiloide, o sistema imunológico do paciente se põe a trabalhar para a remoção das placas, tornando possível que o freio na progressão chegue a uma parada completa do quadro de piora, dando preciosos anos adicionais de vida lúcida para os afetados, geralmente idosos.

As principais movimentações começaram em julho de 2023, quando a Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos Estados Unidos aprovou o medicamento Leqembi (nome genérico lecanemabe). O anticorpo, desenvolvido pela farmacêutica japonesa Eisai e sua parceira Biogen, começou este mês a produzir dados adicionais para a FDA no processo que culminará na chegada ao mercado.

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O principal estudo clínico do Leqembi foi publicado em novembro de 2022 na revista New England Journal of Medicine. Com duração de 18 meses, o estudo teve 1795 pacientes envolvidos, 898 dos quais receberam o medicamento, com 897 incluídos no grupo que recebeu uma substância sem efeito (placebo) para comparação. Em homens, a redução no declínio cognitivo por Alzheimer com a droga foi de 43%.

Nas mulheres, contudo, que são dois terços de pacientes com a doença, a redução foi mais modesta, de 12%, e para elas não houve também um sinal de significância estatística, ou seja, uma diferença real nos números entre as que receberam o medicamento ou a substância inerte.

O preço do tratamento estabelecido pela Eisai no lançamento foi de US$ 26.500 por ano. Para o tratamento completo de 18 meses feito no estudo, o custo do medicamento é de R$ 205 mil na cotação atual.

O principal concorrente do lecanemabe é o donanemabe, do laboratório Eli Lilly. A droga será avaliada no dia 10 de junho pelo Comitê Consultor de Medicamentos do Sistema Nervoso Periférico e Central (Adcomm) da FDA. Anteriormente, a aprovação do medicamento foi recusada porque menos de 100 pacientes usaram o medicamento por um ano completo, número que a FDA considerou insuficiente. No caso do lecanemabe, mais de 700 pacientes usaram por um ano e meio.

Estudos preliminares (em fase 3 de desenvolvimento) do donanemabe indicam que o medicamento poderia retardar a progressão do Alzheimer em 40 a 60%.

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“Abre uma porta”, dizem especialistas brasileiros

Para Pedro Brandão, neurologista do Hospital Sírio-Libanês em Brasília e pesquisador do Alzheimer, a eficácia apresentada pelas drogas é uma corroboração da hipótese da beta-amiloide. “Apesar de algumas controvérsias e alegações de fraude em pesquisas anteriores relacionadas à beta-amiloide, a hipótese ainda é amplamente aceita e continua a ser uma área de intensa investigação”, diz o especialista.

Brandão afirma que estudos recentes “demonstraram que o lecanemabe pode reduzir o declínio cognitivo em pacientes com Alzheimer em estágio inicial, reforçando a validade da hipótese”. Para ele, contudo, “a magnitude desse benefício é modesta” e “qualquer decisão sobre o uso de lecanemabe deve ser cuidadosamente discutida com um médico, considerando os potenciais benefícios e riscos”.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária ainda não aprovou o medicamento, portanto, médicos não podem receitá-lo. O que já está acontecendo é que os próprios pacientes com sintomas e suas famílias já estão buscando o medicamento fora do país. Cerca de 100 brasileiros estão tomando, informa Ivan Okamoto, neurologista do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Albert Einstein. Okamoto não prescreve, mas está acompanhando dez pacientes que estão tomando lecanemabe por conta própria.

“É uma porta que se abre, uma nova porta de tratamento que não tínhamos há 25 anos”, na opinião de Okamoto. “Os medicamentos usados hoje são de 1998, 1999. Com os anticorpos monoclonais, a expectativa não é reverter. A deposição de amiloide acontece dez a 15 anos antes dos sintomas. A perspectiva é começar a tratar antes dos sintomas aparecerem”. Ele ainda não observou efeito nos dez pacientes acompanhados pois estão tomando há poucos meses, no início do tratamento de um ano e meio.

Okamoto recomenda cautela, pois os estudos mostraram que houve remoção das placas de proteína, os resultados clínicos para pacientes são mais incertos e há “uma série de efeitos colaterais que não devem ser impeditivos, mas precisam ser esclarecidos” (veja mais abaixo).

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As drogas mais antigas e já disponíveis no Brasil são ligadas à sinalização entre os neurônios da substância acetilcolina, ligada à memória. “A gente consegue pelo menos minimizar, atrasar a evolução dos sintomas em cinco a oito anos” em cerca de metade dos pacientes, diz o especialista. Há um retardo na evolução da doença. Com os novos medicamentos baseados em anticorpo, “teoricamente é possível deixar a pessoa como ela está agora, como tirar um câncer. Em vez de evoluir, há uma estabilização”, afirma Okamoto.

Efeitos colaterais em potencial

Ivan Okamoto comenta que em pacientes tratados com lecanemabe “25 a 40% podem ter edema cerebral, sangramento cerebral. Não é uma droga tão inócua”. Brandão diz que, “para as famílias de idosos que começaram a apresentar sintomas de Alzheimer recentemente, é compreensível que haja esperanças em relação a novos tratamentos como o Leqembi”, mas “existem riscos associados, como a ocorrência de anormalidades relacionadas à imagem amiloide (ARIA), que podem incluir edema cerebral e hemorragias”.

O médico e professor da Universidade Johns Hopkins, Marty Makary, em artigo para o site Sensible Medicine, chamou a atenção para a comparação do benefício específico do lecanemabe nas mulheres com os potenciais riscos. O freio de 12% na progressão do Alzheimer nelas deve ser sopesado com “13% de risco de inchaço cerebral (contra 2% no grupo placebo), um risco de 17% de sangramento cerebral (contra 9% no grupo placebo) e uma chance geral de 7% de um evento adverso que resulte em descontinuação da droga (comparada a 3% no grupo placebo)”.

Makary lamentou que, na época da aprovação do medicamento, a cobertura na imprensa, apesar de ter sido substancial, “não mencionava a diferença notável em eficácia entre homens e mulheres”. O estudo do medicamento deu a informação apenas nos documentos suplementares, onde o especialista a encontrou, e não no corpo do texto principal.

Também no caso da droga desenvolvida pela Eli Lilly, houve 24% de inchaço cerebral entre os pacientes envolvidos nos estudos e 31% com algum tipo de sangramento cerebral. Porém, “parece verdade” que os anticorpos sobre as placas de beta-amiloide ralentam a progressão do Alzheimer, comentou Makary.

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Estilo de vida faz a diferença

Um milhão e meio de pessoas vivem com demência no Brasil. No mundo são 50 milhões. O que já se sabe, comenta Okamoto, é que a Finlândia mostrou em 2015, com seu estudo de intervenção geriátrica para prevenir a debilitação cognitiva e a deficiência, conhecido pela sigla em inglês FINGER, que o estilo de vida faz toda a diferença. O estudo mostrou que a adoção de medidas de saúde pode evitar entre 30 e 40% dos casos.

O estudo, que usou o método de maior rigor na pesquisa médica para mostrar resultados, acompanhou por dois anos 2654 indivíduos entre 60 e 77 anos. Foram escolhidas pessoas com já algum risco de desenvolver demência e desempenho mental médio ou pouco abaixo do esperado para sua idade. Eles foram distribuídos em grupos de tamanho semelhante, um com as intervenções, outro sem.

As intervenções eram várias, de modo que não é possível isolar o efeito de cada uma. Consistiam em atividade física com três sessões de quarenta a cinquenta minutos por semana, envolvendo tanto exercícios aeróbicos quanto musculação; atividade intelectual desafiadora para o cérebro, como aquisição de uma nova língua, palavras cruzadas e outras atividades fora de hábito; dieta balanceada no estilo mediterrâneo ou holandês, com bastante peixe, legumes, frutas e pouca ou nenhuma bebida alcoólica; controle e tratamento de problemas de pressão, diabetes, relacionamento social e familiar, depressão; promoção de atividades sociais em clubes, encontros de ex-colegas de faculdade e festas em família.

Os idosos que se envolvem nessas atividades em conjunto têm “desempenho em teste de memória muito melhor”, diz Okamoto. “Há aquisição de reserva cognitiva mesmo depois dos 50 ou 60 anos. A Coreia do Sul, Japão, Canadá, Nova Zelândia e Austrália adotaram como plano de governo essas intervenções”.

“Manter a pressão arterial em níveis saudáveis, evitar o uso de tabaco, controlar os níveis de glicose no sangue, adotar uma dieta rica em frutas, vegetais, grãos integrais e gorduras saudáveis, manter uma rotina de exercícios físicos, participar de atividades que estimulem o cérebro e manter um bom nível de interação social são recomendações importantes”, resume Pedro Brandão.

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O especialista informa que a demência afeta cerca de 7,6% das pessoas a partir dos 65 anos. “A doença de Alzheimer é a causa mais comum de demência, representando cerca de 50% a 70% dos casos”. De acordo com um estudo realizado em Catanduva publicado há 20 anos pelo médico Ricardo Nitrini e colaboradores, a incidência de demência no Brasil é de 13,8 para cada 1000 pessoas, e de Alzheimer, 7,7 a cada 1000 pessoas em indivíduos com 65 anos ou mais. Embora baixo, o número dobra a cada cinco anos adicionais de idade.

Pesquisa e desenvolvimento de tratamentos para Alzheimer passaram por controvérsia

Fraudes na pesquisa da doença de Alzheimer podem ter levado a centenas de milhões de dólares desperdiçados em verbas, como noticiou a Gazeta do Povo. As trapaças envolviam até manipulação de imagens de experimentos.

A mesma Biogen que participa do desenvolvimento do Leqembi foi denunciada por parlamentares americanos do Partido Democrata, no final de 2022, por ter uma “relação imprópria” com a agência reguladora estatal FDA. Funcionários da agência teriam redigido trechos de um pedido de aprovação da farmacêutica para outro medicamento para Alzheimer, o Aduhelm (aducanumabe). A própria FDA julgaria o pedido.

Em junho de 2021, sob o protesto de seu próprio comitê consultivo, a FDA concedeu a aprovação ao aducanumabe em regime acelerado. Três especialistas renunciaram a seus postos na agência em protesto. Em 31 de janeiro deste ano, a Biogen anunciou que abandonou o desenvolvimento do medicamento.

O professor de neurologia Dave Knopman (Clínica Mayo em Minnesota, EUA) foi um dos conselheiros que renunciaram em protesto. Em entrevista ao site especializado em notícias médicas Medscape, ele afirmou que o abandono do aducanumabe foi um bom sinal e que “com a aprovação padrão do lecanemabe, que mostrou benefícios clínicos claros, embora modestos, estamos dando acesso seguro e eficiente”.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]