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Foi o crítico literário Northrop Frye quem escreveu que “se a imaginação pode destruir até o tempo (...), então ela pode destruir tudo”. Não à toa, a censura à imaginação - e a todos os seus produtos - é característica onipresente dos estados totalitários.
Em um país que caminha a passos largos rumo a uma distopia orwelliana como a China, o cinema não poderia ser diferente. Há anos, os censores do Partido Comunista influenciam mudanças de roteiro e barram qualquer referência minimamente negativa ao povo chinês, de coadjuvantes a vilões.
O problema é que, com frequência, a censura parte dos próprios produtores, capazes de alterar referências culturais em suas obras para não perder o público massivo (são mais de 1,3 bilhão de pessoas, três vezes a população dos Estados Unidos) de um país que, em pleno século XXI, cultiva campos de concentração. Enquanto a Disney oferece treinamentos de diversidade em seus parques, o rosto de Chadwick Boseman é escondido nos materiais de divulgação de “O Pantera Negra” na China, por exemplo.
“O público americano está sendo submetido à censura, não a nossa própria censura, mas a censura de uma potência estrangeira e a censura do Partido Comunista”, explica o pesquisador Mike Gonzalez, da Heritage Foundation, especialmente sobre os casos nos quais personagens e enredo são alterados ainda na versão ocidental para agradar a ditadura. Segundo ele, desde o ano passado, o boicote de filmes que potencialmente manchem a imagem do país passou a ser incumbência específica do Partido Comunista Chinês.
Veja, abaixo, dez filmes que foram alterados pelos censores ou pelos próprios produtores.
Piratas do Caribe: No Fim do Mundo (2007)
O enredo do terceiro filme da franquia de Jack Sparrow pretendia mostrar frotas piratas do mundo inteiro em um encontro em Cingapura encabeçado por Sao Feng, um capitão pirata chinês. O ator chinês Chow Yun Fat foi escalado para o papel, com a intenção de atrair o público de sua terra natal. Não adiantou: quase todas as suas cenas foram cortadas no lançamento do filme, porque a censura considerou que o personagem era um estereótipo racista dos asiáticos e também porque não seria de "bom tom" mostrar um chinês no papel de vilão - ainda que ele estivesse longe de ser o principal.
Karatê Kid (2010)
O karatê não tem nada a ver com a China - é, essencialmente, uma arte marcial japonesa. O que não impediu que o remake de Karate Kid de 2010 fosse completamente ambientado no gigante asiático. Tanto que, na época do lançamento, os fãs estranharam que a palavra "karatê" permanecesse no título, dado que o protagonista aprende Kung Fu (esta, sim, uma arte chinesa) com Jackie Chan. Em entrevistas, o ator revelou que, nos sets de filmagem, a obra era tratada por Kung Fu Kid. O nome chinês para o filme, ao menos, é coerente: virou algo perto de "Sonho Kung Fu" (功夫 梦).
Looper: Assassinos do Futuro (2012)
Não foi apenas o alto custo das filmagens em Paris o que levou o diretor Rian Johnson a transferir a trama de Looper em Xangai. Como cláusula de contrato para o financiamento do filme, a empresa chinesa DMG incluiu a ambientação na China continental. A cidade é retratada como uma metrópole belíssima, muito superior à Kansas City distópica onde se passa o resto do filme. A predileção pelas cenas na China foi uma forma de compensar o próprio enredo "subversivo" do filme: por alguma razão, o governo chinês não é fã de histórias com viagem no tempo e com frequência barra tramas deste tipo.
Amanhecer Violento (2012)
Em pleno século XXI, não faria muito sentido reviver o antagonismo da América contra a União Soviética da Guerra Fria, e a China, por razões óbvias, foi escolhida como a nova antagonista. Até que os produtores perceberam que o mercado chinês era importante demais para ser desprezado. Então, todas as bandeiras chinesas se transformaram na da Coreia do Norte, que se tornou a responsável pela invasão que dá início à trama. O país de Kin Jon-Un, afinal, não tem nenhum impacto sobre a bilheteria.
007 - Operação Skyfall (2012)
Por conta do enredo envolvendo inimigos comunistas, a saga de James Bond chegou à China com atraso. Ainda assim, foram necessárias algumas edições. Em Skyfall, todas as cenas em que o protagonista derrota homens asiáticos foram excluídas do filme - exatamente como aconteceu em 007 - Casino Royale (2006). Para evitar problemas, os editores removem tudo o que possa sugerir que o povo chinês pode ser derrotado - mesmo por um espião de elite.
Homem de Ferro 3 (2013)
Caso os fãs do vingador playboy Tony Stark tenham estranhado a aparência do arqui-inimigo do herói no terceiro filme da franquia, a China é a explicação: foi para agradar Pequim que o Mandarim, o gênio chinês dos quadrinhos, se transformou em um ator ocidental e apenas um fantoche dos verdadeiros vilões da Hydra. Além disso, o filme foi recheado de propagandas chinesas de um timing surpreendente - como um médico bebendo leite da marca chinesa Gu Li Duo depois que lotes de leite foram contaminados com mercúrio. A presença da atriz Fan Binbing entre os médicos que realizam uma cirurgia em Stark também não é por acaso, bem como a dos vários coadjuvantes chineses. No corte especial para a China, há ainda mais propagandas.
X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014)
Fan Bingbing, que chegou a ser uma das atrizes mais bem pagas do mundo e protagonizou um pequeno escândalo ao desaparecer por três meses em 2018 e ressurgir pedindo desculpas ao governo chinês por evasão fiscal, também fez uma participação entre os mutantes, como forma de atrair o público chinês. A Marvel e a Fox nunca assumiram que este foi o objetivo, mas é certo que a atriz alavancou o desempenho do filme sobretudo no Leste Asiático, onde ela é muito popular.
Doutor Estranho (2016)
Leitores de quadrinhos se lembrarão de que a personagem de Tilda Swinton, a Anciã de "Doutor Estranho", não apenas era um homem como era um monge tibetano que, no filme de 2016, ganhou nacionalidade celta. De acordo com o roteirista C. Robert Cargill, não valia a pena "alienar um bilhão de pessoas" que poderiam pensar que a associação entre o Tibet e o monasticismo é besteira e arriscar a censura da China. Segundo Cargill, o personagem original é um "estereótipo racista".
Top Gun: Maverick (2021)
Quem cansou de assistir a produção de 1986 conhece bem a icônica jaqueta verde militar de Pete Maverick, com remendos representando as bandeiras de Taiwan e do Japão. Acontece que a relação da China com o Japão não é boa e, para Pequim, Taiwan não passa de um território chinês. Para evitar problemas, a jaqueta nova traz símbolos genéricos em cores semelhantes.