O baiano Luiz Amorim leu seu primeiro livro aos 18 anos de idade, no açougue onde trabalhava. Localizado na Asa Norte de Brasília, o estabelecimento era também o seu dormitório: Luiz havia saído de Salvador para o Planalto Central ainda criança, em busca de uma vida melhor.
Mas, no início, a vida próspera que a família havia sonhado na “Capital da Esperança” teve que esperar. Luiz passou a infância fazendo bicos como engraxate, vendedor de picolés e ajudante de pedreiro ao lado de seus cinco irmãos, enquanto a mãe ganhava o pão como empregada doméstica. Não tardou para o garoto perceber que, se quisesse melhorar a situação familiar, precisava de um requisito básico para prosperar em Brasília: era necessário aprender a ler e a escrever. A tarefa só seria concluída aos 16 anos.
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Morando nos fundos do açougue, Luiz não precisava pagar aluguel e, assim, poupava boa parte do salário. E foi aí que começou a ocupar seu tempo livre com a literatura. A primeira obra mais longa que leu foi um gibi de filosofia — uma história recuperando as ideias de Karl Marx, que Luiz confessa não ter entendo muito bem logo de cara. A dificuldade inicial, no entanto, não o impediu de se tornar um ávido leitor. A certa altura, já estava devorando uma média de 10 a 15 livros por mês, segundo os seus próprios cálculos.
“Estava encantado!”, recorda. “Para mim, era como se tivesse descoberto a roda”. No tempo em que foi funcionário do açougue, ele mergulhou nas obras dos filósofos gregos e de outros autores clássicos da literatura nacional e universal. Sócrates, Nietzsche e Lima Barreto eram — e continuam sendo — alguns dos seus preferidos.
Formando leitores
O próximo capítulo na vida de Luiz começou em 1994, quando seus chefes anunciaram que venderiam o açougue. Ele já tinha 29 anos e havia passado os últimos quinze — mais de metade da sua vida — em meio às carnes. Foi o momento em que decidiu abraçar a oportunidade: poderia seguir fazendo o que sabia, mas agora como patrão. Com o dinheiro que havia poupado nos longos anos de trabalho, comprou a loja.
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E, tão logo virou dono do negócio, Luiz tentou dar um passo além: ofereceria à clientela não só os vários cortes já bem conhecidos, mas também um alimento para o intelecto. Imediatamente, fez questão de colocar uma estante com dez livros para empréstimo gratuito no açougue, que rebatizou de T-Bone. Era uma espécie de convite-provocação para estimular o hábito de leitura entre os fregueses.
De quebra, a novidade servia ainda para mostrar que o trabalho braçal e atividade intelectual não precisavam caminhar em separado. “No começo, as pessoas estranhavam muito”, lembra. Mas, pouco a pouco, os clientes foram aceitando a ideia e preencheram as prateleiras com doações: o açougue começou a ganhar uma imagem de pequena biblioteca a serviço da comunidade que o frequentava.
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A peculiaridade chamou a atenção da vigilância sanitária, que acabou barrando o projeto de Luiz Amorim por considerar pouco higiênico colocar livros e carnes para compartilhar o mesmo espaço, ainda que não houvesse uma restrição específica prevista na legislação. Para contornar a questão, o açougueiro-livreiro decidiu levar o caso à imprensa local. A repercussão deu certo: pressionada, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou uma lei regulamentando as atividades socioculturais em estabelecimentos comerciais.
No ônibus e entre os intelectuais
Com a cobertura do processo e a eventual vitória na assembleia, o açougue de Luiz se tornou cada vez mais conhecido entre os brasilienses. Em 2007, o baiano novamente buscou expandir ainda mais o público leitor e levou seu acervo a outro ponto inusitado — a parada de ônibus. A ideia, agora, era espalhar a leitura pela cidade inteira. “Sou um doutrinador de leitores”, brinca Luiz. Instalada na W3 Norte, a primeira biblioteca foi inaugurada em um dia 21 de junho, data do aniversário de Machado de Assis.
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As prateleiras a céu aberto fizeram sucesso entre os passageiros: a demanda foi tanta que, seis meses depois, os funcionários do T-Bone instalaram outras nove bibliotecas na avenida. Tudo sem burocracia para acessar os livros, inteiramente gratuito, e funcionando 24 horas por dia. Em parceria com o Instituto Sabin, o Bancorbrás Cultural e o Centro Cultural Banco do Brasil, o projeto iniciado dentro do açougue e levado aos usuários do transporte coletivo brasiliense agora engloba 37 paradas de ônibus — e tem uma circulação calculada em cerca de 200 mil livros ao ano.
Com o tempo, o açougue ganhou notoriedade não só pelos livros e pela literatura, mas por promover todo o tipo de atividades artísticas. O estabelecimento de Luiz Amorim promove saraus, bienais de poesia e, anualmente, a Noite Cultural, uma grande festa que mistura lançamento de livros, shows musicais e apresentações teatrais. Artistas como Milton Nascimento, Lenine, Fernanda Abreu e Zé Ramalho já prestigiaram o evento.
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Após mais de uma década de existência, a Noite agora faz parte do calendário cultural oficial do Distrito Federal. Luiz, que se tornou presença notória no circuito intelectual da Capital, chegou até a carregar a tocha olímpíca em 2016. A história do açougueiro também virou tema de uma dissertação de mestrado da pós-graduação de Turismo da Universidade de Brasília.
Ainda assim, Luiz — hoje com 53 anos, mulher e filho — não se vê como um produtor cultural. Antes disso, considera-se um “açougueiro e filósofo”. Em sua página no Facebook, publica minibiografias de grandes pensadores e promove os eventos do T-Bone. “Faço um papel meio de Sócrates”, resume, buscando a referência de um de seus pensadores favoritos. “O que eu procuro é falar com os indivíduos e gerar reflexões”.
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