J.R.R. Tolkien, acredito, foi um dos pensadores mais importantes do século XX. Longe de ser uma literatura escapista, desimportante e lisérgica, como dizem alguns críticos, sua obra tem uma profundidade – teológica, filosófica e literária – semelhante às melhores obras literárias do século passado. Ainda que se baseie em mitos, lendas e fantasias, a obra de Tolkien fala sobre a dignidade e importância da pessoa humana, além de falar sobre a necessidade de ordem e liberdade.
Como augustiniano, ele via a história das coisas mundanas como algo cíclico e também via a história do cristianismo e da Igreja como algo com um propósito. O século XX, porém, como Tolkien acreditava — e acho que está claro nos assassinatos políticos perpetrados por comunistas, nazistas e outros ideólogos infectados pela imaginação diabólica — foi possivelmente o pior dos séculos. Ainda que a maioria parte da tirania estivesse no Oriente, o materialismo em ascensão, o capitalismo consumista invasivo e as burocracias tirânicas do Ocidente pareciam igualmente perigosas. O século passado deu origem a 65% dos mártires nos mais de 2000 anos de história do cristianismo. E, no começo do século XXI, 160 mil cristãos ainda estão sendo martirizados anualmente no mundo todo.
Antimodernidade e católico conservador, Tolkien costumava cair no desespero, sobretudo já no fim da vida, ao analisar a situação do mundo. “O espírito da maldade nos postos de liderança hoje é tão poderoso e encarna em tantas pessoas”, escreveu Tolkien em 1969, “que parece que tudo o que podemos fazer é nos recusarmos pessoalmente a adorarmos qualquer das cabeças da Hidra”. O mundo, pensava ele, não era muito melhor do que uma nova Torre de Babel, “só ruído e confusão”. Como explicava Ransom em “Uma Força Medonha”, de C.S. Lewis:
“O veneno foi destilado no Ocidente, mas hoje já transbordou para todos os cantos. Para onde quer que você vá, encontra máquinas, cidades cheias, tronos vazios, textos falsos, livros estéreis: homens tornados loucos por falsas promessas e rancorosos dos verdadeiros mistérios, adorando as obras de ferro de sua própria lavra, distantes de sua mãe na Terra e seu Pai no Céu. Você pode ir até o Oriente que encontra o Ocidente e voltou para a Inglaterra pelo oceano, e nem assim você terá vislumbrado a luz. A sombra de uma asa negra paira sobre todos nós”.
O projeto dos Inklings — grupo do qual Tolkien era membro, juntamente com Lewis, Owen Barfield e Charles Williams — não era nada menos do que a recriação do mundo, distante da ideologia e próximo da imaginação mítica e poética. Lewis o descrevia como “um grupo literário de amigos. [Williams] lê para nós seus manuscritos e nós lemos os nossos para ele: fumamos, discutidos e bebemos juntos”. Lewis perguntou a um amigo beneditino: “Há prazer maior na Terra do que um círculo de amigos cristãos ao redor do fogo?”. Lewis também chamava a si mesmo e aos amigos de “Velhos Homens Ocidentais”. Isto é, eles acreditavam que o Ocidente pré-moderno criou a melhor sociedade que já existiu. Um dos Inklings, John Wain, escreveu que o grupo que se encontrava ou no pub Bird and the Baby ou na sala de Lewis em Oxford era “um grupo de investigadores, quase de incendiários, se reunindo para estimular um ao outro na tarefa de redirecionar a arte e a vida contemporâneas”. Não importa o que o mundo fez com a Verdade; ela não poderia ter sido destruída, porque a Verdade é a Verdade. É a base do mundo. Quando alguém submete sua vontade pecadora à Graça perfeita, tudo é possível.
A Graça sempre foi e será abundante. Ela esteve e está em todos os lugares, uma dádiva concedida pelo Criador. Ela dá vida a todas as coisas; une todas as coisas; ela nos chama de Lar. Como garante o Velho Testamento ao mundo, não há nada de novo sob o sol. Na verdade, todas as coisas vêm do Único e ganha vida pelo amor do Espírito Santo, que provém do Amor do Pai e do Filho. A Graça é abundante. Ela vem da Eternidade e entrou no Tempo, como costumava escrever Christopher Dawson. Enquanto o Tempo existir, a Graça também existirá. Todos nós, pois, somos formados pela Graça, ganhamos vida pela Graça, somos chamados pela Graça e julgados de acordo com nossa reação à Graça.
Para os Inklings, a Graça geralmente aparece na Linguagem, e a Linguagem forma o início, meio e fim da História, a História de Deus, a palavra de Deus, ou Evangelho. O Autor, ao falar, deu origem ao Universo. Depois que Seu povo ignorou, zombou e perverteu a abundância da Graça, o Criador enviou Seu Filho para viver como um de nós, permanecendo completamente Deus, para nos ensinar, para morrer na cruz, traído por Seus melhores amigos, e para conquistar a morte por meio do Amor da Graça três dias mais tarde. Como escreveu Tolkien:
“O Evangelho contém um conto fantástico, algo maior que envolve a essência de todas as histórias fantásticas. Ele contém muitas maravilhas – especialmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” em seu significado perfeito e conciso; e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe. E essa história entrou para a História e o mundo primário; o desejo e aspiração da subcriação foram elevados para a realização da Criação. O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. A história começa e termina feliz. Ela contém a “consistência ulterior da realidade”. Não há outra história que os homens desejassem que fosse real, que tantos céticos aceitaram como verdadeira por si só. Porque a Arte dessa história tem o tom absolutamente convincente da Arte Fundamental, isto é, a Criação. Rejeitá-la só gera tristeza ou ira”.
Cada um de nós somos criados e ganhamos vida depois que a Encarnação vive por algum tempo na segunda metade da História. Nem o Filho sabe o Fim. Mas ele ocorrerá. E, até então, nosso dever é fazer o certo, o bem e a vontade de Deus.
Nascida em certa época, a toda pessoa viva, chamada e julgada pela Graça é reservada certa quantidade de tempo nesse mundo. Participantes da História, todos nós exercemos um papel. Alguns de nós têm vários papeis, alguns de nós têm menos, alguns de nós têm papéis grandiosos e outros, papéis menores. Ainda assim, todos temos nosso lugar, importância, singularidade, dignidade na Economia da Graça. Podemos até nos ressentir da época em que vivemos. Gandalf alerta: “Mas não cabe a eles decidirem. Só podemos decidir quanto ao tempo que nos é dado”. Devemos agir, pois, de acordo com a Vontade Dele. Por meio da tradição, das Escrituras, do magistério e da Lei Natural que conhecemos. Com a Encarnação de Cristo e a Eternidade fazendo parte do Tempo, a Humanidade sabe-se redimida e a Graça finalmente aperfeiçoará a Natureza.
Para Tolkien, a mitologia tocava a parte mais profunda de nossa alma e nos convida a explorarmos a beleza da criação, descobrindo e participando do caráter sagrado da vida. Somente no Ocidente Verdadeiro pode-se compreender realmente a ordem, a virtude e a liberdade. Como o próprio Tolkien disse, a mitologia e o objetivo de O Senhor dos Anéis é tão somente um retorno ao cristianismo. Sua mitologia da Terra Média, esperava, serviria como um chamado para que o Ocidente voltasse à sua fase pré-estatista, pré-imperialista e pré-materialista. Com a volta de Aragorn, “ a história termina no que é como o restabelecimento de um Sacro Império Romano com seu trono em Roma”, admitiu Tolkien em 1967.
Certamente Tolkien, assim como a maioria dos humanistas cristãos augustinianos, tinha um quê de jacobita. O romancista norte-americano Stephen Lawhead talvez tenha captada o desejo por um novo cristianismo em seu “Dream of Taliesin” [Sonho de Taliesin], que faz parte da Série Pendragon em seis volumes. Quando um Stuart surge para reclamar o trono britânico no começo do século XXI, ele repete o Sonho, uma visão do “Reino do Verão”:
“Há uma terra, uma terra de beleza resplandecente onde cada homem protege a dignidade do seu irmão como se fosse a sua, onde a guerra e a ambição desapareceram e as tribos vivem sob a mesma lei do amor e da honra. É uma terra cheia de verdade, onde a palavra de um homem é seu juramento e a mentira foi banida, onde as crianças dormem em segurança nos braços da mãe, sem jamais conhecer o medo e a dor. É uma terra onde reis servem à justiça e não à espada; onde a misericórdia, a bondade e a compaixão correm como águas profundas; e onde os homens reverenciam a virtude, a verdade e a beleza acima do conforto, prazer e egoísmo. Uma terra onde a paz reina no coração de todos os homens. Onde a fé ilumina como um farol em todas as colinas e o amor é como um fogo que queima em todos os prados; onde o Verdadeiro Deus é adorado e Seu caminho é aclamado por todos”.
Isso representa um sonho, claro. Mas é um sonho incrivelmente belo e encantado que está profundamente incrustrado no mito, um mito que manteve boa parte do mundo ocidental cativo por mil e quinhentos anos. Como todos os mitos, ele contém elementos de verdade. “O arturiano e o jacobita estão unidos na autenticidade da autoridade que representam. Eles estão ligados pela Fé e na Fé”, escreve Joseph Pearce. “Eles são defensores eternos do cristianismo contra os infiéis. Eles estão além da rebelião transiente do Tempo. Eles lutaram a Grande Derrota sem perderem de vista os sinais distantes da Vitória Final. Eles não podem ser conquistados. Eles voltarão”.
A verdade, como os humanistas cristãos sabem, não estava no retorno de qualquer reino humano, por melhor que ele fosse, e sim no desejo pelo retorno do Rei Verdadeiro, da Sabedoria Divina. Por causa da Encarnação, da morte e da ressurreição do Rei Verdadeiro, o ser humano recuperou a dignidade, de acordo com Tolkien e os humanistas cristãos. Cada pessoa é “uma alegoria”, disse Tolkien ao seu ex-aluno e poeta W.H. Auden, “cada uma corporificando uma história específica, vestida com os trajes do tempo e espaço, verdade universal e vira eterna”.
*Bradley J. Birzer é cofundador e colaborador do Imaginative Conservative.
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