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“Criança vê, criança faz” é a premissa de um vídeo da Associação Nacional para a Prevenção do Abuso e Negligência Infantil da Austrália (NAPCAN, na sigla em inglês), reproduzido por parceiros ao redor do mundo e visto por milhões de pessoas nos últimos dez anos. Longe de mero produto da intuição, a associação entre a exposição precoce a conteúdos midiáticos com forte apelo sensual ou sexual e a crescente sexualização da infância tem sido uma preocupação de estudiosos em todo o planeta. Uma pesquisa rápida no Google Schoolar ilustra isso: são mais de 30 mil resultados somente para os termos sexualização infantil e mídias sociais.
Durante o primeiro ano da pandemia, a psicóloga Christia Spears Brown, professora na Universidade de Kentucky, preparou um relatório afirmando que uma criança americana no ensino fundamental assiste, em média, a quatro horas e meia de televisão por dia. “A essa taxa de exposição, as crianças veem aproximadamente 78.069 exemplos de modelos de 'garotas sexy’ apenas na programação infantil todos os anos. E com escolas, playgrounds e atividades extracurriculares suspensas, as crianças provavelmente consumirão muito mais mídia neste ano”, escreveu para o Conselho de Famílias Contemporâneas, uma organização sem fins lucrativos e apartidária, com sede na Universidade do Texas.
De acordo com Brown, mesmo antes do fim da escola primária, meninas vêm equiparando aparência sexualizada como marcador de popularidade e status. Ou seja, elas apostam em “parecer sexy” antes de terem qualquer compreensão do assunto ou de entenderem isso como uma forma de atrair a atenção do sexo oposto. As consequências vão desde dificuldades de aceitação do próprio corpo até um baixo desempenho escolar (chegando ao extremo de meninas fingirem ser menos inteligentes, para parecerem mais atraentes).
A Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês) aponta que a sexualização (condição oposta à sexualidade saudável), entre outros contextos, ocorre quando a sexualidade é imposta inadequadamente a uma pessoa – o que é o caso das crianças. Os prejuízos nesse caso podem alcançar a função cognitiva, a saúde física e mental e o desenvolvimento sexual saudável do indivíduo, com subprodutos como distúrbios alimentares, baixa autoestima e depressão.
“Nossa pesquisa com meninas de 11 a 14 anos mostra que, quando elas priorizam a atratividade sexualizada, mesmo que temporariamente, parecem despriorizar, dentro de si mesmas, traços que presumem serem incompatíveis com a sensualidade, como a inteligência”, explica Brown. Isso ficou evidente, ela completa, em um experimento que deu a algumas meninas em idade elementar uma boneca Barbie Fashion por apenas cinco minutos, e um brinquedo Sr. Cabeça de Batata a outras. As aspirações de carreira relatadas aos pesquisadores pelas primeiras foram mais limitadas do que as das últimas, que brincaram com um boneco não sexualizado.
Em 2016, um grupo de pesquisadores analisou dez programas de TV mais populares entre meninas brancas e latinas de seis a 11 anos de idade nos EUA. Eles constataram que, embora apenas 38% dos personagens fossem meninas, 72% das vezes elas eram apresentadas de forma sexualmente objetificada (a proporção não variou entre brancas e latinas). O trabalho, financiado pela Universidade da Califórnia, apontou pelo menos três ocorrências de sexualização por episódio, totalizando 770 cenas em toda a amostra analisada.
“A sexualização está associada a consequências negativas para a saúde mental e física das meninas (...) Embora a roupa sexualizada fosse a forma mais comum de sexualização nos programas infantis, uma ampla gama de conteúdo sexualizante estava presente. Instâncias de sexualização incluíram comentários sexualizantes, exposição corporal, comportamentos e atividades físicas autossexualizantes, comportamentos físicos sexualizantes em relação aos outros, objetificação verbal e física e modificação do corpo/aparência. Essas descobertas sugerem que a sexualização está presente na mídia infantil popular entre meninas latinas e brancas e que identificar meios para combater essa influência deve ser uma prioridade", defende o estudo.
Comportamento incompatível
Embora as meninas tendam a ser mais sexualizadas de forma direta pela mídia, os efeitos são nefastos para ambos os sexos, se estendendo também para médio e longo prazo.
Na década de 1960, o psicólogo Albert Bandura descreveu a teoria da aprendizagem social, afirmando que o ser humano observa as ações de outros e, então, desenvolve comportamentos semelhantes. “A maior parte do comportamento humano é aprendida de forma observacional por meio de modelagem: a partir da observação de outros, forma-se uma ideia de como novos comportamentos são realizados e, em ocasiões posteriores, essa informação codificada serve como guia para a ação”, escreveu em seu livro Social Learning Theory (Teoria da Aprendizagem Social, em tradução livre), publicado em 1977.
Nesse sentido, imitar o mundo adulto - reproduzindo desde as profissões até os comportamentos que veem no dia a dia – faz parte do desenvolvimento das crianças. O problema aparece quando o tipo de conteúdo que elas acessam não é compatível com sua idade. “Hoje em dia há um descompasso entre a maturidade psicossexual das crianças pequenas e as informações sexuais às quais elas são rotineiramente expostas”, afirma Diane Elizabeth Levin, doutora em Sociologia da Educação e conhecida por seu trabalho acerca dos efeitos da mídia sobre crianças.
Isso porque a consciência e compreensão psicossexual das crianças é uma construção gradual, que começa com experiências sensoriais como beijos e abraços, passando pela aprendizagem de se referirem a si mesmos como meninos ou meninas, por volta dos 18 meses. “Quando as crianças são pequenas, devemos lançar as bases para relacionamentos sexuais saudáveis posteriores. Fazemos isso fornecendo a elas modelos de relacionamento carinhoso e afetuoso. Também podemos responder a perguntas sobre questões como diferenças físicas entre homens e mulheres ou 'de onde vêm os bebês'. No entanto, as crianças de hoje são bombardeadas com grandes doses de conteúdo sexual explícito que elas não conseguem processar e que muitas vezes são assustadores”, detalha Levine, em artigo publicado no livro 'The Sexualization of Childhood' [A sexualização da infância, em tradução livre (Greenwood Publishing Group, 2009)].
Entre os exemplos da autora está uma menina norte-americana de sete anos que queria fazer dieta e foi pega pela mãe chorando por não ter o corpo “sexy” como o de uma coleguinha de turma. Levin também relata ter sido procurada por uma experiente educadora de alunos de 5ª e 6ª séries, preocupada com uma discussão surgida em sala de aula entre um grupo de meninos. “Ela estava falando sobre sexo como uma expressão de profunda afeição entre parceiros em um relacionamento. Um de seus alunos, Gabe, a desafiou dizendo: ‘Bem, você não precisa gostar da pessoa. Eu vi sexo na Internet. Meu primo me mostrou. Eles só fazem isso porque é divertido, eles gostam.' Alguns garotos pareciam surpresos, mas alguns outros disseram que também tinham visto sexo na Internet”, conta.
Para a autora, “claramente a exposição ao conteúdo sexual na infância influenciará o comportamento do adolescente" e, no futuro, do adulto. Um dos motivos é que crianças concentradas em entender conteúdo sexual maduro deixam de se dedicar a tarefas apropriadas ao desenvolvimento saudável de sua idade. Além disso, afirma Levine, o envolvimento em comportamento sexual precoce acaba resultando em situações que podem prejudicar a capacidade de relacionamentos saudáveis na vida adulta.
“Para abordar as preocupações sobre o comportamento sexual dos adolescentes, precisamos começar com uma melhor compreensão dos fatores que estão moldando suas ideias sobre gênero, sexualidade e relacionamentos interpessoais. Também precisamos entender como a 'epidemia do sexo casual' se relaciona com outros aspectos de suas vidas. Um ponto de partida essencial para desenvolver essa compreensão é através de um exame do papel amplamente expandido da mídia e da cultura comercial na vida das crianças nas últimas três décadas”, defende Levin.
Dificuldade de controle
O mais recente relatório da rede EU Kids Online – que coletou dados de crianças de nove a 16 anos em 19 países europeus, entre 2017 e 2019 – revelou um aumento substancial na proporção de crianças que usam smartphone e internet, em comparação com a pesquisa anterior, de 2010. O tempo que as crianças passam online quase dobrou em muitos países: foi de cerca de uma para três horas por dia na Espanha, e de duas para três horas e meia na Noruega.
Cerca de um quarto dos ouvidos relatou ter tido experiências negativas online no último ano (o que não necessariamente tem relação com conteúdo sexual). Entre metade e um quarto das crianças se comunicaram online com pessoas que não conheciam. Já a porcentagem de jovens de nove a 16 anos que relatou ter visto algum tipo de imagem sexual no último ano variou de 21% (França) a 50% (Sérvia). A maior prevalência foi entre meninos e crianças mais velhas; e a internet foi o meio mais comum de exposição do que a mídia tradicional (como televisão, filmes e revistas).
Em tempos de redes sociais fica ainda mais difícil medir o alcance de conteúdos nocivos sobre as crianças. “Fornecer uma estimativa do tempo que as crianças passam online não é uma tarefa fácil. Como observado, ter um smartphone 'sempre à mão' significa que o uso da internet pelas crianças tornou-se contínuo e intersticial, preenchendo os intervalos entre as atividades diárias”, analisa o relatório.
A Associação Americana de Psicologia afirma que “praticamente todas as formas de mídia estudadas fornecem ampla evidência da sexualização”, o que inclui televisão, videoclipes, letras de músicas, filmes, revistas, mídia esportiva, videogames, internet e publicidade.
"Os pais podem contribuir para a sexualização de várias maneiras”, alerta a APA, abrangendo ações como “transmitir a mensagem de que manter uma aparência física atraente é o objetivo mais importante", "permitir ou incentivar a cirurgia plástica” e até comprar roupas ou acessórios projetados para tornar as crianças atraentes e sensuais.
A última edição da pesquisa TIC Kids Online Brasil, que tem por objetivo gerar evidências sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes (entre 9 e 17 anos) no país, aponta que pelo menos metade dos filhos dos entrevistados (49% afirmaram que sim e 6% não sabiam) teve contato com publicidade inapropriada para a idade na internet. A pesquisa também ouviu as crianças e adolescentes: 76% disseram que os pais orientam a não ver alguns conteúdos e 27% utilizam filtros de bloqueio; 36% relataram ter pedido alguma roupa ou sapato e 13% maquiagens e produtos de beleza, após contato com publicidade, sendo que 35% dos pais compraram os itens solicitados.
"Uma coisa é uma criança brincar com a maquiagem da mãe, se borrar de batom, passar pó de base, pintar as sobrancelhinhas, fazer uma bagunça com vestidos, com os sapatos da mãe. Outra coisa é você promover uma festinha numa cabeleireira ou Limousine, que vai promover a hipervalorização desses comportamentos. Fazer com que elas ajam como adultas e ponham salto alto, roupinhas da marca e comecem a hipervalorizar esse mundo das aparências, do consumo”, alerta, em entrevista no YouTube, o pediatra Daniel Becker.
Outra situação grave, na opinião do médico, é expor crianças como “cabides de moda”, em propagadas de roupas, brinquedos e comida. “São as blogueiras, as crianças youtubers, os instakids, usados pelas famílias e pelos pais para fazer dinheiro, expondo essas crianças a um mundo que é muito tóxico para elas, de celebridade fácil, de fama vazia. Um mundo de extremo consumismo, de extrema futilidade, extremo materialismo, que não é um mundo saudável para a criança”, ressalta.
O que os pais podem fazer
A psicóloga Roseana Barone Marx explica que o desenvolvimento humano segue uma linha natural que não se altera, independentemente do contexto sociocultural. “Uma criança senta com seis meses, anda com um ano e fala com dois. Isso aconteceu com Cabral, com Aristóteles e com todos nós”, exemplifica. “Com dois ou três anos, a criança vai percebendo que o papai e a mamãe são diferentes e, conforme o sexo, vai se formando a identidade psicossexual. Isso abre a criança ao mundo relacional e ela passa a brincar com os pares como ela, menina ou menino, e a própria brincadeira fica mais parecida com o que ela é como identidade. Ou seja, a identidade vai acontecendo de maneira natural”, diz.
Se ali pelos oito ou nove anos a sexualidade “adormece” e o interesse da criança é brincar, a logoterapeuta lembra que, passada essa fase, meninos e meninas começam a se atrair, mas ainda de forma envergonhada, até que mais tarde se abram para relacionamentos. “Esse meio muito sexualizado, trazendo comportamentos da fase posterior para a criança pequena, traz um choque para a criança. A gente acha bonito, precoce, bate palma, e a criança quer prestígio e vai correspondendo, mas isso não combina com a natureza dela. Ela vai adquirindo comportamentos e descobertas que em nível inconsciente amedrontam", ressalta.
Apesar do hiperestímulo, a criança não tem condições de corresponder a ele. “Não adianta treinar um bebê de oito meses a andar, ele não sai andando. A linha de desenvolvimento é natural e não muda, o desvio padrão é muito pequeno, não pula cinco ou seis anos. A criança é capaz de repetir coisas sexualizadas, sem saber do que se trata. E isso pode trazer todo tipo de dificuldade, como falta de aceitação de si e depressão, nós vemos crianças deprimidas”, lamenta.
Para lidar com esse contexto hiperssexualizado, a psicóloga orienta que os pais formem os valores nos filhos, ajudando-os a fazer boas escolhas em situações fora da proteção familiar. “Achar um comportamento precoce bonito reforça isso e traz estados de ensimesmamento, que é prejudicial, porque o adolescente já tem essa dificuldade de voltar-se muito para dentro de si. Então os pais e a escola precisam ajudar a criança a se parecer com aquela que tem comportamentos da idade certa, não o contrário”, ensina.
Estar perto das crianças em momentos de brincadeiras e orientá-las, nas fases em que começam a se tocar mutuamente, é fundamental para que a identidade sexual não seja confundida e para protegê-las de abusos. “Quando um estrago desses acontece, a sexualidade é interrompida na linha de desenvolvimento”, lamenta Roseana.
Já sobre o smartphone, a dica não é apenas orientar ou supervisionar, mas “ficar junto”. Isso porque mesmo uma pesquisa simples, de algo corriqueiro, pode acabar levando a conteúdos eróticos. “É preciso ficar junto e ensinar a criança a fazer a discriminação. Só as muito pequenas não conseguem discernir isso. As maiores, se entendem que não é um bem para elas, vão saber dizer não, caso esses valores sejam formados”, garante.