Uma grande vitória foi conquistada para a comunidade LGBT no Brasil — ou assim nos dizem. O Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu em agosto que o uso de ofensas homofóbicas e “discurso de ódio” agora são crimes puníveis com penas de prisão variando de dois a cinco anos. O Brasil, que já havia criminalizado outras formas de discurso de ódio, juntou-se à crescente lista de mais de 30 nações onde expressar certas visões consideradas odiosas pode levar alguém para a prisão. A notícia desta decisão foi comemorada pelos suspeitos de sempre nos meios de comunicação LGBT e progressistas, mas isso não é o grande salto em progresso que seus apoiadores imaginam. Proibir o discurso de ódio sob pena de prisão não é apenas um passo equivocado e perigosamente imprudente, que faz a sociedade regredir. É também algo que acabará prejudicando as pessoas LGBT a longo prazo.
Nenhuma pessoa decente, é desnecessário dizer, é a favor do preconceito ou do uso de insultos homofóbicos dirigidos a outras pessoas. Mas a liberdade de expressão, como um direito humano, nunca foi “o direito de expressar opiniões aprovadas”. Tal discurso não precisa de proteção, e o que é “aprovado” é tanto subjetivo quanto constantemente mutável. O valor da liberdade de expressão está em proteger o discurso do qual discordamos, resguardando assim toda a expressão, incluindo a nossa. Como Noam Chomsky uma vez disse, "Se não acreditamos na livre expressão para as pessoas que desprezamos, não acreditamos nela de forma alguma".
Ao corroer os alicerces da liberdade de expressão em nome da proteção da comunidade LGBT, o Brasil — junto com o Reino Unido, o Canadá, a Holanda e todos os outros países com leis semelhantes — está jogando um jogo perigoso. Eles estão construindo uma dicotomia de soma zero onde os direitos LGBT e a liberdade de expressão são conceitos mutuamente exclusivos que não podem coexistir, onde proteger as pessoas LGBT deve vir às custas da liberdade de expressão. Do ponto de vista de alguém que tem os melhores interesses da comunidade LGBT em mente, pedir às pessoas para escolher entre os direitos LGBT e a liberdade de expressão é um erro estratégico incrível. A liberdade de expressão não é apenas totalmente compatível com os direitos LGBT — foi o que ajudou a possibilitar esses direitos desde o início!
Foram gerações de ativismo, discursos, protestos, marchas, editoriais e artigos de jornal, livros, palestras e conversas que levaram à igualdade de direitos, leis antidiscriminação, casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma mudança profunda na cultura. Nada disso teria sido possível se as pessoas envolvidas não fossem livres para falar o que pensam e expressar opiniões que, na época, não eram de modo algum aprovadas. Sem a liberdade de expressão, não há movimento, não há comunidade, não há orgulho e nem direitos LGBT. É bom pensar duas vezes antes de decidir se vale a pena jogar isso tudo fora para poder atingir os preconceituosos com formas mais punitivas de retaliação.
Falei com Eli Vieira, um biólogo e jornalista brasileiro que também é um homem gay. Ele relembrou um momento de sua juventude enrustida quando um membro da família, em um surto de mania, gritou que ele era um "veado" (um insulto homofóbico na cultura brasileira) a plenos pulmões.
“Meu pai, que na época não sabia que eu era gay, estava presente”, disse Eli. Por mais dolorosa que tenha sido essa experiência, ele ainda ama sua família, e eles o amam. “Se tal expressão tivesse sido criminalizada no Brasil naquela época, isso teria me causado muito mais angústia do que minha parente jamais poderia. Vê-la presa por me chamar de ‘veado’ teria causado um dano inestimável à sua saúde mental e à minha”.
Suprimir o discurso de ódio, é claro, não erradica de fato os sentimentos por trás dele. O poder do Estado pode e deve ser usado para proteger os direitos mais fundamentais das pessoas, como a igualdade perante a lei, proteção à integridade física e contra a discriminação injusta em moradia ou emprego. Mas enquanto as leis podem alterar comportamentos, corações e mentes não são mudados por decreto governamental, e tentar policiar os pensamentos do público por meio de tribunais ou legislativos é um caminho traiçoeiro a seguir. Criminalizar a expressão anti-LGBT acabará servindo não para se livrar da homofobia, bifobia, transfobia e similares, mas para forçá-las ao submundo e para longe do olho público, onde irão fermentar na escuridão, alimentadas por uma narrativa de vitimização. E para quê? A intolerância anti-LGBT já está em declínio em todo o mundo, como medido tanto por pesquisas de opinião quanto por direitos legais. Persuasão funciona. Coerção não. Já sabemos disso.
Liberdades são sempre mais fáceis de serem retiradas do que estabelecidas. É tentador, quando temos o poder, criar ferramentas autoritárias para impor nossa vontade e cartilha aos outros. O que acontece, no entanto, quando nosso lado não ocupa mais os corredores do poder? O que acontece quando nosso sucessor, cuja política pode ser diametralmente oposta, pega essas ferramentas e começa a usá-las para avançar as suas próprias ambições? Devemos estar preparados para ver todo poder governamental ou institucional que criamos ser depois usado contra nós por nossos adversários políticos ou ideológicos. E dar ao Estado a capacidade de prender cidadãos por expressar opiniões proibidas é uma ferramenta potente, de fato.
Frederick Douglass uma vez disse: “A liberdade fica sem sentido onde o direito de se expressar pensamentos e opiniões deixou de existir. Esse, de todos os direitos, é o que põe mais medo nos tiranos. É o direito que eles, antes de tudo, derrubam. Eles conhecem seu poder”. Douglass, um ex-escravo lutando pela abolição em uma nação onde a escravidão legal ainda existia, sabia algo sobre tirania. Ele também sabia alguma coisa sobre a história. A liberdade de expressão é o direito fundamental no qual todos os outros dependem. Enfraquecer os direitos de expressão hoje arma nossos perseguidores de amanhã.
Tornou-se cada vez mais comum ouvir pessoas em círculos políticos de esquerda equipararem a própria ideia de liberdade de expressão a “mensagens cifradas de direita” e “discurso de ódio”. Isso indica não apenas uma ignorância sobre como as sociedades prosperam, mas uma falta de princípios. E a falta de princípios é, no fundo, uma falta de disciplina. É a incapacidade de ver além dos ganhos de curto prazo para as implicações e precedentes mais abrangentes para adiante. Agora é a hora não para bater no peito, mas para a prudência e princípios liberais. Se falharmos neste teste político do marshmallow [um teste aplicado em crianças para que aprendam a esperar por recompensas] e trocarmos a gratificação imediata de ver nossos oponentes presos em troca da deterioração de nossos direitos mais fundamentais, plantaremos as sementes de nossa própria destruição. Se princípios elevados não comovem, que tal o senso de autopreservação?
Queer Majority é um site de LGBT alinhado com o liberalismo clássico e um projeto do American Institute of Bisexuality, organização sem fins lucrativos registrada nos Estados Unidos desde 1998.
Jamie Paul é escritor e editor, com experiência em negócios. Formou-se em cinema pela Universidade Drexel, na Filadélfia, Estados Unidos. Além de escrever para o QM, mantém a newsletter “American Dreaming”.
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