Nem o descobrimento do Brasil, nem as belezas naturais da Mata Atlântica ou o risco de extinção da ararinha azul. Faltando pouco mais de oito meses para o Carnaval 2018, o enredo em discussão nas escolas de samba do Rio de Janeiro é o corte de recursos públicos para a festa do ano que vem. A Liga das Escolas de Samba chegou a divulgar que com essa decisão o desfile do ano que vem ficaria inviabilizado. Quatro dias depois desse anúncio, João Dória também comunicou a intenção de diminuir a verba pública para a festa de São Paulo.
Se no Rio de Janeiro Marcelo Crivella foi enfático em cortar o repasse pela metade (de 26 para 13 milhões), Dória foi mais cauteloso. Não falou em menos dinheiro, mas em menos participação de verba pública. "O que haverá é uma redução do investimento público e um aumento do investimento privado para equalizar e garantir a realização do carnaval", afirmou o prefeito paulistano, que este ano destinou 30 milhões às escolas de samba.
Sem verbas
As duas cidades mais ricas do país encaram novas realidades orçamentárias com a crise que abateu a economia e derrubou receitas. São Paulo, por exemplo, começou as discussões do orçamento municipal para 2018 prevendo 617 milhões de reais a menos. Em 2016, a receita da prefeitura já havia sido 802 milhões menor que no ano anterior.
No Rio, a situação é bem mais dramática. Prefeitura e Estado vêm de seguidas crises com a queda na geração de impostos pela Petrobras, o endividamento do Estado, atrasos de salários de servidores e a queda no ISS, Imposto Sobre Serviços, uma das principais fontes de receita dos municípios e que é afetado diretamente pelo esfriamento da atividade econômica. Só no Rio, neste momento, R$ 350 milhões do orçamento para a Educação estão bloqueados pela Secretaria da Fazenda pela não realização do previsto na arrecadação.
O secretário de educação do Rio, César Benjamim, que se posicionou em nota e em redes sociais sobre o assunto, se assumiu como um dos provocadores da proposta de corte junto ao prefeito e à Secretaria da Fazenda.
O foco da discussão tem um motivo nobre. Os recursos para as creches municipais. “Há vários anos as creches conveniadas não têm reajuste de mensalidades no valor per capita por criança, são em sua origem creches comunitárias (entidades filantrópicas, criadas no coração de comunidades muito pobres que recebem dinheiro nosso para funcionar). Essas creches atendem 16 mil crianças. Poderíamos abrir em curto prazo mais seis mil vagas sem investimento novo. A Prefeitura paga R$ 300 por mês por cada crianças, o que equivale a R$ 10 reais por dia, contra R$ 650,00 a R$ 800,00 pagos em São Paulo e em Belo Horizonte. Esse valor, congelado há bastante tempo, se tornou irreal. Por isso, em vez de ampliar vagas, as creches conveniadas estão fechando. Vi que era preciso deter esse movimento”, disse o secretário”.
Mas a despeito de um movimento racional do orçamento público em direção a algo que legalmente é dever do Estado, o secretário não quis responder nosso questionamento sobre o fato gerar uma discussão legítima sobre o papel do poder público no financiamento desse tipo de evento. Benjamim preferiu amenizar a questão relembrando que o patamar atual de recursos do município às escolas(dois milhões de reais por agremiação) foi instituído pelo prefeito anterior, Eduardo Paes, para o último carnaval e que de 2011 até 2016 cada escola recebia apenas um milhão de reais por ano da prefeitura. Benjamim optou em passar a bola para outra discussão: “Quanto é pago à TV Globo pela transmissão do carnaval? Quanto dele vai para as escolas de samba?”, perguntou.
Já o prefeito Marcelo Crivella, que teria na abertura desse debate um conforto para fugir da confusão sobre suas intenções com a redução da verba para as escolas de samba com sua origem religiosa na Igreja Universal, preferiu reafirmar a questão orçamentária: "é uma maneira também de a gente incentivar o carnaval a buscar recursos na iniciativa privada, o que é sempre bem vindo. Não tem nada de religião. Isso é responsabilidade fiscal e prioridades”.
O prefeito de São Paulo também seguiu a mesma cautela em focar a discussão em números e não em conceitos. Mesmo sendo mais hábil em captar das redes sociais a reação do público para alavancar discussões mais conceituais como ocorreu no caso das pichações e da Cracolândia, João Dória esta semana se limitou a dizer que “não podemos gastar mais do que aquilo que se arrecada. Não podemos ter uma atitude irresponsável fiscalmente para atender este ou aquele setor...vamos fazer um trabalho ainda mais intenso com o setor privado. Vamos suplementar os recursos que a Prefeitura tiver a necessidade de reduzir com investimento privado".
Sem discussão
Se para os políticos e seus redutos eleitorais nas escolas de samba a discussão de ordem moral ainda é evitada, para o público não. Nas redes sociais o assunto reverberou com a discussão sobre a ética das decisões sobre gastos públicos. Para o doutor em filosofia e professor de ética da Universidade Federal de Uberlândia Alcino Bonella, o motivo pelo qual se faz o gasto deveria ser mais determinante que a própria disposição de recursos.
“Mesmo se houvesse dinheiro deveria haver priorização e avaliação do custo-efetividade dos gastos”, diz o professor, que encontra explicação na forma como se faz política do Brasil para a falta de posicionamento dos prefeitos.
Segundo ele, “há na prática forte tendência a não ter posições nem políticas coerentes com a ideologia. Depende do contexto e dos acordos políticos”. Isso fica visível quando avaliamos que nem o PRB de Crivella, que chega a ter um tópico sobre religião em seu programa partidário, mas não fala nada de cultura, ou o PSDB de Dória, partido que conduziu a desestatização do país na década de 1990, ofereceriam qualquer constrangimento ideológico para desobrigarem seus prefeitos do financiamento do Carnaval e assumirem uma posição.
Sem recursos públicos
Em 2016 o Tribunal de Contas da União (TCU) tomou uma decisão que segue no sentido de uma posição sobre tema similar e que poderia ser exemplar não só para os casos que envolvem a Lei Rouanet. Determinou que eventos com potencial lucrativo ou que possam atrair investimento privado seriam proibidos de receber recursos da lei. O Tribunal avaliou os casos específicos do Rock in Rio e do festival SWU, que ocorreram em 2011.
Este último, realizado em Paulínia, no interior paulista, teve no palco entre diversos nomes de peso, Black Eyed Peas, Kanye West, Snoop Dogg e Emicida, e parcerias com ONGs como Geenpeace e WWF.
O Rock in Rio gerou renúncia de receita de imposto de renda de R$ 2 milhões e o SWU não chegou a captar recursos apesar da aprovação do Ministério da Cultura ter sido dada. No parecer, o TCU alertou para o fato de que um dos objetivos da Lei Rouanet é apoiar projetos com maior dificuldade para conseguir financiamentos.
No caso do desfile das escolas de samba do Rio, essa não parece ser uma dificuldade. Além de diversas marcas expostas na Marquês de Sapucaí, os ingressos para apenas uma noite de desfile do grupo especial do ano que vem já estão à venda em valores que variam por pessoa de R$ 418 e R$ 898 na arquibancada ou R$ 4.978 em um camarote.
Sem Estado
Mas se a discussão sobre a moralidade dos gastos ainda é evitada pelos governantes, na iniciativa privada não faltou quem estivesse disposto pelo menos para iniciar uma discussão sobre alternativas. Esta semana a Associação de Hotéis do Rio (ABIH-RJ) se posicionou. Para o setor, o Carnaval é a data mais importante do ano. Além de incrementar as receitas, é o evento com maior tempo médio de ocupação de quartos.
A média de permanência dos turistas é de quatro dias nesse período. Por meio de sua assessoria a ABIH informou: “Já estivemos em reunião com a Riotur e ainda esta semana estaremos com a Liesa(Liga das Escolas de Samba) para estudar uma solução, mas não trabalhamos com o cenário de cancelamento dos desfiles”. Sobre aporte de recursos da própria associação a informação é de que isso ainda não foi negociado. A assessoria de imprensa da Liesa informou à Gazeta do Povo que ainda não há definições sobre quando a reunião entre as duas entidades deve ocorrer.
Esperar que haja interesse da iniciativa privada em bancar uma festa desse porte que é marca registrada do Brasil no exterior e que inclusive tem espaço reservado como feriado não é algo que deveria ter demorado tanto tempo para ser percebido e entrar na agenda dos políticos apenas por conta da crise.
Brasil adentro o Carnaval movimenta hotéis, empresas de eventos, grupos musicais, viagens, aeroportos e os setores de bebidas e alimentação. Até para quem não gosta da festa, a folga do trabalho e nas escolas nesse período movimenta um mercado garantido de pousadas, viagens para o exterior e até de retiros religiosos. A AMBEV, maior indústria de bebidas do Brasil sabe disso. Este ano custeou integralmente o carnaval de rua de São Paulo desembolsando R$ 15 milhões.
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