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História

O caso Roe vs Wade e como a juíza Amy Barrett pode mudar os rumos do aborto nos EUA

Amy Coney Barrett
Amy Coney Barrett: esperança pró-vida na Suprema Corte americana (Foto: Olivier DOULIERY / AFP)

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Em 1969, a jovem texana Norma McCorvey, de 21 anos, solteira e desempregada, levou à Justiça do Texas um pedido de permissão para interromper a gravidez seu terceiro filho.

O aborto, nessa época, era majoritariamente proibido nos Estados Unidos: cabia a cada unidade federativa definir sua própria legislação a respeito - os estados de Nova York e da Califórnia, por exemplo, já adotavam medidas bastante progressistas no assunto. No caso do Texas, o direito ao aborto era restrito a casos de risco de saúde para a mãe. McCorvey chegou a procurar uma clínica clandestina e a encontrou fechada pela polícia.

A conselho de uma amiga, a jovem alegou à promotoria do Texas que a gravidez era fruto de um estupro, informação que viria a ser desmentida pela própria Norman em 1987. Apadrinhada pelas advogadas recém-formadas, Linda Coffee e Sara Weddington, a gestante adotou o pseudônimo de Jane Roe. Coube ao fiscal de distrito do condado de Dallas, Henry Wade, a tarefa de defender a legislação vigente.

Nascia assim o caso Roe versus Wade, um dos mais polêmicos e emblemáticos da história americana, que marcou a completa descriminalização do aborto no país. O que começou como um caso local, circunscrito ao estado do Texas, pela primeira vez foi parar no Supremo Tribunal dos Estados Unidos e só terminou em 1973 - bem depois do nascimento da filha de McCorvey, posta para adoção.

Apesar de, em 1970, o Tribunal do Distrito de Dallas ter decidido em favor de Roe, a legislação sobre o aborto não foi alterada - de modo que sucessivas apelações a cortes superiores levaram o caso à mais alta instância, à época, formado pelos juízes Warren Burguer, William Douglas, Harry Blacmun, Lewis Powell Jr., William Rehquist, Willian Brennan, Potter Stewart, Thurgood Marshall e Byron White.

Segundo o juiz Harry Blackmun, responsável pelo relatório final da decisão, as leis contra o aborto violavam o "direito constitucional à privacidade, garantido sob a cláusula do devido processo legal da 'décima quarta emenda'" da Constituição. A decisão, ratificada por sete dos nove juízes, levou à modificação de todas as leis federais e estaduais que proscreviam ou restringiam o aborto.

Na prática, os juízes entenderam que o direito à privacidade permitia à mulher decidir prosseguir ou não sua gestação; de modo que qualquer interferência do Estado nessa escolha seria inconstitucional.

Com as lentes de 2020, é difícil acreditar no resultado da votação: dos sete juízes a favor de Roe, apenas William Douglas, fora nomeado por um presidente democrata (Franklin Roosevelt), contra seis provenientes de governos republicanos (Eisenhower e Nixon). Do outro lado da trincheira, um par de democratas nomeados por Johnson e Kennedy.

Foi, de fato, só depois de Roe vs Wade que a defesa dos nascituros se transformou no cabo-de-guerra ideológico que sobrevive já há quase cinco décadas, com republicanos aliando-se a grupos católicos e evangélicos em nome da causa pró-vida e democratas do lado de instituições defensoras do aborto, autoproclamadas “pró-escolha”, como a Planned Parenthood.

Desde sua primeira resolução, o caso Roe vs Wade foi revisto diversas vezes, em diferentes circunstâncias. Novos casos envolvendo outras nuances do debate sobre o aborto entraram em cena, sempre remetendo à icônica decisão da Corte em 1973.

O republicano Ronald Reagan foi o primeiro a declarar sua intenção de reverter o resultado do caso. Durante seu governo, o caso Webster versus Reproductive Health Services levou a uma vitória do movimento pró-vida: o “protagonista” do caso, o estado do Missouri, obteve o direito de proibir que abortos fossem financiados com dinheiro público - tanto através de hospitais quanto de funcionários.

Abriu-se, assim, um precedente para que os estados tivessem alguma autonomia frente à “padronização” promovida por Roe vs. Wade. Para compreender a natureza deste resultado, é preciso levar em conta que a Suprema Corte de 1989 já não era a mesma de 1973: através de Reagan, entrou em cena a figura de Antonin Scalia, um dos juízes conservadores mais proeminentes da história recente.

Marcaria presença também a juíza Sandra O’Connor que, apesar de não se posicionar contra a jurisprudência estabelecida 16 anos antes, corroborou com a decisão do caso Webster.

Uma semana antes de deixar a Casa Branca, Reagan declarou, por fim, que a decisão de Roe versus Wade haveria de ser revista, e que embora “seus críticos se dissessem pró-escolha”, ele havia chegado à conclusão de que “os nascituros nunca tiveram escolha”.

Em 1992, Roe voltou à baila em meio às discussões do caso Planned Parenthood versus Casey, no qual a organização defensora do aborto contestou cinco cláusulas da Lei de Controle do Aborto da Pensilvânia, ainda em 1982. Entre as disposições estavam requisitos para um período de espera, notificação do cônjuge e (para menores de idade) consentimento dos pais antes de se submeter ao procedimento de aborto.

Em uma opinião plural escrita em conjunto pela própria O'Connor e pelos juízes Anthony Kennedy e David Souter (nomeados por Reagan e George Bush), a Suprema Corte manteve a decisão “fundamental” de 1973, mas derrubaram o limite do terceiro trimestre em favor de uma análise da viabilidade do feto sobreviver fora do útero, permitindo assim que os estados implementassem as restrições ao aborto durante as primeiras 12 semanas da gravidez.

Contudo, a Corte também determinou que restrições ao aborto seriam inconstitucionais quando fossem promulgadas com "o propósito ou efeito de colocar um obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca o aborto de um feto inviável” - como, por exemplo, a exigência da notificação do cônjuge, que foi invalidada. Ao final do placar, quatro juízes escreveram opiniões argumentando que Roe v. Wade deveria ter sido derrubado

O ano seguinte à decisão do Planned Parenthood vs Casey marcou a chegada de Ruth Bader Ginsburg à Suprema Corte, nomeada pelo democrata Bill Clinton. Entre 2006 e 2010, seria a vez de Sonia Sotomayor e Elena Kegan, indicadas por Barack Obama, chegarem ao Tribunal.

O voto destas três mulheres foi decisivo na resolução do caso Whole Woman’s Health versus Hellerstedt, no qual o Tribunal decidiu, por cinco votos contra três (com uma divergência), que o estado do Texas (e, portanto, outras unidades federativas) não poderiam impor restrições à prestação de serviços de aborto que causassem um “carga desnecessária” para as mulheres que o procuram.

Isso aconteceu porque, em 2013, o Texas de Norma McCorvey (que, a essa altura, já havia se convertido ao cristianismo e se tornara uma ativista pró-vida) aprovou uma lei exigindo que as clínicas de aborto atendessem aos mesmos padrões dos centros cirúrgicos ambulatoriais, o que levou a uma drástica redução no número de clínicas que ofereciam o serviço.

A organização Whole Woman's Health, entretanto, considerou esses requisitos desnecessários, e alegou que se tratava de uma tentativa de “limitar o acesso ao aborto”, em vez de fornecer segurança às mulheres.

Quase cinquenta anos depois do fim, Roe versus Wade sempre volta às manchetes: marcou presença, por exemplo, no último debate de Trump e Hillary em 2018; no qual o republicano, outrora “pró-escolha”, encampou o discurso pró-vida.

As sucessivas batalhas na Corte, contudo, mostram que grandes declarações não são suficientes para mudar os ventos: no caso de Roe, são necessários pelo menos cinco juízes. A nomeação dos conservadores Neil Gorsuch, em 2017, e Brett Kavanaugh, em 2018, foi o primeiro passo.

Agora, o xadrez da Suprema Corte vive a expectativa de quem será a peça a substituir Ruth Baden Ginsburg, figura fulcral na manutenção de Roe vs Wade e cuja vaga está nas mãos do Senado americano, desde que Trump fez sua aposta.

A juíza católica

Católica praticante, mãe de sete filhos e pupila do conservador Scalia, Amy Coney Barrett, do Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Sétimo Circuito, em Chicago, está sob os holofotes do mundo desde a nomeação para a Suprema Corte. E, mais uma vez, Roe volta ao debate.

O temor das ONGs e movimentos a favor do aborto, é claro, é que Barrett trabalhe ativamente para reverter o resultado histórico. O presidente Donald Trump já afirmou à imprensa que não discutiu o caso com a juíza que, embora já tenha deixado clara sua crença na vida após a concepção, poucas vezes falou abertamente sobre o caso.

No dia 1º de outubro, reportagem do jornal The Guardian revelou que Barrett, que é formada pela Universidade de Notre Dame, no estado do Indiana, e o marido, também advogado, assinaram uma carta aberta em 2006 classificando Roe vs Wade como um “exercício bruto do poder judicial” e defendendo sua anulação.

À reportagem do jornal, a Casa Branca respondeu: “Como disse a juíza Barrett no dia em que foi nomeada, ‘Um juiz deve aplicar a lei conforme está escrita. Os juízes não são formuladores de políticas e devem ser resolutos em deixar de lado quaisquer opiniões políticas que possam ter'”. Na mesma ocasião, ela chamou a atenção para o fato de que, para a Igreja Católica, o aborto sempre será um ato imoral.

Some-se a isto o fato de, em 2013, Amy ter afirmado durante uma palestra na Universidade de Notre Dame, em um evento relativo ao 40° aniversário da decisão de Roe v. Wade, que acreditava ser “muito improvável, neste ponto, que o tribunal vá anular [a decisão]. O elemento fundamental, que a mulher tem o direito de escolher o aborto, provavelmente permanecerá”.

Em sua mais recente manifestação pública sobre o caso, em 2016, a Barrett reforçou que é muito difícil que o caso seja completamente revertido, mesmo diante de uma maioria conservadora, mas acredita que os estados devem ter o poder de decidir sobre a questão.

Ao que tudo indica, a juíza ratifica sempre que possível sua postura “originalista” de observar e respeitar a Constituição e a jurisprudência da Corte, ainda que seja, sim, a favor de que os cidadãos de cada unidade federativa possam deliberar acerca das condições em que o aborto é permitido”.

“Eu não acho que o aborto ou o direito ao aborto mudaria [com uma maioria conservadora no tribunal]. Acho que algumas das restrições mudariam… A questão é quanta liberdade o tribunal está disposto a dar aos estados na regulamentação do aborto”, afirmou a juíza.

A três anos do cinquentenário do Roe versus Wade, o voto de Minerva que pode definir a legislação sobre o aborto nos Estados Unidos está nas mãos de uma mulher católica e conservadora que, contudo, sabe muito bem o que significa ser juiz em uma sociedade progressista.

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