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Sempre há aquele que levanta a mão e faz a seguinte pergunta: mas o que é conservadorismo? Essa pergunta requer uma resposta que simplesmente não existe ‒ pelo menos não na perfeição e completude que é esperada pelo público. Não que o conservadorismo seja uma doutrina metafísica dificílima ou que requeira algum grau de iluminação escatológica para ser compreendido corretamente. Lendo tudo que já li, investigando tudo que eu já investiguei, o conservadorismo me parece ser uma ideia volátil e diplomática, autoadaptativa e verdadeiramente sagaz na arte da aclimação política; ao mesmo tempo, e talvez ainda mais visível que a característica antes destacada, o conservadorismo mantém como regras inalienáveis certos calhamaços de princípios e valores. Ao mesmo tempo que desponta como um eremita guardião dos bons costumes, mantém-se próximo dos movimentos do tabuleiro político.
Assim sendo, sempre respondo a essa pergunta criando uma analogia com a família tradicional ocidental. Desde Adam Smith até Roger Scruton, o principal bunker do conservadorismo sempre foi o seio familiar.
Arrume seu quarto
Querem saber o que é ser um bom conservador(?), questionem-se como um bom pai ou uma boa mãe agiriam para resguardar, defender e educar a sua prole. Não à toa Churchill denominava, e Jonah Goldberg ainda denomina, o conservadorismo como sendo “coisa de adulto”. Como dizia Roger Scruton: “O mais importante impulso para o pensamento conservador é o desejo de sustentar as redes de familiaridade e confiança das quais a comunidade depende para sua longevidade”. E, para bem fazer essa lição imaginativa, concebam esses pais em tempos de bonança e em tempos de crise, medindo e contrabalanceando as suas ações em perspectivas concorrentes.
Parece-me que, nos primórdios, a sociedade ‒ enquanto comunidade ‒ não passava de uma ou duas famílias expandidas, e, como tal, faz sentido que a sociedade tenha sua principal fonte ética nas fontes éticas dos lares. Para lá do paradoxo do “o ovo ou a galinha”, aqui não me parece ser difícil conceber a primazia da família ante a praça. Querem saber como deve agir um bom homem na cidade, questionem-se como deve agir um bom homem em sua casa.
Caso apostem em minha analogia, logo perceberão que o conservadorismo está sempre no meio caminho entre o chão e o céu. Da mesma forma que o conservador defende moralidades e condutas que transpassam o tempo, ele também equaciona a realidade crua que o circunda. Ele não está preso a idealismos, mas também não sobrevive de um pragmatismo amoral.
O conservador segura, em uma mão, a realidade tal como se apresenta e, na outra, a realidade tal como ela deveria ser, e através desses pesos julga qual o melhor caminho a se buscar.
E aqui está o dilema do conservadorismo brasileiro atual: há uma real divisão de conservadores e liberais no país hoje, em ambas as matrizes existem os puritanos, aqueles que morrem abraçando seus travesseiros de ideias, e, no outro canto, há os pretensos homens práticos, aqueles que em nome de um personagem político ou grupo são capazes de trair os seus valores e fazer da política um novo “vale-tudo por poder”. Os puristas e os fiéis, os dois extremos.
Valores na prática
Ao comentar esse problema, Roger Scruton, em seu livro Conservadorismo: um convite à grande tradição, discorre sobre a defesa da liberdade nos seguintes termos: “O conservadorismo defende a liberdade, sim. Mas também as instituições e atitudes que moldam o cidadão responsável e asseguram que essa liberdade seja benéfica a todos. O conservadorismo também defende, portanto, limites à liberdade”. Em suma, Scruton diz que defender a liberdade, sem possibilitar politicamente essa mesma liberdade, é o mesmo que comer um churrasco feito de imaginação. A liberdade não é uma pré-condição da sociedade, mas uma consequência de uma sociedade constituída.
O conservadorismo requer pragmaticidade. Requer temperança, princípios e abnegação, é verdade, mas também exige ação. Um conservador britânico da década de 1980, por exemplo, não poderia ser chamado de sensato se preferisse James Callaghan a Margaret Thatcher somente porque a moça de Grantham não falava de forma adequada, não defendia exatamente o valores que seu cânone definia ser o adequado a uma “verdadeira conservadora”, ou porque ela não respeitava alguma ética milenar de algum grupo ultraeducado do século XII.
No entanto, a recíproca é verdadeira. Em muitos casos, um conservador que se faz meramente pragmático não passa de um indivíduo de convicções rasas e caráter duvidoso, alguém que pode estar sempre a um passo de trair ou adequar as suas verdades em nome de governanças ou apreços pessoais. Quando o pragmatismo político pede a sua alma e a sua honra, não me parece sensato se prestar ao papel de meretriz de ocasião, pupilo de poderosos, bajulador de reis. Estender sua vida para viver numa escravidão de hipocrisias não é um modo digno de existir. O martírio, muitas vezes, é o último respiro da liberdade de um indivíduo, e, nessas condições, é melhor morrer rodeado de retos princípios do que viver soterrado em um lamaçal de vergonhas.
O caminho para o conservador é ser pragmático, mas com limites, é defender suas ideias com fervor, mas manter-se atento ao chão que pisa. Ora, defender a castidade indo rotineiramente ao bordel não é virtude; assim como “cortar caminho” na viagem democrática de um país não pode ser algo aceito.
“Como uma sociedade que louva as virtudes da liberdade, da individualidade, da variedade e da tolerância se sustenta quando tais virtudes, levadas ao extremo, ameaçam subverter aquela mesma sociedade liberal e, com isso, as próprias virtudes”? Essa frase da historiadora americana Gertrude Himmelfarb me soa elementar para os dias atuais. Muitos brasileiros que se consideram liberais e conservadores estão prontos para avançarem e derrubarem as regras democráticas, substituírem e até minarem as instituições democráticas, tudo isso para fazer a sua visão de mundo prosperar. Não existem mais limites, o que importa é tão somente que seu grupo ou presidente prospere. Tudo, no fim, parece ser uma disputa de egos, e não uma união nacional em prol das instituições da liberdade.
O milagre da democracia liberal, que ocorreu no final do século XVII na Inglaterra, não só criou instituições políticas sólidas que baniram das estantes das possibilidades rotineiras as interferências despóticas dos absolutistas, como também instituiu uma resiliência psicológica na população, fazendo os indivíduos entenderem que a regra do jogo é muito importante no contexto da liberdade social. Os ingleses entenderam que pular as etapas ou sacrificar as instituições em nome de ideologias seria o mesmo que derrubar todo o projeto de liberdade construído pela civilização ocidental; é o que deveríamos entender também.
Os valores conservadores, assim, devem fazer sentido unidos às instituições sociais que possibilitam a sua praticidade real; assim como o pragmatismo deve ser uma estratégia de uso, e não uma forma de vida. O pragmatismo pode te fazer votar no PSDB por falta de opção, e não como convicção de crenças no socialismo Fabiano. O voto se dá pois, do outro lado, jaz um mal maior. É para isso que o pragmatismo político serve, escolher o melhor possível, sabendo que o melhor ideal nem sempre ‒ ou quase nunca ‒ é possível.
O encantamento do ideal
No fundo, o que existe é um belo encantamento, a impressão de que “o meu modelo de conservadorismo” é mais conservador, mais puro, mais real, mais praticável que os dos outros. E essa medição de força é quase sempre inútil, os elfos das ideias e os anões do “pé sujo” se esquecem de que o seu inimigo é comum, e está em Mordor e não na casa do outro conservador. Para esses gladiadores do conservadorismo brasileiro, é mais gostoso manter uma discussão de ideias do que viabilizar suas ideias discutindo como adultos preocupados com o futuro de seu país. Como dizia Burke em um de seus escritos satíricos esquecidos, Defesa da Sociedade Natural: "E muito frequentemente acontece que essas agradáveis impressões da imaginação subsistem e produzem os efeitos, mesmo depois de o entendimento ter dado conta da sua natureza imaginária. Existe uma espécie de brilho nas falsidades engenhosas que deslumbra a imaginação, mas que não pertence nem se torna na aparência sóbria da verdade."
Como o bom e velho trabalhador braçal, estamos numa situação em que é preciso comer em pé. Trabalhar ao mesmo tempo que se discutem ideias; hoje, em terras tupiniquins, precisa-se de conservadores ativos, aqueles que estão lidando com o fato e com as hipóteses simultaneamente. O eremita tem que sair da sua cavernosa situação intelectual, assim como o pragmático tem que parar um pouco para refletir os seus valores. Caso isso não ocorra, caso o conservadorismo não equilibre sua balança de funções e ajuste as suas prioridades políticas, o homem comum deve estar ciente de que o progressismo já está aquecido para voltar ao jogo.
Quando o que está em jogo são as ideias e a realidade, creio que a atitude de um conservador deva ser agir pragmaticamente para defender seus valores ameaçados; ora, novamente me parece ser sempre mais adequado as parcas migalhas que, bem usadas, podem se tornar um grande bolo, do que um banquete de idealismos cuja soma sempre será mais ideologias vazias, irreais.
O conservadorismo, afinal, não é nem idealístico e nem pura praticidade, ele é o conservadorismo que precisa ser, considerando o que é certo e o que dá para fazer no momento. Quando o que se tem para o almoço é apenas nabo, dormir sonhando com uma picanha é burrice; no entanto, comer nabo para o resto da vida sem lutar pela picanha é conformismo. A ponderação e a maturidade para comer nabo hoje, em prol da picanha que virá, deve ser a receita para o conservador moderno. “No modelo de Edmund Burke, o estadista conservador é aquele que combina a disposição para preservar com a habilidade para reformar”.
Um conservador idealista é um romântico tolo, que morrerá
discutindo consigo mesmo enquanto escuta música clássica, porque alguém lhe
disse, algum dia, que escutar música clássica é chique; o puramente pragmático,
por sua via, é um eterno autoritário enrustido, alguém sempre pronto para
apontar o revólver para quem desponte como oposição, a fim de implementar suas
crenças a todo custo. Ser conservador, por sua via, é ter o poder de equilibrar
essas duas facetas da existência, a realidade tal como é e a realidade tal como
deve ser.