Um novo turbilhão surgiu no ciclo de disputa ideológica das redes sociais: a contenda, agora, gira em torno de se o consumo de carne estimula a masculinidade “tóxica” ou “hegemônica”. A tempestade foi deflagrada pela disseminação de um artigo acadêmico sobre vegetarianismo na Argentina, publicado por uma pesquisadora dos Estados Unidos, e que vem sendo interpretado, por críticos de direita, como uma defesa da ideia de que quem come carne é cúmplice da opressão das mulheres. O que o estudo diz, no entanto, não é bem isso.
O artigo, de autoria de Anne DeLessio-Parson, da Universidade Estadual de Pensilvânia, foi publicado em Gender, Place & Culture, que se apresenta como “um periódico de geografia feminista”. O título do trabalho é “Doing vegetarianism to destabilize the meat-masculinity nexus in La Plata, Argentina” (“Fazendo vegetarianismo para desestabilizar o nexo carne-masculinidade em La Plata, Argentina”), e se baseia em entrevistas com 23 vegetarianos argentinos.
O site conservador Campus Reform divulgou o estudo, e uma entrevista com a autora, com o título “Eating meat perpetuates ‘hegemonic masculinity,’ prof says”(“Comer carne perpetua a ‘masculinidade hegemônica’, diz professora”). A Fox News veio logo atrás, com o título mais provocativo “Eating meat promotes toxic masculinity, academic journal says” (“Comer carne promove masculinidade tóxica, diz publicação acadêmica”). No entanto, nem em sua entrevista ao Campus Reform, nem no resumo inicial de seu artigo, DeLessio-Parson se refere à masculinidade “tóxica”.
Os conceitos de “masculinidade tóxica” e “masculinidade hegemônica”, embora interligados, não referem à mesma coisa. “Masculinidade tóxica” é o nome dado ao conjunto de características negativas associadas a estereótipos de “ser homem”, como “homem não chora”, “honra se lava com sangue”, etc. Já “masculinidade hegemônica” diz respeito principalmente ao conjunto de valores que define, numa determinada sociedade, o que é ser um “homem de verdade”, um “homem que é homem”. A masculinidade hegemônica pode incluir, ou não, características da masculinidade tóxica.
O trabalho de DeLessio-Parson que tanta comoção causou tem, na verdade, um escopo bem limitado: ela propõe que, dado o contexto cultural argentino e, de forma mais específica, o da cidade de La Plata – onde o kit “homem que é homem” inclui gostar de carne e mostrar talento na churrasqueira – a simples decisão de tornar-se vegetariano põe as pessoas, tanto homens como mulheres, em rota de colisão com a “masculinidade hegemônica” local. O que soa plausível, ainda que sua base empírica, de menos de duas dúzias de entrevistas, não seja das mais sólidas.
A autora deixa essa dependência entre suas conclusões e o contexto local bem clara, logo na primeira linha do artigo: “em sociedades patriarcais onde a masculinidade hegemônica implica um imperativo de comer carne, o vegetarianismo desestrutura a cultura alimentar”. Ou seja, em sociedades onde essa implicação não existe, o resultado não se aplica.
Carne e machismo
A ideia de que existiria uma ligação intrínseca entre consumo de carne e machismo é articulada de modo mais amplo no livro “The Sexual Politics of Meat” (“A Política Sexual da Carne”), de Carol J. Adams, publicado originalmente em 1990, citado diversas vezes por DeLessio-Parson em sua tese de doutorado e considerado um clássico em muitos círculos veganos/vegetarianos e feministas. Nele, Adams propõe que o mesmo clima cultural que permite que animais sejam tratados como mercadorias ou objetos facilita a objetificação e a opressão das mulheres.
“Os significados ligados ao consumo de carne incluem significados que se aglomeram em torno da virilidade”, escreve ela, na introdução à edição comemorativa de dez anos de sua obra, onde cita, a título de exemplo, o chiste de que “’homens de verdade’ não comem quiche”.
“O que ‘A Política Sexual da Carne’ argumenta é que o modo como a política de gênero se estrutura, em nosso mundo, está relacionada a como vemos animais, especialmente os animais que são consumidos”, prossegue. O resultado seria de que feminismo e vegetarianismo estão necessariamente ligados: as condições que viabilizam a opressão feminina e o consumo de carne seriam as mesmas, logo combater um é combater o outro.
As ideias de Adams não tiveram aceitação unânime dentro do movimento feminista, no entanto. Algumas autoras criticaram a comparação retórica que o livro faz entre estupro e o ato de comer um bife. A bioeticista Kathryn Paxton George, primeiro num artigo publicado em 1994, “Should Feminists Be Vegetarians?” (“Feministas Devem Ser Vegetarianas?”) e depois no livro “Animal, Vegetable, or Woman?” (“Animal, Vegetal, ou Mulher?”), de 2000, aponta o que vê como incompatibilidades entre o vegetarianismo ético – a proposição de que deixar de consumir carne ou outros produtos de origem animal é uma obrigação ética – e a defesa dos direitos da mulher.
Um de seus argumentos é o de que preservar a saúde numa dieta vegetariana é, do ponto de vista fisiológico, mais fácil para homens do que para mulheres. O vegetarianismo ético não levaria, assim, em conta as necessidades nutricionais de mulheres e crianças, principalmente de mulheres e crianças que vivem em comunidades sem acesso a produtos alimentícios industrializados. Sob esse ponto de vista, a exigência de abstenção de carne seria não só machista, como também elitista.
Ciência
O debate sobre a relação entre machismo e consumo de carne é mais filosófico que científico, mas a hipótese de que haveria uma ligação fisiológica entre dietas contendo carne e comportamentos que poderiam ser classificados como dentro do espectro da masculinidade tóxica – como agressividade, por exemplo – já foi testada cientificamente, e descartada.
O livro “Understanding and Preventing Violence”(“Compreendendo e Evitando Violência”), publicado em 1994 pela Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, tem um capítulo sobre nutrição onde são citados, de passagem, os mitos que associam o consumo da carne de animais à agressividade. A opinião, defendida por reformadores sociais do século 19, de que a carne leva à “excitação das paixões animais” é apresentada como mera curiosidade histórica, desprovida de credibilidade.
Curiosamente, o livro cita alguns estudos do início dos anos 90 que apontavam uma ligação entre colesterol baixo e comportamento violento. A falta de vitamina B12, um problema a que vegetarianos são especialmente vulneráveis, está associada a irritabilidade e agressividade.
Em tempos mais recentes, dois estudos chegaram a resultados aparentemente contraditórios sobre o efeito do vegetarianismo sobre o estado mental dos membros do sexo masculino. Um, de 2012, publicado no Nutrition Journal, conclui que a restrição do consumo de carne vermelha, aves e peixes “melhora a disposição” dos homens; outro, que saiu neste ano no Journal of Affective Disorders, vinculou uma dieta vegetariana a um aumento nos sintomas de depressão, especificamente em homens.
O problema com trabalhos como esses é que eles são muito vulneráveis aos chamados fatores de confusão – eventos externos ao escopo do estudo que podem influenciar o resultado. A pesquisa que vinculou vegetarianismo à boa disposição acompanhou os voluntários por apenas poucas semanas e não controlou, por exemplo, suas variações de peso: se eles emagreceram, a sensação de bem-estar pode ter vindo da melhora da forma física, não da eliminação da proteína animal da dieta.
Já o estudo que ligou dieta vegetariana à depressão foi baseado na autodeclaração de dieta feita por homens que participaram de um grande estudo sobre saúde familiar. Os autores admitem que problemas nutricionais – causados por dietas vegetarianas mal equilibradas, e não pelo vegetarianismo em si – ou fatores externos poderiam causar os mesmos resultados. Também não descartaram a possibilidade de haver causação inversa: homens mais deprimidos optarem, por algum motivo, em se tornar vegetarianos com maior frequência do que os onívoros.