O coronavírus desperta a alegria maquiavélica de quem enxerga no frenesi que acompanha a doença a oportunidade de fazer prevalecer sua visão política.| Foto: Toronto Film Festival/ Divulgação
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A maioria da população está preocupada com o coronavírus. Quem é autônomo teme não ter renda e quem está empregado teme a demissão. Quem tem mais de 60 anos teme o fato de estar no grupo de risco e quem tem menos teme pelos pais e avós. E quem tenta manter o otimismo e alguma fé diante da avalanche de notícias ruins teme acabar soterrado pelo pessimismo e fatalismo.

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Mas há sempre quem se regozije com o sofrimento humano. Não me refiro, aqui, aos espertos que vendem lenços enquanto os outros choram ou aos estelionatários que oferecem soro de imunidade ou coisas do gênero. Nem tampouco à contraditória “alegria estoica” de quem sabe que a pandemia do coronavírus um dia vai passar e também que não há o que fazer diante do pânico que se instalou no mundo – a não ser lavar as mãos, claro.

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Estou me referindo à alegria maquiavélica de quem enxerga no frenesi que acompanha a doença a oportunidade de fazer prevalecer sua visão política de mundo.

“Não toque em livros”

Me deparei pela primeira vez com essa estranha felicidade diante da morte em massa de pessoas num artigo do filósofo Slavoj Žižek publicado no site da editora Boitempo. Logo no começo do texto, o sempre contraditório Žižek fala dos males dos “vírus ideológicos” para em seguida dizer que “é possível que outro vírus ideológico, este muito mais benigno, também deva se alastrar e, com sorte, infectar a todos nós: o vírus de começarmos a pensar em possibilidades alternativas de sociedade, possibilidades para além do Estado-nação, e que se atualizam nas formas de cooperação e solidariedade globais”.

Ou seja, Žižek está feliz com a pandemia de coronavírus porque, para ele, a doença e a crise e pânico que a acompanham são uma chance de ouro de ele ver renascer e triunfar o combalido comunismo. Na argumentação do empolgado Žižek há espaço para tudo, desde curiosos conselhos de higiene como “não toque em livros” até a sádica observação de que os cruzeiros, ícones do estilo de vida capitalista e para ele uma “obscenidade”, foram um dos primeiros alvos do coronavírus.

Žižek, porém, é de um cinismo sem igual, e por isso salienta que “o ponto não é se aproveitar sadicamente do sofrimento generalizado contanto que ele contribua com nossa causa”, para em seguida propor não “o comunismo à moda antiga, é claro, mas algum tipo de organização global capaz de controlar e regular a economia, bem como limitar a soberania de Estados-nação quando assim for necessário”.

Ou seja, o comunismo à moda antiga.

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Mas, no texto, Žižek dobra a aposta na combinação de cinismo, mentira e aquela ignorância cheia de sentimentalismo hipócrita característica dos maiores expoentes do marxismo 2.0 para, primeiro, propor não só tratamento de saúde “gratuito” para os norte-americanos, como promete o senador Bernie Sanders, não por acaso ídolo de Žižek. Ele sugere que se monte “algum tipo de rede global de atendimento de saúde”.

Depois, no delírio de quem sofre de uma intensa febre maoísta com pequenas pintinhas de stalinismo espalhadas pelo corpo, Žižek argumenta que a única forma de defender a liberdade é... abdicar da liberdade. Isto é, se render à disciplina do Estado que, para ele, na China comunista mostrou-se eficaz em impor medidas de contenção do coronavírus.

No futuro sonhado pelo alegre Žižek, o marxismo ressurge travestido de solidariedade e individualismo e totalitarismo convivem pacificamente. Numa passagem que é pura utopia perversa, ele prevê que “não é apenas o Estado e outras instâncias que nos controlarão: devemos aprender a controlar e disciplinar a nós mesmos”.

Falácias e oportunismo

Mas nem só de Žižek vive o neomarxismo. Ele se manifesta também no pensamento perigosamente simplório do homem comum, aquele que não dispõe de PhD nem jamais abriu um livro na vida (e não por questões de higiene, como propõe Žižek), mas que hoje tem à sua disposição uma das armas mais nocivas para propagação dessa doença que debilita o intelecto e o espírito: as redes sociais.

Já escrevi sobre o fetiche da peste – a ideia de que uma pandemia como a do coronavírus surgiu para purificar a Humanidade, eliminando os maus e recompensando os bons. É um fetiche ambíguo, que afeta tanto os que o rejeitam quanto os que nele chafurdam para dar vazão a um impulso que só posso classificar como eugenista. Isto é, um impulso que tem por base a ideia de que a Humanidade pode ser melhorada com a eliminação dos indesejáveis.

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E os indesejáveis, para essa gente que acredita no planejamento social, passam necessariamente pelas pessoas que defendem a liberdade individual e econômica, aquelas que conseguiram reduzir a miséria no mundo ao longo de todo o século XX com base na premissa de que as interações humanas ao acaso e motivadas pela autossatisfação são benéficas tanto para indivíduos quanto para a sociedade como um todo.

Duas postagens chamam a atenção porque revelam toda a mesquinhez daqueles que se deixam levar pelo mito purificador da pandemia. A primeira, do antropólogo Edgard Piccino, diz que o coronavírus está ensinando algumas lições para a Humanidade. A saber: “Estado mínimo não funciona; iniciativa privada não atende o interesse coletivo; no capitalismo o lucro está acima da vida; a solidariedade é a base do bem estar comum; e não devemos eleger dementes”. A publicação teve um Maracanã de interações, o que só prova que a ignorância é tão ou mais nociva do que um vírus da covid-19.

Descontando a validade do último item (que, apesar do disfarce de isenção, é tão-somente uma crítica política que tem como horizonte as próximas eleições), todas as críticas de Piccino passam pela assombrosa ideia de que precisamos de um grande timoneiro a guiar nossa nau por entre as tempestades próprias da história.

Outra vertente desse triste culto que celebra o fetiche da peste é a ambiental, para a qual o coronavírus é uma bênção maior do que qualquer New Deal Verde que uma Ocasio-Cortez qualquer é capaz de propor. São várias as publicações que celebram a diminuição da poluição mundial causada pela redução da atividade econômica no mundo todo. O fato de as pessoas morrerem e empobrecerem, o que no médio e longo prazo só gerará ainda mais poluição, não importa. O que importa é ceder à falácia da Mãe Terra.

“Os cidadãos de Wuhan podem finalmente ouvir os pássaros cantando depois de anos, os canais de Veneza estão limpos e cheios de peixe e dá para ver os montes Tatra a partir de Cracóvia porque a fumaça desapareceu. Isso não é um apocalipse. É um despertar”, escreve uma pessoa que diz estar “curando a si mesma e aos outros por meio da arte”.

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Até Gabriela Pugliesi, famosa e influente por algum motivo que desconheço e que está com covid-19, romantizou o vírus, anunciando-o como o arauto de uma nova era, mais pura e igualitária. Escreveu a moça:

“Algo invisível chegou e colocou tudo no lugar. De repente os combustíveis baixaram, a poluição baixou, as pessoas passaram a ter tempo, tanto tempo, que nem sabem o que fazer com ele. Os pais estão com os filhos, em família. O trabalho deixou de ser prioritário, as viagens e o lazer também. De repente silenciosamente, voltamo-nos para dentro de nós, para entendermos o valor da palavra solidariedade”.

Hino comunista

Isso sem falar nos artistas multimilionários que, do conforto da quarentena regada a espumante em suas mansões, gravaram um jogral com a fatídica Imagine, de John Lennon – esse mal disfarçado hino em homenagem à utopia comunista.

A mesma utopia que, imposta na vida de 1,3 bilhão de chineses, e por meio de seu aparato repressor, deu origem a este pandemônio viral, sem contar Holodomor, gulags e outras aberrações cometidas em nome da solidariedade e da melhoria da espécie de humana.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]