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Presente nos Jogos Olímpicos desde o século XIX, com origens que remontam às competições da Antiguidade, o decatlo - prova de atletismo que combina a corrida de 100 metros rasos, salto em distância, arremesso de peso, salto em altura, 400 metros rasos, 110 metros com barreiras, lançamento de disco, salto com vara, lançamento de dardo e 1500 metros - confere aos seus campeões o título de “super-homem” das Olimpíadas. A prova, considerada uma das mais exigentes dos jogos, é disputada apenas por atletas do sexo masculino: o equivalente feminino, o heptatlo, possui três etapas a menos.
Não à toa, o topo do pódio dos Jogos de Montreal, em 1976, foi dado a um atleta que, na infância, fora o menino mais rápido do colégio, e chegou ao pódio no Canadá (depois de competir em Munique e vencer os Jogos Panamericanos do México) medindo nada nada menos do que 1,98 metro e pesando 88 quilos, com músculos perfeitamente definidos. 45 anos depois, a estrela em questão atende por Caitlyn Jenner; e está sendo “cancelada” pela militância progressista por assumir uma causa que cabe perfeitamente — para usar o jargão do momento - ao seu “lugar de fala”: não é justo permitir que homens biológicos participem de competições femininas.
O “cancelamento” aconteceu por conta de uma entrevista informal dada ao portal TMZ. No vídeo que circula pelas redes, o repórter aborda Caitlyn em um estacionamento e pergunta sua opinião sobre os projetos de lei que tramitam em diversos estados americanos para barrar a presença de “garotos biológicos que são trans” (nas próprias palavras do jornalista) em esportes femininos nas escolas - na contramão das pautas do presidente Joe Biden e do governador da Califórnia Gavin Newsom, adversário de Jenner na corrida eleitoral pelo cargo.
“É uma questão de justiça. É por isso que me oponho à presença de meninos biológicos que são trans nos esportes escolares femininos. Simplesmente não é justo. E nós temos que proteger os esportes femininos”, disse a ex-atleta que, horas depois, reforçou sua posição via Twitter: "Não esperava que me perguntassem isso no café da manhã de sábado, mas estou certa da minha defesa. É uma questão de justiça e precisamos proteger os esportes femininos em nossas escolas".
A repercussão veio à galope. Dezenas de portais LGBT e veículos de imprensa reportaram a fala da ex-atleta, classificada como “transfóbica” e defensora da “redução dos direitos da população trans”. Houve até quem mentisse a respeito de Jenner, candidata ao governo da Califórnia pelo Partido Republicano, ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo - fato desmentido pela própria ex-atleta, também via Twitter.
Parte da contenda se dá porque Caitlyn Jenner sempre esteve alinhada ao Partido Republicano, ainda que tenha, inegavelmente, abraçado pautas progressistas e descrito à exaustão as dificuldades que enfrentou desde que a manifestação dos primeiros sintomas de disforia de gênero à aceitação da família de sua nova vida como Caitlyn. Vale lembrar que Bruce Jenner foi casado três vezes, com dois filhos de cada relação: primeiro com a empresária Chrystie Cronover, depois com a atriz Lynda Thompson e, por fim, com a influenciadora e empresária que lhe rendeu o último fôlego de fama antes da transição, Kris Kardashian, com quem teve as duas filhas caçulas (e super estrelas) Kyllie e Khloe Jenner (a escolha do nome Caitlyn foi para seguir a fonética do clã).
Conforme os rumores sobre a transexualidade de Bruce foram se confirmando, a mídia passou a abraçá-lo incondicionalmente. Em um extenso perfil publicado pela Vanity Fair pouco depois de sua última cirurgia de redesignação facial, Caitlyn contou que, desde o seu primeiro casamento, já gostava de se vestir como mulher, e que começou a cogitar a transição na década de 1980, quando removeu completamente a barba, começou a tomar hormônios e fez a primeira cirurgia no nariz, despertando as primeiras polêmicas. “Eu estava com medo de ser descoberto”, conta Jenner. “Eu não estava em um ponto da minha vida em que me sentisse confortável comigo mesma”.
O apoio efusivo da imprensa começou a desvanecer quando Jenner apoiou a eleição de Donald Trump em 2016, ainda que tenha retirado seu apoio depois de o ex-presidente revogar as regras federais que permitiam que pessoas transexuais utilizassem banheiros públicos do sexo com o qual se identificam, e não com o biológico. "Achei que Trump ajudaria as pessoas trans", escreveu Jenner em um artigo de opinião do Washington Post, em 2018. "Eu estava errada". Percebe-se, portanto, que Jenner tampouco está disposta a se enquadrar por completo no time dos conservadores. Um assessor de sua campanha pela Califórnia chegou a afirmar que ela está "concorrendo como uma pessoa socialmente progressista e fiscalmente conservadora" (em português, algo como “liberal na economia e nos costumes”).
É curioso que Caitlyn Jenner - que, inclusive, vive com a modelo transexual Sophia Hutchins, a quem se refere como "família", e não tem qualquer interesse em ver revogado o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou de militar contra a proteção à população trans - ainda seja tachada de transfóbica por uma causa que não é exclusiva de ativistas héterossexuais. Em 2016, em sua primeira entrevista após a transição, dada à apresentadora Ellen DeGeneres - um dos ícones LGBT mais importantes do mundo do entretenimento -, Jenner afirmou não “sentir falta de Bruce”.
“Sabe por quê? Porque como mulher eu posso continuar me divertindo. Posso jogar golfe, posso participar de corridas", disse a ex-atleta, que foi interpelada por DeGeneres. "Mas você joga no grupo feminino ou masculino? Você joga bem e não seria justo com as mulheres...". "Você não acha?”, respondeu Caitlyn. “Na verdade, eu continuo no grupo masculino".