Ficou marcado na história brasileira o discurso feito pelo ex-presidente Lula no sábado (7), horas antes de ele ser preso por corrupção. Tão controversa quanto seu próprio locutor, a narrativa do petista passou do saudosismo à defesa e, depois, ao ataque - gerando a comoção de alguns ouvintes e a irritação de tantos outros. Lula nunca foi consenso e isso não é novidade.
Alguns pontos de seu discurso, entretanto, foram, notadamente, mais conflitantes. Lula falou em convocar uma Constituinte, regular os meios de comunicação para que “o povo não seja vítima das mentiras todo santo dia” e instigou, de maneira velada, seus seguidores a “queimar pneus” como forma de protesto à sua prisão- algo que poderia ser visto como nada democrático, vindo de um líder que defende que está em curso no país um golpe contra a democracia. Leia aqui o discurso na íntegra.
Lula é o político mais popular do Brasil hoje - aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais deste ano. Seriam essas afirmações uma quedinha pelo autoritarismo de governos populistas? Ou a democracia sob uma ótica não liberal?
Para o advogado e professor da USP (Universidade de São Paulo) e do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), Daniel Falcão, o discurso de Lula beira ao radicalismo, “às vezes com lances de autoritarismo”, especialmente quando o ex-presidente “se sente acuado”. “Ele ameaça as instituições, critica as instituições, critica ministros do STF, politicamente, sempre beirando à defesa da quebra das instituições ou ameaçando rasgar a Constituição”, opina Falcão.
E não é somente o discurso do ex-presidente que “não tem nada de democrático”, segundo o advogado. Declarações de membros da esquerda, como a da senadora e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e do José Rainha Júnior, líder da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade, antes da prisão de Lula, deram a entender que eles estariam convocando a militância a uma luta armada para evitar o encarceramento do ex-presidente. “O PT é um partido que se diz democrático e tem elementos democráticos, tem membros democráticos, mas também tem seus membros autoritários. Se a democracia é contrária a eles, eles não gostam. Todos os partidos no Brasil tem seus paradoxos e um dos paradoxos do PT é esse”, argumentou.
Ao contrário do que pensa Falcão, o professor da Faculdade de Direito da UFPR (Universidades Federal do Paraná) Egon Bockmann não vê elementos antidemocráticos na fala de Lula. Ele pondera que pode ser que haja algumas partes do seu discurso que, eventualmente, contrariem alguma noção que o ouvinte tenha sobre democracia. “Acredito que faz parte da ideia de democracia a garantia da liberdade de expressão ainda que seja para o interlocutor dizer coisas que nos arrepie”, observou Bockmann, salientando que o discurso, apesar de alguns momentos ser agressivo, foi muito sutil nas passagens mais controversas, como quando, por exemplo, o ex-presidente menciona a regulação da mídia. “Poderia ser uma regulação ampla que estabeleça que tem que haver produção local de conteúdo. Isso poderia ser um abuso regulatório, mas não agride a ideia democrática”, exemplificou.
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A conclusão a que chega o cientista político Christian Edward Cyril Lynch é que, de um ponto de vista sociológico, a mensagem transmitida por Lula pode gerar diferentes reações, dependendo do filtro ideológico sob o qual a democracia é observada, já que liberais e socialistas têm concepções diversas sobre o que seja a democracia.
Lynch afirmou que para os socialistas, que tendem a enfatizar o elemento da igualdade em um Estado Democrático de Direito, a fala do ex-presidente Lula “é perfeitamente democrática”, mas para os liberais, ela “soa antidemocrática”, porque na concepção liberal de democracia prevalece o componente do Estado de Direito, que garante a liberdade contra os excessos do Estado.
Mas ao se trazer a discussão para o campo jurídico, Falcão é enfático ao afirmar que “num modelo de democracia liberal, que é o que está em vigência no Brasil desde 1988, o discurso de Lula é obviamente antidemocrático”. Os parâmetros jurídicos e políticos do Estado Democrático de Direito estão postos na Constituição Federal de 1988 e preveem o pluripartidarismo, a soberania popular, a ampla liberdade de expressão e de manifestação de pensamento e vedação à censura prévia. O que, segundo Falcão, está bem longe de um conceito socialista de democracia.
“Democracia e socialismo não combinam. O discurso dele [Lula] é bastante autoritário”, concluiu o professor de Direito, citando também que do outro lado do espectro político há nomes que possuem um discurso tão ou mais antidemocrático do que o do ex-presidente petista, como o do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL). “Ele elogiou um torturador, só isso já deveria servir [como exemplo de atitudes antidemocráticas], porque o princípio mais básico da Constituição de 88 é o princípio da dignidade humana”.
Quando Lula fala sobre a convocação de uma Constituinte
Não é a primeira vez que Lula defende a convocação de uma assembleia constituinte. Na verdade esta história já é antiga. Ainda em seu primeiro mandato, o ex-presidente levantou a possibilidade para a realização de reforma política. Mais recentemente, o PT afirmou que se Lula fosse eleito, lançaria mão do dispositivo para revisar toda a Constituição, o que, na opinião de Daniel Falcão, é um ato autoritário.
“A nossa Constituição prevê a possibilidade de fazer reformas, de alterá-la. Mas eles não querem usar deste mecanismo porque seria muito difícil aprovar uma emenda constitucional à maneira que eles gostariam. Uma Constituinte colocaria em risco todos os direitos fundamentais conquistados na Constituição de 1988 estariam sob risco”, afirmou ele.
O professor Egon Bockmann acredita que a convocação de uma constituinte não seria necessário no Brasil neste momento - e nem teria efeitos positivos. “Se transfere para a Constituinte uma responsabilidade que não é dela. A nossa Constituição é muito boa, o problema não está nela e sim em sua aplicação”, afirmou. Apesar de este ser o seu posicionamento, Bockmann defende que não é antidemocrático a convocação de uma constituinte.
Quando Lula fala sobre a regulação dos meios de comunicação
O ex-presidente atacou a imprensa, como de praxe, e afirmou que vai “fazer definitivamente uma regulação dos meios de comunicação para que o povo não seja vítima das mentiras todo santo dia”.
Lynch, que é professor de pensamento político brasileiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), explicou que, para a esquerda e os socialistas, os meios de comunicação estão concentrados em poucas mãos e não representam a vontade do povo e que, por isso, não existe uma grande imprensa socialista. “Então, é preciso para eles reduzir o poder do que eles chamam oligopólios ou monopólios midiáticos de forma a favorecer a ‘igualdade’ da difusão das notícias”.
Mas uma regulação da mídia que tenha esse objetivo de “democratização” seria uma tentativa de censura prévia àqueles que se posicionam contra os ideais daquele grupo, segundo Falcão. “Isso contraria a Constituição em vários artigos, como a liberdade de expressão, liberdade de informação, vedação à censura, e isso, sem dúvida, seria antidemocrático”, declarou, ao explicar que o trabalho do jornalista deve ser o mais livre possível - fundamento que derrubou a Lei de Imprensa, editada durante a ditadura militar, que exigia a conclusão de curso superior em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo para o exercício da profissão.
Além disso, a constante menção de Lula a grandes veículos de comunicação que teriam pressionado a opinião pública e as instituições da Justiça para sua prisão pode ter tido algum efeito sobre a violência que foi registrada contra jornalistas na cobertura do caso. “É possível que isso tenha ocorrido, mas o que não falta no Brasil são pessoas violentas e, naqueles dias, os ânimos estavam bastante exaltados”, disse Falcão. Segundo o registro da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), pelo menos 18 jornalistas e profissionais da imprensa foram agredidos por manifestantes na cobertura da prisão do petista neste fim de semana.
Quando Lula ataca as instituições
“Quero saber quantos dias eles vão pensar que estão me prendendo”, provocou Lula. A sua visão socialista de democracia pode ter feito com que o ex-presidente se sentisse à vontade para desafiar algumas das instituições que compõem o Estado de Direito, como as instituições judiciárias, que o condenaram por corrupção em primeira e segunda instância - e que também são pilares do funcionamento da democracia.
Segundo o professor Lynch, Lula acredita que o povo, detentor do poder soberano, está sendo violentado pelas instituições judiciárias que, em nome do Estado de Direito, estão servindo aos interesses das classes dominantes. Portanto, é possível entender que, na visão do petista, a democracia (tida por ele como a vontade do povo) “deverá prevalecer sobre o Estado de Direito instrumentalizado pelas oligarquias, fazendo-as ceder pela pressão no julgamento do Supremo Tribunal Federal”, apontou Lynch.
Bockmann lembrou que apesar de criticar o processo judicial que culminou na sua prisão, o ex-presidente Lula ainda depende da Justiça. De fato, durante o seu discurso, ele disse não ser contra a Lava Jato, afirmou que o Ministério Público é uma instituição muito forte e admitiu que acredita da Justiça. “Se eu não acreditasse na Justiça, eu não tinha feito um partido político. Eu tinha proposto uma revolução nesse país”.
No fim das contas, parecia um jogo de morde e assopra. Mas como lembrou o cientista político Lynch, “Lula, apesar das ameaças e bravatas que faz para melhorar sua posição na negociação, não é bolivariano, como é o ditador venezuelano Nicolás Maduro”. “No final, ele sempre transige. Todo mundo ficou com a respiração presa quando ele não se entregou no ato; mas agora está claro que foi uma satisfação que ele deu à militância e ao seu gosto por uma ‘política heroica’. Ele nunca teve o intuito de não se entregar; se tivesse, teria pedido asilo”.
“Lula é um camaleão”, concorda Falcão.
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