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Opinião

O engarrafamento no Everest e o vazio espiritual da abundância

O vazio da abundância explica o que ainda leva pessoas a arriscarem a vida para chegarem ao cume do Everest.
O vazio da abundância explica o que ainda leva pessoas a arriscarem a vida para chegarem ao cume do Everest. (Foto: Nirmal Purja/Project Possible/AFP)

Vivemos tempos de inegável abundância. Para boa parte da população mundial, consumir as duas ou três mil calorias diárias necessárias à sobrevivência nunca foi tão fácil e barato. Artigos que antes eram luxo de uns poucos reis ou magnatas, como uma simples privada, hoje estão onipresentes em todo o mundo civilizado. Viagens que levavam dias ou meses hoje são uma questão de horas. Transmitir ideias, como este texto, é tão fácil, rápido e barato que a opinião há muito deixou de ser commodity.

E escalar a maior montanha do mundo, o Everest, antes um feito para heróis como Sir Edmund Hillary, hoje é feito por qualquer pessoa com um mínimo de preparo físico e um punhado de dólares para gastar.

A foto de um congestionamento de alpinistas perto do cume do Everest rodou o mundo nesta semana. Dezenas ou até centenas de alpinistas enfileiradinhos, esperando sua vez de conquistar o tal “teto do mundo”, dar uma olhada na paisagem, fazer uma selfie – e voltar para se dizerem heróis. E me parece que o fato de onze alpinistas terem morrido na tentativa de conquistar o cume da montanha serve apenas para revestir o feito banal com uma fina camada de falsa excepcionalidade.

Tão falsa que em 2019 cerca de 800 pessoas chegaram ao cume do Everest só pelo lado nepalês. Pelo lado chinês foram aproximadamente mais 300. Para se ter uma ideia de como escalar o Everest se tornou um não-feito, nos anos 1960 (toda a década!), apenas 18 pessoas chegaram lá. Desde Hillary, 6871 pessoas alcançaram o cume da montanha. Para dois sherpas (membros da etnia da região que ajudam os montanhistas), a escalada é praticamente um passeio: eles já chegaram ao pico do Everest 21 vezes cada um.

Especialistas, autoridades e burocratas em geral estão criticando o governo nepalês, acusado de emitir permissões demais, o que teria provocado não só o engarrafamento como também as mortes. A permissão para escalar o Everest custa US$11 mil por alpinista – isto é, a montanha se tornou uma importante fonte de renda para o governo do Nepal. Que, vale dizer, não tem nada a ver com isso, porque não obriga ninguém a se autoafirmar fazendo uma selfie lá em cima.

Desde que escalar o Everest se tornou um feito quase banal, a montanha, antes imponente e mitológica, símbolo de tudo aquilo que o homem almeja um dia alcançar, se transformou apenas num lugar-comum para livros motivacionais. O Everest deixou de ser o Sol de Ícaro para se tornar somente algo que demanda um pouco mais de esforço e cuja conquista é recebida com aquela melancolia natural de quem percebe que há algo além do horizonte, que a vida não termina ali, que aquele pode ser o ponto mais alto do mundo, mas não é o auge de nada.

Não à toa, muitas das mortes e acidentes durante a escalada acontecem não na subida, e sim na descida do Everest. Geralmente por exaustão. Aqui a metáfora, não fosse tão óbvia, seria perfeita. O Everest, com seu engarrafamento de heróis, representa o ápice de uma espécie para a qual muitos não veem futuro. É o apogeu existencial, a realização de um sonho muito maior, a concretização de algo em comparação ao qual todo o restante passa a ser pequeno, minúsculo, desprezível. Uma vez alcançado, o que resta senão a morte por exaustão?

O que me impressiona mais nessa história é a quantidade de pessoas dispostas a arriscar a vida (ainda que de uma forma bastante controlada, claro. Morre mais gente por ano no trânsito de São Paulo do que escalando o Everest) para realizar algo que, a rigor, não representa absolutamente nada. Quem chega ao cume do Everest nada mais é do que uma pessoa que fez exercícios físicos, tomou suplementos, comprou uma passagem de avião e contratou um sherpa para servir como guia.

Haveria, portanto, uma base intelectual, filosófica, espiritual ou até estética que levasse uma pessoa que não Sir Edmund Hillary e outros pioneiros a enfrentarem frio, neve, ar rarefeito, penhascos e fendas nas geleiras para chegar ao pico do Everest? Até os anos 2000, era possível ao menos enxergar uma motivação financeira. Afinal, quem investia a vida para chegar ao ponto mais alto do planeta tinha a perspectiva de lançar um livro e sair por aí dando palestras motivacionais para engravatados que, evidentemente, jamais trocariam o conforto do lar por uma aventura dessas.

Mas e hoje? O que motiva essas pessoas? A vaidade tampouco é capaz de explicar tamanho empenho. Afinal, a banalidade de se escalar o Everest hoje em dia é tal que histórias de conquistas ou fracassos (“Eu estava a cem metros do cume, cara! Cem metros!”) são recebidas com um revirar de olhos e um dar de ombros.

O que me faz chegar à conclusão de que os turistas que se dão ao trabalho de tentar chegar ao cume do Everest o fazem por um insuportável vazio como só a abundância, aquela que mencionei no primeiro parágrafo, é capaz de proporcionar. Uma sensação de que na vida contemporânea já não há desafios cotidianos dignos do nome e cuja superação inspira transcendência.

Em termos materiais, viver é de uma simplicidade insuportável (tanto que em muitos países o problema hoje em dia é a obesidade, não a fome). Tão insuportável que muita gente se impõe a privação nem-tão-extrema assim de uma expedição ao Everest só para sentir a emoção de uma vitória que antes era cotidiana (tinha que ser cotidiana!) – até mesmo ao nível do mar.

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