Cena da série The Goop Lab, com Gwyneth Paltrow: cuidados pessoais transformados em religião| Foto: Adam Rose/Netflix
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Em condições normais de temperatura e pressão, uma pessoa de 70 quilos queima cerca de 300 calorias andando de bicicleta por meia hora. Aliando-se a prática constante a uma boa alimentação e, claro, consideradas as pré-condições genéticas do praticante, é esperado que, em alguma semanas ou meses, o ciclista em questão apresente perda ou estabilidade de peso, melhora na circulação sanguínea, tônus muscular e, quiçá, algum bom humor, em decorrência das doses de endorfina injetadas pelo próprio organismo durante o exercício.

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Via de regra, ninguém vai à academia esperando muito mais do que um corpo sarado, boa saúde ou, no máximo, alguma interação com treinadores e colegas. Entretanto, ao se matricular no clube de assinaturas SoulCycle (algo como Pedalar com Alma, em tradução aproximada), ganhando o direito de frequentar uma das 99 academias espalhadas pelos Estados Unidos e Canadá (a maioria está concentrada em Nova York), o consumidor não está apenas se juntando a uma comunidade de ciclistas: está começando uma jornada rumo à descoberta de sua própria alma.

Não se trata mais de ser mais saudável ou mais bonito: “é sobre você”. Porque você, afinal, “foi criado para um propósito”, como afirmam os instrutores, que guiam os exercícios do alto de palanques rodeados de velas. O lema da rede é "Move your body. Take your journey. Find your soul. (Mova seu corpo. Faça sua jornada. Ache sua alma.)"

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Qualquer semelhança com um culto religioso não é mera implicância: os pesquisadores Casper Ter Kuille e Angie Thurston, da Harvard Divinity School, responsáveis pelo projeto “How We Gather” (Como nos reunimos), que investiga como os millenials exercem sua espiritualidade fora das religiões tradicionais, consideram o SoulCycle como uma das mais notáveis religiões seculares da modernidade.

“Os espaços tradicionalmente destinados ao exercício físico se tornaram locais de experiências compartilhadas de transformação. Isso levanta uma questão sobre a responsabilidade dos instrutores, e como eles podem se preparar melhor para o papel cada vez mais pastoral são chamados a assumir”, escrevem os pesquisadores. “Assim como no CrossFit, muitos participantes fazem piada sobre a lealdade que têm pelo clube, o que ilustra a profundidade do compromisso do participante e sua esperança de que essas organizações cumpram sua promessa de ajudá-lo a encontrar sua alma”.

Movida por sua própria experiência em uma aula de CrossFit, a socióloga Marcelle Dawson, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, foi uma das primeiras a estabelecer paralelos entre cultos religiosos e a turma que curte misturar levantamento de peso, treinos aeróbicos e de agilidade no método criado há vinte anos pelo americano Greg Glassman.

“Eu tinha acabado de chegar a Dunedin e me convidaram para uma aula”, lembra Dawson, que é natural da África do Sul. “Como era a primeira vez, tive dificuldade para terminar um exercício com barra, e deixei de lado. Em poucos minutos, um círculo de pessoas se formou ao meu redor, com todos gritando ‘vai, Marcelle’, ‘você não conhece seus limites’, ‘você não pode desistir’. Aquilo imediatamente despertou minha curiosidade sociológica por estar diante de um culto”, explica a pesquisadora.

Malhação transcendental

Desde os primórdios da humanidade, a capacidade de fornecer senso de pertencimento e sentido a um grupo é uma das prerrogativas das religiões. Como já explicado em reportagem prévia desta Gazeta do Povo, de acordo com o sociólogo Émile Durkheim, a religião é, justamente, um "sistema unificado de crenças e práticas” capaz de unir uma comunidade através da moral, de modo que aspectos comportamentais e psicológicos sejam levados em conta na hora de caracterizar uma crença como religiosa ou não.

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Foi justamente isso o que Dawson encontrou entre os “crossfiteiros” mais engajados: uma comunidade cativada pela visão moral de que é imperativo se tornar - através de muito exercício físico - a melhor versão de si mesmo. “Há, inclusive, um senso de sacrifício e sofrimento necessários para se alcançar o homem perfeito e a culpa ao ingerir ou deixar de fazer algo que o afaste desse ideal”, explica.

Em uma análise que vai além dos grupos que prometem uma “malhação transcendental”, a teóloga americana Tara Isabella Burton, em seu recém-lançado “Strange Rites: New Religions for a Godless World” (Ritos estranhos: Novas Religiões em um Mundo Sem Deus), identifica este fenômeno como parte do que ela chama de “Evangelho do Bem-Estar”, uma crença secular atrelada a uma indústria que movimenta 4,2 trilhões de dólares (mais que o dobro do PIB brasileiro, que é de 1,8 trilhão de dólares, de acordo com o Banco Mundial). Ao passo que, para alguns, a promoção da justiça social adquire a forma de uma religião - ainda que sem espaço para o transcendente, com valores de Bem e Mal calcados em aspectos materiais -, esta forma de espiritualidade busca sentido em outros aspectos da realidade e, segundo Burton, possui sua própria teologia. Um aluno da SoulCycle, por exemplo, “não está só pedalando para perder peso: está pedalando para virar uma pessoa melhor”.

Aos grupos esportivos que, progressivamente, vendem-se como canais de transformação pessoal, Burton acrescenta uma miríade de marcas famosas nos Estados Unidos que buscam fisgar o consumidor com promessas de salvação através de práticas que, outrora consideradas dispensáveis, agora ganham um verniz moral: aplicativos de meditação que prometem melhorar a inteligência emocional, “rituais” completos de cuidados com a pele capazes de restaurar o amor próprio, receitas mais preocupadas em serem “naturais” do que “apenas” nutritivas ou gostosas.

"Não tem como você ficar mais goopy"

Os antigos Vigilantes do Peso, por exemplo, agora são a “WW”: Weight Watchers, o nome literal em inglês, virou Wellness That Works (Bem-Estar que Funciona), que promete uma abordagem geral em saúde e bem-estar, com direito à parceria com o aplicativo de meditação multimilionário Headspace. Em Nova York, o clube The Well cobra uma mensalidade de 375 dólares para que o cliente tenha acesso a estúdios de yoga, aulas de meditação, um bar de sucos naturais e, inclusive, aulas de cura energética.

A recuperação traumas físicos e emocionais através da “realocação de energias”, supostamente impregnadas no corpo ao longo da vida, é uma das muitas terapias exploradas pelos goopiers, os fieis seguidores do que começou como uma despretensiosa newsletter de lifestyle e bem-estar criada pela atriz Gwyneth Paltrow e terminou como uma marca avaliada em 250 milhões de dólares com direito à série na Netflix. The Goop Lab estreou no serviço de streaming em janeiro deste ano e, em seis episódios, exibe um pouco do que é o culto de Paltrow.

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A tentativa de dar um verniz científico às terapias experimentadas pelos goopiers e pela própria fundadora falha em esconder o aspecto essencialmente religioso do grupo: enquanto “especialistas” em “avaliação da idade interior” (que, adivinhe só, é conquistada através de um jejum completo, durante o qual o paciente se alimenta apenas de sopas e concentrados produzidos pela própria empresa inventora do método) e outras terapias alternativas desfilam títulos e conceitos pseudocientíficos, a discussão efetivamente científica sobre uso de drogas alucinógenas para fins medicinais em ambiente controlado é misturada à ideia de “sacramento”, termo usado por um dos funcionários de Gwyneth para descrever o “tratamento”.

Há ainda a participação de um terapeuta energético, capaz de “manipular” as energias do corpo, a ponto de a funcionária braço-direito de Paltrow afirmar ter sido “exorcizada” ao final da sessão (ao que a fundadora responde: “não tem como você ficar mais goopy”). Em artigo publicado na revista Questão de Ciência, a bióloga brasileira Natália Pasternak avalia que “o principal problema da série é o modo como borra a distinção entre pesquisa médica séria (…), pseudociência (quiropraxia, reiki, no penúltimo episódio) e fraude descarada (uma médium tentando realizar leituras frias de modo especialmente medíocre, no episódio final)”.

A série, ao menos, não serve de propaganda para os produtos exclusivos da marca: ovos ionizados de jade, feitos para serem alojados no órgão genital feminino, velas aromáticas sonoras, cartas de tarô e um elixir “repelente de vampiros”, cujos ingredientes são uma infinidade de cristais. Burton relata que, há três anos, uma parceria entre o Goop e os editores da revista Vogue não foi levada adiante porque Paltrow não permitiu que nenhuma das alegações científicas fosse checada.

A nova pureza

Os nascidos antes da década de 1960 bem sabem que esoterismo, terapias energéticas e curas quânticas não são, exatamente, uma novidade. O mérito de Burton está na identificação da face contemporânea desta “nova Nova Era” e na explicação didática de seus fundamentos teológicos. “É uma teologia fundamentada basicamente na divisão: o autêntico, o intuitivo ‘eu’ – tanto de corpo quanto de alma – e o artificial, as forças malévolas da sociedade, as regras e as expectativas. Nós nascemos bons, mas somos enganados e corrompidos pelas grandes empresas farmacêuticas, pela comida processada, pela própria civilização (…)”, explica Burton.

O próprio uso do termo “ritual de beleza” - outrora utilizado apenas para designar uma atividade rotineira - ganha o status de sagrado. Burton relata que, até a publicação do livro, havia 14 milhões de posts com a hashtag #selfcare no Instagram. Enquanto esta reportagem é escrita, já são mais de 33 milhões.

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“O autocuidado se tornou um slogan de marketing designado para dar legitimidade para comportamentos que, em outros sistemas morais, seriam considerados simplesmente egoístas”, diz a teóloga, que ressalta a existência de artigos que dão dicas de “como explicar a um amigo que você vai cancelar os planos para ficar em casa se cuidando”.

Se o Bem, a fonte de todo o propósito, são os próprios sentimentos humanos - como amor ou felicidade - o pecado, decorrente do Mal, são culpa da falta de autocuidado. “Nós não apenas temos o direito inalienável mas a responsabilidade moral de cuidar de nós mesmos antes de direcionar qualquer atenção para os outros; temos que nos ouvir para nos comportarmos de forma autêntica, conectados com o que nossa intuição indica”, avalia a autora. “A ideologia implícita da religião do bem-estar é que o mundo é inerentemente significativo e organizado”, define.

E qual é o problema?

Por ocasião do lançamento de The Goop Lab na Netflix, o filósofo Adam Levinovitz, professor de estudos religiosos na Universidade James Madison publicou no jornal The Washington Post um artigo intitulado “Goop Lab ensina que podemos ser puros - se pagarmos o suficiente”.

“Em última instância”, escreve o especialista, “o que Goop promete é pureza: física, moral e espiritual. Dê uma olhada no site e você logo aprenderá que a vida de uma pessoa normal é profundamente impura. Alimentos convencionais, roupas, perfumes, cosméticos - todos tóxicos para nossos corpos, nossos filhos e o planeta. Cheio de medo, o leitor se pergunta: Qual é a chave para viver uma vida pura? A resposta, crucial para o modelo de negócios de Goop, é gastar muito dinheiro”, explica Levinovitz. Não à toa, a primeira fragrância da marca, vendida por “apenas” 165 dólares (o famoso Chanel nº 5 custa cerca de 100), se chama “Church” (Igreja).

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“Não há necessidade de se preocupar com as pegadas de carbono deixadas por suas botas de couro italianas importadas ou sua roupa de esqui de inverno com curadoria de Goop: o sacerdócio experiente de Paltrow vende indulgências que purificam esses pecados. As compras, como orações sofisticadas, trazem o poder de curar você e a Terra”, completa o autor.

O homem nasce bom e é corrompido pelo glúten

Em conversa com a Gazeta do Povo, Levinovitz, autor do livro "Natural: How Faith in Nature's Goodness Leads to Harmful Fads, Unjust Laws, and Flawed Science” (Natural: Como a fé na bondade da Natureza leva a desfechos prejudiciais, leis injustas e pseudociência), ainda sem tradução para o português, explica qual é o problema por trás da visão de mundo que guia a estratégia de marketing de Paltrow e de tantas outras marcas consagradas do mercado do bem-estar.

“Antigamente, uma marca de alimentos tentava convencer o consumidor de que a comida seria boa para sua saúde. Agora, é preciso que seja boa também para os trabalhadores que a produzem e para o planeta. Em outras palavras, é preciso que comer - bem como cuidar da pele, preparar um smoothie ou comprar lenços de papel - seja um ato transcendental de bondade, alinhado ao que se entende por Bem”, diz o filósofo.

“O problema é que, levada a cabo, qualquer mitologia é falha. No limite, acreditar que a natureza é perfeita significa acreditar que vale a pena eliminar metade da população da terra para parar o aquecimento global”, prossegue. “Não há forma de garantir por completo nossa saúde ou de evitar o sofrimento; é impossível ter certeza de que uma ação é moralmente boa em todas as esferas possíveis. O mundo é complexo e desejo que as pessoas tenham coragem de confrontar essa bagunça, avaliando conscientemente se, por exemplo, preferem evitar consumir certo tipo de alimento cientes de que, em larga escala, podem prejudicar um trabalhador. Precisamos ficar mais confortáveis com a incerteza”, avalia Levinovitz.

A visão de que o homem nasce bom e é corrompido pelo glúten, pelas “más energias” ou pelo mercado, é claro, não nasceu com o Crossfit ou com a newsletter de Gwyneth Paltrow. Desde Jean-Jacques Rousseau (e a frase original que inclui a corrupção pela sociedade), passando pelo mundo degenerado pelo capital e pelas relações de poder de Karl Marx até a “moral do escravo” de Friedrich Nietzsche, segundo a qual a teoria cristã da natureza “caída” do homem serviria apenas para justificar seus próprios vícios e para funcionar como uma munição ressentida contra os opressores; a ideia de que o ser humano é essencialmente puro foi defendida diversas vezes ao longo da história, sob os mais diversos argumentos.

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“A oposição à ideia cristã de que a natureza humana é absolutamente nefasta e pecaminosa não é nova, mas costumava vir em uma embalagem melhor”, avalia Gabriel Ferreira, professor de filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Ainda que o cuidado com a natureza e com a própria saúde - física e emocional - sejam necessários e moralmente justificáveis, o “Evangelho do bem-estar”, no limite, propõe conforto ao divinizar as emoções e sensações humanas, tidas como parte desta natureza sagrada. “Mesmo que haja o componente do comportamento social e o sentimento de pertença a um grupo, o ‘pecado’ neste sistema de crenças não esbarra no outro: o objeto último é você mesmo. E pensar que você é corrompido é chato, dá muito trabalho”, diz o entrevistado.

A própria Tara Burton admite que, ao tornar absolutas as experiências humanas, ratificando que “nossas sensações físicas e emocionais são tudo em que podemos confiar”, a religião do bem-estar prega positividade e colhe niilismo. “Se a realidade é meramente o que eu apreendo, é impossível ter garantia que dois observadores podem apreender a mesma coisa - o que significa que não há objetividade possível. Por consequência, o ceticismo extremo leva à descrença completa”, acrescenta Ferreira.

Se, de um lado, a ideologia da natureza perfeita levada ao extremo leva à caricata proposta do vilão Thanos, por outro, o antídoto para os excessos da “religião do autocuidado” podem ser encontrados no mesmo universo dos heróis que enfrentam o titã malthusiano, quando a personagem de Tilda Swinton, a Anciã, enuncia ao futuro Doutor Estranho: “O medo e a arrogância continuam a te impedir de aprender a lição mais simples e mais significante de todas: não é sobre você”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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