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Entre outubro de 2019 e fevereiro de 2022, o valor da ação da farmacêutica alemã BioNTech cresceu 14 vezes. Em comparação, a criptomoeda Bitcoin, no mesmo período, cresceu pouco mais de quatro vezes. A razão para isso é que a BioNTech é a parceira da Pfizer no desenvolvimento da mais vendida vacina de mRNA para COVID-19, a Comirnaty.
A Pfizer também escalou em valor, mas de uma forma mais modesta comparada à BioNTech: 1,2 vez. Como informa a Deutsche Welle, cerca de 44% dos 82 bilhões de dólares em vendas da empresa em 2021 pode ser creditados à vacina. Todo o setor de medicamentos já vinha passando por uma expansão desde o começo do milênio, com lucros particularmente concentrados em tratamento para câncer, epilepsia, coágulos, doenças do sistema imunológico e diabetes. Os cinco medicamentos mais buscados para o câncer são projetados para ultrapassar em muito as vacinas no faturamento dos próximos cinco anos.
Para as grandes farmacêuticas que já tinham renome, como a Johnson & Johnson e a Pfizer, as vacinas para COVID-19 foram um fenômeno de maiores lucros temporários, não alcançando a maior parte de seus negócios — a AstraZeneca vendeu sua vacina a preço de custo. Mas para uma novata como a BioNTech, a vacina foi crucial.
Quem é a BioNTech
A revista científica Nature publicou a história convoluta das vacinas de mRNA, começando com o trabalho pioneiro de Robert Malone no Laboratório Salk, que misturou RNA a gotículas de gordura pela primeira vez, anotando em janeiro de 1988 que isso poderia levar a algo como um medicamento. Na opinião da revista, esses imunizantes resultam do trabalho de centenas de pesquisadores no curso de três décadas, e qualquer prêmio laureado a poucos deles fará injustiça.
A BioNTech entra nessa história após o trabalho do dr. Eli Gilboa, um imunologista do câncer que tentou usar mRNA que codificava a proteína do câncer para ensinar as células do sistema imune a atacarem células cancerosas. Gilboa e colegas realizaram o experimento em camundongos no Centro Médico da Universidade Duke, na Carolina do Norte. O cientista fundou a primeira empresa de terapia de mRNA, a CoImmune, em 1997.
O trabalho de Gilboa também inspirou alemães a fundarem duas empresas: a CureVac (2000) e a BioNTech (2008). Nas primeiras tentativas da CureVac de ganhar investimento, um laureado com o Nobel disse que usar mRNA era uma “ideia de merda”.
Um casal de cientistas de origem turca, Özlem Türeci e Uğur Şahin, teve mais sorte. Depois de passar anos ganhando patentes, publicando artigos e ganhando verbas na Universidade Johannes Gutenberg, conseguiram um investimento de 150 milhões de euros em 2007 para começar a BioNTech.
Outra concorrente fundada no mesmo ano pela bioquímica Katalin Karikó, a RNARx, ganhou menos de 100 mil dólares do governo americano para começar. Karikó, famosa por trabalhar duro para melhorar os protocolos de Malone, terminou contratada pela BioNTech em 2013 após sua empresa fechar as portas, não sem que a RNARx ganhasse centenas de milhões de dólares por patentes usadas tanto pela BioNTech quanto pela Moderna, que faz a atual segunda mais vendida vacina de mRNA do mundo.
A CureVac chegou a fazer também uma vacina para covid, mas, nos primeiros estudos, ela se mostrou inferior às alternativas da Pfizer-BioNTech (a parceria entre as duas foi feita em março de 2020) e da Moderna.
Uğur Şahin, hoje CEO da BioNTech aos 56 anos, mudou-se da Turquia para a Alemanha quando tinha quatro anos. Estudou medicina na Universidade de Colônia e obteve o doutorado em imunoterapia do câncer pela instituição. Ele conheceu sua esposa Özlem Türeci (54), também doutora em medicina, com quem se casou em 2002, quando ela estava em seu último ano da graduação no Hospital da Universidade de Saarland em Homburg. Também filha de imigrantes turcos, Özlem parece ser a mais empreendedora do casal: cofundou a Ganymed Pharmaceuticals em 2001. Ela é chefe de medicina da BioNTech desde 2018. O casal ganhou prêmios e hoje está entre os 100 mais ricos da Alemanha.
Dilemas morais e políticos dignos de atenção
A ONG Oxfam reclamou em novembro passado que a Pfizer, a BioNTech e a Moderna juntas lucram “mil dólares por segundo” enquanto os países mais pobres do mundo permanecem sem vacinas. A ONG faz um relatório anual em que reclama de desigualdade de renda entre bilionários e o resto da humanidade, uma preocupação que tem um viés político evidente.
Para o filósofo canadense Joseph Heath, o progressismo erra ao fazer moralismo a respeito do lucro. No livro Lucro Sujo: Lições para quem odeia o capitalismo (2009), Heath argumenta que a esquerda insiste até hoje no erro do imperador romano Diocleciano, que no ano 301 impôs o Édito dos Preços Máximos, que criou tetos de preços para 900 produtos e 150 serviços. O preâmbulo moraliza o lucro, mencionando “a avareza daqueles que sempre querem transformar em lucro próprio até as bênçãos dos deuses”. O resultado foi escassez desastrosa. O filósofo comenta que “a preferência unânime entre esquerdistas economicamente sofisticados é deixar o mercado decidir os preços onde um mercado competitivo o suficiente pode ser organizado. (...) Ainda assim, por alguma razão, a tentação de buscar os objetivos da justiça distributiva pela manipulação dos preços permanece quase irresistível para a esquerda”.
Lucros, portanto, não são problemas morais automáticos, mas incentivos que facilitam a distribuição de produtos e serviços. A falta desse incentivo explica em parte a carestia observada na União Soviética que levou muitos à morte. Pessoas ricas como J. K. Rowling (autora da série Harry Potter) e o casal turco-germânico da BioNTech são ricas porque têm algo a oferecer que milhões de pessoas desejam ou precisam.
Ganharam muito com a pandemia bilionários como Jeff Bezos da Amazon e Bill Gates da Microsoft. Como as grandes empresas têm uma mania de influenciar políticos para modificar as regras a seu favor, devemos nos perguntar a quem beneficiou a falência geral dos pequenos negócios por causa dos lockdowns, e quem pressionou os governos a impor-lhes esses custos.
Intimidade com o governo
Outro problema mais digno de debate são as isenções de responsabilidade concedidas às farmacêuticas ao redor do mundo por governos caso as suas vacinas causassem efeitos adversos. A Austrália está pagando indenizações a afetados por esses efeitos com dinheiro de impostos. A Pfizer já pagou a maior multa do mundo por más práticas na pesquisa de medicamentos, mas não se vê os responsáveis por erros que resultam até em mortes pagando pelo que fizeram com a perda da liberdade.
Outro problema a ser discutido é a grande influência desse poderoso setor da economia junto às autoridades que deveriam regular as suas atividades. Muitos estranham a insistência das agências de saúde americanas — a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) e o Centro de Controle de Doenças (CDC) — na terceira dose, especialmente diante da escassez da vacina em países pobres, que não impede infecção mas protege de covid mais grave.
O CDC tem um comitê de conselheiros especialistas. O comitê aconselhou ao órgão que não recomendasse a terceira dose para a população em geral, dando o foco aos grupos mais vulneráveis. Rochelle Walensky, diretora do centro, ignorou esta recomendação do próprio conselho.
Já na FDA, que também tem comitê de conselheiros, um fez campanha pública contra a terceira dose geral e dois funcionários com experiência de trinta anos na agência renunciaram a seus cargos em protesto pela recomendação. A FDA recomendou a terceira dose em novembro, ignorando o protocolo de chamar o conselho para deliberar a respeito. O governo Biden tem feito pressão pelo maior número de doses para o maior número de cidadãos possível, e teve uma tentativa de forçar empresas grandes a vacinar seus funcionários derrubada pela Suprema Corte.
É particularmente estranho que o CDC e a FDA tenham pausado a vacinação com a vacina da Johnson & Johnson após seis casos de problemas associados a coágulos (com incidência de 1 em 315 mil) enquanto essas agências nada alteraram em suas políticas de vacinação depois de vários estudos indicando que a miocardite em jovens do sexo masculino com as vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) é de 14 em 100 mil.
Agora, com a justificativa de evitar a “hesitação vacinal”, o CDC enfrenta a ira de especialistas em vacinas como Paul Offit por se recusar a liberar dados que coletou especialmente a respeito da necessidade da terceira dose. “Diga a verdade, apresente os dados”, exorta Offit.