O Patriarca de Moscou, Cirilo, abençoa a invasão da Ucrânia e a apresenta como uma espécie de cruzada moral. O presidente russo Vladimir Putin assiste a cerimônias religiosas, como na recente Páscoa, favorece a Igreja ortodoxa e amiúde é visto com Cirilo. Entre os dois líderes há uma clara sintonia, mas, mais do que no propriamente religioso, coincidem no nacionalismo russo.
Putin peregrinou até o Monte Atos, banhou-se em um lago gelado na festa da Epifania, entre outras manifestações públicas de devoção. Muitos se perguntam se sua religiosidade é uma convicção pessoal ou uma tática. Sabe-se que sua mãe o fez batizar em segredo, e que ele conserva a cruz batismal que ela lhe deu. Disse em uma ocasião que “hoje não é possível ter uma moral separada dos valores religiosos”; mas nunca quis falar de sua fé. Segundo Michel Eltchaninoff, autor de Dans la tête de Vladimir Poutine [Na cabeça de Vladimir Putin], fontes eclesiásticas dizem que o presidente não é especialmente religioso.
De todo modo, o principal é o papel da religião, não em sua vida pessoal, senão em seu projeto político. E, nesse campo, a religião vem ganhando importância. Putin não deixa de sublinhar os “valores espirituais e morais da Rússia”, diz Kathy Rousselet, da grande école francesa “Sciences Po”, num artigo para a revista Études. Mas, assinala, o presidente fala de espiritualidade “em sentido mais moral e cultural que religioso”: como a base de uma comunidade política fortemente coesa, em contraste com a dissolução social e moral do Ocidente, que é um dos seus temas recorrentes. A Igreja ortodoxa é favorecida, mas – adverte Rousselet – também instrumentalizada para a renovação da sociedade que Putin almeja.
O “mundo russo”
Essa ideia da decadência ocidental angariou simpatias no próprio Ocidente, onde também se lamenta o distanciamento dos valores humanistas, morais e cristãos nas sociedades opulentas. É mais explicável ainda que encontre eco na Rússia, após a experiência dos tempos de Boris Yéltsin, anos de capitalismo selvagem, enriquecimento desavergonhado de umas elites que repartiram o patrimônio estatal privatizado, forte aumento da desigualdade, materialismo rampante. Aquilo deixou em muitos um vivo rechaço à ordem liberal, não só entre nostálgicos do comunismo, senão também entre aqueles que esperavam um florescimento da liberdade, como mostra Svetlana Alexiévich com os diálogos reunidos em O fim do homem soviético. Putin, diz Rousselet, opõe esses valores russos aos “valores ocidentais que espalharam pela Rússia nos anos noventa e que destruíram a unidade espiritual da sociedade”.
Putin “pôs ordem” e também deu esperança aos que tinham saudade da antiga grandeza russa, desaparecida com o desmembramento da União Soviética. Em 2007, assinala Youness Bousenna numa análise da cosmovisão putinista publicada no Le Monde, Putin criou um lema que seria capital: “mundo russo” (russki mir). Em poucos anos, depois de sua eleição como Patriarca em 2009, Cirilo começou a usar a mesma expressão.
Originalmente, um e outro não entendiam o “mundo russo” do mesmo jeito. Cirilo se referia a um âmbito religioso supranacional reunido em torno da Igreja Ortodoxa Russa. Por sua parte, Putin, ainda que assinale a ortodoxia como um dos “fundamentos espirituais” do “mundo russo”, concebe este em termos principalmente históricos, culturais e políticos. De fato, em seu “mundo russo” inclui o islã – o credo de 7% da população da Rússia –, para assumir positivamente una parte da história russa (o domínio tártaro e mongol entre os séculos XIII e XV), e para sublinhar sua concepção eurasiática, outro ponto de distinção e oposição ao Ocidente.
Cirilo passa para o lado de Putin
Putin invocou o “mundo russo” para justificar a anexação da Crimeia e o apoio aos separatistas pró-russos de Donbass em 2014. Mas esse ainda não era o “mundo russo” de Cirilo, que recusou o convite para assistir à cerimônia de incorporação da Crimeia. Não queria gerar atritos com a Igreja Ortodoxa Ucraniana.
Tudo mudou em 2018, quando o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, concedeu a autocefalia (independência em relação a outro patriarcado) à Igreja da Ucrânia. Isto implicou formalizar a divisão dos ortodoxos ucranianos entre os partidários do Patriarcado de Moscou e os que queriam independência dele. Cirilo rompeu com Constantinopla e aderiu ao projeto de Putin. Desde então, a proximidade entre ambos é mais clara. Ao fim e ao cabo, os dois “mundos russos”, o do Patriarca e o do presidente, se estendem sobre o mesmo território e têm as mesmas bases históricas, culturais e espirituais.
Nacionalismo
Pois então, segue sendo certo que no “mundo russo” de Putin a religião entra enquanto componente da identidade russa, e o núcleo essencial é o nacionalismo. No fundo, é uma visão muito tradicional, que tem dois pilares. Um é a convicção de que a nação russa constitui uma civilização própria e deve ter a hegemonia em seu extenso âmbito (o do antigo Império Russo, continuado pela URSS). O segundo é a contraposição ao Ocidente, que procede dos antigos eslavófilos, para os quais a assimilação seria a dissolução do russo.
A esse nacionalismo se subordina tudo. Para Eltchaninoff, Putin, “no fundo, pratica um imperialismo à la carte. A depender das circunstâncias, evoca a nostalgia da URSS, princípios religiosos, a russidade, a língua russa, o projeto eurasiático…”
Ainda assim, Putin entende por imperialismo a expansão da OTAN, não seu projeto nacional. O “mundo russo” é um espaço étnico, cultural, linguístico, religioso, histórico, espiritual… Todo russo há de estar, se não dentro das fronteiras da Federação Russa, ao menos na esfera de influência de Moscou e sob sua tutela. Os gestos hostis da Ucrânia independente frente à Rússia e à minoria russa, como a supressão do idioma russo na escola, foram fomentando a reação do Kremlin.
Mas a invasão não é, aos olhos de Putin, contra um inimigo exterior, senão contra uns “traidores” ou “infiltrados” (chama-os de nazistas), como mostrou nas razões alegadas para ordenar a chamada “operação especial”. Para Putin – como para Cirilo e ainda para a generalidade dos russos –, a Ucrânia nunca foi realmente outro país, senão parte da Rússia. Nas palavras do historiador Antoine Arjakovsky em La Croix: “Os habitantes da Rus do Norte (que depois seria a Rússia) nunca viram na Ucrânia (Rus do Sul) uma identidade nacional específica distinta da sua”.
Divisões entre os ortodoxos
Mas de fato se produziu um distanciamento da Rússia entre a população ucraniana não-russa, o que se nota também no aspecto religioso. A Rússia e a Ucrânia dividem em grande parte a mesma fé, o cristianismo ortodoxo, que é a confissão de quase três quartos dos habitantes em ambos os países (na Ucrânia há, ainda, 14% de católicos gregos). O que não há é unidade eclesiástica. Segundo uma enquete de 2019, os ortodoxos da Ucrânia se dividem em 44% de fiéis da Igreja autocéfala, 15% de fiéis da Igreja dependente do Patriarcado de Moscou e 38% que não se definem. A guerra aprofundou a divisão.
Algumas paróquias ucranianas passaram do Patriarcado de Moscou para o de Kiev, incitadas pela invasão russa e pelo silêncio dos bispos, que não se pronunciaram contra ela, segundo o New York Times. Foram publicados manifestos contra a postura e as teses de Cirilo. Um, internacional, que mais de 1.300 professores e teólogos ortodoxos a assinaram, rechaça a doutrina do “mundo russo”: qualifica-a como herética por pretender suplantar o reino de Deus com um reino temporal. Outra declaração, promovida na Ucrânia pelo arcipreste Andriy Pinchuk, também a considera uma heresia e condena Cirilo por “abençoar a guerra contra a Ucrânia e respaldar sem reservas as ações agressivas das forças russas”. Aderiram cerca de 400 sacerdotes ucranianos. Também há uma petição de cerca de 300 sacerdotes ortodoxos, a maioria na Rússia.
Apareceram igualmente divisões entre as Igrejas ortodoxas dos outros países, que se pronunciaram sobre a guerra conforme as suas relações com o Patriarcado de Moscou. Bartolomeu condenou a invasão russa com termos enérgicos, e nisso o seguiram outros patriarcados, como os da Grécia, Romênia ou Alexandria. Por outro lado, as Igrejas próximas a Moscou, ainda que deplorem a guerra, se abstiveram de fazer reprimendas à Rússia: tal é o caso dos patriarcados da Sérvia, Albânia, Jerusalém e Antioquia.
Freio no ecumenismo
O ecumenismo é outra vítima da guerra. As relações da Santa Sé com o Patriarcado de Moscou, sempre complicadas, tinham melhorado lentamente e registraram um avanço importante em 2016, com a primeira conversa entre um Patriarca e um Papa, quando Cirilo e Francisco se reuniram em Havana. Preparava-se o segundo encontro entre ambos no próximo junho em Jerusalém. Mas a Santa Sé decidiu suspendê-lo, segundo anunciou o Papa em uma entrevista ao jornal argentino La Nación em 22 de abril. “Una reunião dos dois nesses momentos”, disse Francisco, “poderia prestar-se a muitas confusões”.
Desde quando começou a invasão, não se viu muito entendimento entre ambos quanto à guerra. As declarações públicas de um e outro contrastam claramente, e depois de sua conversa por videoconferência em 16 de março, o Patriarcado e a Santa Sé publicaram comunicados notavelmente distintos. O de Moscou era genérico, enquanto que o de Roma reiterava expressões mais claras empregadas por Francisco: que a Igreja não deve adotar uma linguagem política, ou que as guerras são injustas.
Por outro lado, o Patriarcado de Moscou desde 2018 não participa no órgão de diálogo teológico católico-ortodoxo. Retirou-se não por atritos com a Igreja Católica, senão por uma questão intraortodoxa: opõe-se ao posto preferencial que ocupa a representação de Constantinopla nas reuniões.
Dir-se-ia que, assim como Putin queria frear a expansão da OTAN e quase está provocando o contrário, Cirilo buscava a reunificação da Igreja da Ucrânia com seu Patriarcado e começa a encontrar mais secessão.