Presidente francês observa cortes de carne na festa do lírio-do-vale de 2021, no Palácio do Eliseu. Atletas das Olimpíadas de Paris em 2024 reclamaram da falta de carne nas refeições vegetarianas.| Foto: EFE/EPA/LUDOVIC MARIN / POOL
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“As Olimpíadas 2024 serão as mais amigáveis aos vegetarianos da história”, prometeram diversos sites da causa nas semanas anteriores à abertura dos jogos olímpicos, na última sexta (26). Sua fonte principal era um documento de julho de 2022 produzido pelo comitê organizador com o título “Celebrando o sabor moderno da França: a visão alimentar de Paris 2024”.

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A comida seria “mais baseada em plantas, mais local, mais sustentável”, disse no documento o presidente do comitê, Tony Estanguet. “Adicionar mais ingredientes de origem vegetal à comida é a forma mais eficaz de reduzir a pegada de carbono do serviço de bufê”, afirmou o documento, cujo plano envolvia “reduzir a quantidade de proteína animal nas refeições” e “aumentar a variedade de comida vegetariana gostosa e atraente”. O problema é justamente esse: a ameaça foi cumprida.

“As equipes estão saindo da Vila Olímpica” por causa da falta de proteína, disse à Sky Sports Radio o australiano Michael Clarke, jogador de críquete. Ele afirmou que competidores olímpicos de múltiplos esportes estavam descontentes com as opções do cardápio, 60% das quais são vegetarianas, e que “um levantador de peso ouviu que ele não podia pegar mais que dois pedaços de cordeiro... o cara pesa 120 kg, se ele quer 15 pedaços, deem para ele”.

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Se “você é o que você come”, levantadores de peso precisam de muita proteína

“É possível” um levantador de peso ser vegetariano, disse à Gazeta do Povo o nutricionista Felipe Caggiano, influente no Instagram. “Já tivemos nas olimpíadas alguns atletas veganos nessa modalidade, como o americano Kendrick Farris. No entanto, essa adaptação demanda uma dieta muito específica, com a utilização obrigatória de alguns suplementos como a vitamina B12 e uma meta de proteína ainda maior do que a de quem consome carne”.

Um atleta vegetariano ou vegano (o último caso exclui também ovos, laticínios e até mel da dieta) precisa de ainda mais alimentos ricos em proteína na dieta que um onívoro, pois “as proteínas vegetais são menos biodisponíveis, ou seja, são menos absorvidas pelo organismo”, afirmou Caggiano.

Com esmero, os atletas vegetarianos podem até obter uma performance igual à dos outros, contudo, “as evidências atuais não apoiam a ideia de que uma dieta do tipo vegano pode melhorar a performance, a adaptação ou a recuperação em atletas”, concluiu uma revisão de estudos publicada em 2023 na revista acadêmica Advices in Nutrition por Sam West, especialista do departamento de Saúde Pública e Ciências do Esporte da Universidade de Exeter, no Reino Unido.

Sem um estrito planejamento, disse Caggiano, a dieta vegana “pode oferecer menos ferro, cálcio, B12 e vitamina D”. O perfil de aminoácidos (os blocos construtores das proteínas, inclusive as dos músculos) das plantas “é menos completo” e elas são digeridas com mais dificuldade.

“Se, por exemplo, você trocar frango por arroz e feijão, a conta não vai fechar”, afirmou o nutricionista. “Enquanto 100 gramas de frango têm por volta de 25 gramas de proteína, 200 gramas de arroz somadas a 200 gramas de feijão (quatro vezes mais comida) possuem apenas 14,7 gramas de proteína. Não é incomum que um atleta consuma de 30 a 40 gramas de proteína por refeição”.

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Atletas de alto rendimento, além de precisarem de uma quantidade relativamente alta de proteína, também precisam ficar de olho nos micronutrientes (vitaminas e minerais) e cumprir cotas diárias de calorias e carboidratos “que variam com o tamanho, peso, metabolismo e modalidade do atleta”, disse Caggiano. Outro fator importante é que uma nova dieta precisa ser testada: “mesmo corredores amadores sabem que não se deve testar um suplemento ou refeição diferente antes de uma prova. Para o atleta olímpico, isso é ainda mais importante”. O súbito menu diferente da Vila Olímpica pode ter levado a problemas gastrointestinais e piora no desempenho.

Vila Olímpica recua e compra mais proteína animal

Durou apenas três dias a insistência do comitê organizador das Olimpíadas 2024 nos seus planos de cardápio “sustentável”. Na segunda-feira (29), o chefe-executivo dos jogos e veterano do badminton, Étienne Thobois, disse à agência Reuters que “houve um reforço em proteína animal com 700 kg de ovos e uma tonelada de carne para atender aos pedidos dos atletas”.

É uma derrota para a União Vegetariana Europeia (EVU), que havia comemorado a “visão alimentar” das Olimpíadas 2024. O chefe de políticas da organização, Rafael Pinto, havia dito ao site Euronews que “esta é uma oportunidade para mostrar a milhões de pessoas que as proteínas vegetais são uma alternativa melhor para o planeta e também podem dar sustento para o desempenho atlético”.

Pinto afirmara que “a exigência de grande quantidade de proteína animal para atletas é um mito que foi derrubado há muito tempo. Aqueles que perpetuam esse mito durante os jogos não estão se baseando em ciência”.

No X, Frédéric Leroy, cientista de alimentos e biotecnologia que leciona na Universidade Vrije de Bruxelas, na Bélgica, rebateu e ironizou os argumentos de Pinto: “a União Vegetariana Europeia está fazendo manipulação psicológica com os atletas das Olimpíadas 2024, dispensando seus pedidos por mais carne e ovos como um ‘mito’. Porque esses atletas e seus nutricionistas são certamente muito desinformados a respeito do que é o melhor para atingir suas metas proteicas pessoais”.

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