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O ataque do grupo terrorista Hamas desde o último sábado (7) a Israel levou muitos a reexaminar sua posição sobre os atores locais e redescobrir o que foi publicado a respeito do conflito. Por exemplo, voltou a circular um vídeo de uma palestra de David Horowitz, escritor conservador, em maio de 2010 na Universidade da Califórnia. Ele desafia uma estudante muçulmana a condenar o Hamas e o Hezbollah: “Eu sou judeu. O chefe do Hezbollah disse que ele espera que nós nos juntemos em Israel, de modo que ele não tenha que nos caçar pelo globo. A favor ou contra?” “A favor”, respondeu a estudante.
Está sendo redescoberto também o documentário “The Green Prince” (2014, “O Príncipe Verde”, em tradução livre), baseado na autobiografia de Mosab Yousef, ninguém menos que o filho do Xeique Hassan Yousef, cofundador do Hamas. Além de cofundador, o líder, hoje com 68 anos e ainda atuante na Cisjordânia, é considerado um guia espiritual. “Meu pai dedicou toda a sua vida à causa do islã”, conta o filho na abertura do documentário, na época com 36 anos, “pensando que a filosofia e ideologia islâmicas resolverão os problemas da humanidade”.
Ele é o primogênito, com cinco irmãos e três irmãs, de quem ele cuidava quando a mãe não estava presente e o pai, na prisão — ao todo foram cerca de 16 anos não consecutivos de encarceramentos. Um dos irmãos mais novos de Mosab chegava a chamá-lo de “papai”. “O Hamas não era apenas um movimento, para nós. Era o negócio da família. Era a nossa identidade, era tudo”.
O documentário corrobora os relatos do palestino com seu operador na inteligência israelense, Gonen Ben Yitzhak. Dirigido e escrito por Nadav Shirman, o filme ganhou quatro prêmios: em Israel, em Moscou, na Bavária e no Festival Sundance.
Mosab confessa que, por ver o pai sendo levado pela polícia israelense de casa, com a promessa de que voltaria em cinco minutos — a espera foi de um ano e meio, e ele foi preso novamente poucos dias depois — ele cresceu com ódio dos israelenses.
Adolescência na prisão
Aos 17 anos, Mosab foi preso pela primeira vez após comprar armas ilegalmente. Queria vingança. Ele já estava sob vigilância da inteligência israelense e foi levado a interrogatório. “Seu pai foi durão aqui, você também vai ser? Bem-vindo ao abatedouro”, teria dito o interrogador. Ele passou dias em confinamento.
O documentário ouve a respeito Gonen Yitzhak, ex-funcionário da Shin Bet, a Agência de Segurança de Israel, que coordenou o interrogatório e tentava recrutar palestinos como agentes. Mosab aceitou colaborar, com intenção de enganá-los e jamais trair seu pai, mas não poderia ser solto sem despertar desconfiança do Hamas. Ele recebeu instruções de como se comportar e foi enviado para uma prisão para socializar com os líderes do movimento.
O adolescente logo descobriu que, dono de sua própria seção do presídio, o Hamas torturava agentes infiltrados. Aparelhos de som e canto alto eram usados para abafar os gritos dos torturados. Enquanto o “abatedouro” da unidade de interrogatório israelense era um blefe para colocar medo, a prisão era a coisa real. “Não tinha limite. Às vezes, sem evidência, torturavam as pessoas até a morte”, conta Mosab. “Não estamos falando em um ou dois presos, estamos falando de centenas (...), este é o projeto do meu pai”.
A mentira do Hamas é revelada
Ao ser libertado e abordado pela Shin Bet, o palestino perguntou aos agentes por que não protegeram os torturados, se estavam trabalhando pelos interesses de Israel. Não estavam, explicaram os israelenses. Os métodos de interrogatório do Hamas, que o perguntaram quais eram suas “conexões” dadas pela agência, eram a prova de que não tinham conhecimento para concluir que alguém era agente infiltrado. Agora, o projeto de vingança de Mosab estava transformado em um projeto genuíno de colaboração. “Estamos vivendo uma mentira e as pessoas estão morrendo por causa dessa mentira”, ele comenta.
Esperando por instruções, ele foi pego de surpresa: os agentes queriam que ele terminasse seus estudos atrasados pela prisão, que cuidasse da família e se tornasse um palestino respeitável. Além disso, precisava ganhar a confiança do pai e ajudar a plantar escutas em reuniões. Ele gostava do trabalho de espião, mas tinha seus limites: se recusava a participar das atividades religiosas do Hamas e se tornar um membro. Era um nível de duplicidade para além das fronteiras de sua consciência. Ele foi um espião por dez anos, com codinome “Príncipe Verde”, referência à cor da bandeira do grupo.
Um de seus trabalhos mais importantes envolveu o líder palestino Yasser Arafat, que se reunia com seu pai “para discutir os detalhes da [Segunda] Intifada e suas atividades”. A Segunda Intifada envolveu uma revolta civil dos palestinos, com múltiplos ataques, a partir de setembro de 2000. Mosab Youssef diz que Arafat sabia dos ataques que aconteceriam e queria ficar distante, “para outra pessoa fazer o trabalho sujo para ele”.
O ex-agente israelense Gonen Yitzhak corrobora: “O Príncipe Verde nos ligou e nos contou que Arafat estava falando com Hassan Yousef e disse a ele ‘prepare-se, pois vamos explodir tudo’. A Shin Bet e Israel não souberam lidar com a informação, na época. Nossa esperança estava em Arafat”.
O documentário mostra imagens de Hassan discursando para ruas lotadas, repletas de bandeiras da Palestina: “As balas do Hamas vão penetrar os peitos dos nossos inimigos”, ele diz, “vamos lutar lado a lado contra essa ocupação e expulsá-los da nossa terra”. Em outras imagens, ele elogia um homem-bomba: “o mártir que cometeu o ataque suicida de hoje em Natanya pertence à organização Hamas. Ele é o sétimo mártir de dez anunciados pela organização”.
O filho diz que não sabe se o pai realmente acreditava no que dizia em público. Mosab salvou o pai dando uma dica anônima de que ele era alvo de operações e que precisava se livrar de seus guarda-costas. Yitzhak diz que as atividades de espionagem do filho eram uma fonte preciosa e que isso, também, salvou a vida de Hassan.
Mosab pessoalmente serviu de chofer para os cabeças das operações de homem-bomba do Hamas, de uma prisão da Autoridade Palestina para um abrigo. Com posse das informações, a inteligência israelense seguiu o carro com um helicóptero militar. Os agentes, lembra Yitzhak, debateram aos gritos se atirariam no veículo, sacrificando a vida do Príncipe Verde. “Decidimos não fazer”, conta o ex-agente. Logo depois, os homens libertados pela Autoridade realizaram um ataque em um hospital, com dois mortos e 25 feridos.
O silêncio das oliveiras
Por que o filho traiu o pai? Uma história de Mosab ajuda a entender como foi plantada a semente da desconfiança contra sua própria cultura de criação. Ele conta que foi estuprado quando criança, aos cinco anos, por um vizinho em uma plantação de oliveiras. O pai, que sempre o ensinou a valorizar as árvores louvadas nos livros sagrados, pedira que ele acompanhasse o vizinho em uma visita à plantação. “Fiquei com vergonha. Se soubessem, teria problemas na escola e no futuro, eu seria isolado, mais doloroso que ter sido estuprado é ter a reputação de ter sido estuprado. (...) Eu não podia contar para os meus pais. Por quê?”
Refletindo sobre o momento em que ele decidiu trocar de lado, ele diz que foi uma decisão muito difícil. “Foi uma mudança muito radical. Parece que você está sonhando”. Sobre seus colaboradores, ele explica que “nunca foram legais. Sempre suspeitaram de mim, sempre duvidaram, era desencorajador”. Ele conta, também, que não ganhou muito dinheiro, além de aceitar voltar à prisão. “Não abríamos garrafas de champanhe para celebrar as dezenas de vidas que salvávamos”.
O encerramento das atividades de espião veio depois de mais seis meses de prisão. Mosab estava exausto da vida dupla e das mentiras, e via um lado do pai que a os agentes não viam, disposto a considerar trégua e paz. Seu operador, Yitzhak, foi levado à corte marcial e dispensado por violar regras em seu favor. Mosab, ainda com a identidade dividida, encontrou a si mesmo nos Estados Unidos, onde abraçou a fé cristã. Agora alvo de desconfiança dos americanos, viu na verdade sua única saída.
“Pedi a ele naquela conversa que ele me deserdasse”, lembra Mosab sobre a ligação para o pai em que contou tudo. “Ele me disse ‘você é meu filho e vai continuar sendo. Ninguém pode nos tirar isso’”. Mas, em público, a conversa foi diferente: da prisão, Hassan emitiu uma nota em nome de toda a família denunciando o filho.
A autobiografia foi publicada em 2010. O plano dos Estados Unidos era deportar Mosab. Quando Yitzhak, agora trabalhando como advogado em Tel-Aviv, soube da notícia pelos jornais locais, pegou um avião para ver o antigo colaborador na Califórnia. Quando se viram, se abraçaram e riram por dez minutos. As conexões do ex-agente asseguraram que a deportação não acontecesse e o palestino ficasse seguro. “O laço entre nós não é de família, é um laço baseado na verdade, e é inquebrantável”, conta Mosab sobre o amigo israelense, sem conseguir conter as lágrimas.
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