O cineasta alemão Marcus Vetter foi o primeiro, em 50 anos, a ter acesso (quase) irrestrito aos bastidores do Fórum Econômico Mundial, sediado na cidade suíça de Davos.
O resultado de seu trabalho nos encontros de 2018 e 2019 foi sintetizado em quase duas horas no documentário O Fórum, disponível em plataformas de streaming como Google Play e Globoplay, entre outros.
A produção oferece uma rara oportunidade de observar em detalhes a organização de um dos maiores encontros de líderes mundiais pela visão de seu fundador, o professor Klaus Schwab, de 82 anos, em dois momentos distintos do Fórum – o prestigiado encontro de 2018 e a esvaziada reunião do ano seguinte.
Permeado por trechos de uma longa entrevista com Schwab, o documentário relembra a origem do evento em 1971, quando o fundador – sabendo que queria organizar um grande encontro de líderes, mas sem ideias de como tirar o projeto do papel – publica anúncios em jornais chamando autoridades mundiais para o então Fórum Europeu de Gestão.
Todo o filme gira em torno de Schwab e sua aparente boa vontade de fazer do encontro uma forma de melhorar o mundo através do diálogo.
“Se nós não sentíssemos a necessidade de conversar, a necessidade de diálogo, viveríamos em uma ditadura global na qual todos teriam a mesma opinião. O que significa que, não apenas falar, mas deixar os outros falarem também, é uma necessidade absoluta para a coesão social do nosso mundo. O importante é não só falar, mas também ouvir. Creio que este é o ponto de partida, este sentimento de que precisamos do diálogo para nos compreendermos uns aos outros”, diz Schwab em um dos trechos do filme.
O diretor tenta manter um tom equilibrado, dando espaço para divulgação de iniciativas positivas originadas no Fórum e que trouxeram melhorias significativas para pessoas em Gana e Ruanda – uma empresa que usa drones para entregar bolsas de doação de sangue a hospitais onde seria praticamente impossível chegar sobre rodas e uma iniciativa para tornar a produção de óleo de palma mais sustentável na Indonésia.
Por outro lado, Vetter traz vozes que afirmam que o Fórum Econômico Mundial não passa de “uma sala cheia de pessoas ruins”, e que o evento é “99% status quo”, e não algo que tenha como meta uma real mudança no mundo. São integrantes do alto escalão do Greenpeace International, entre eles a diretora-executiva Jennifer Morgan, que diz ter “pouca paciência com essa comunidade” de líderes globais.
“Se eles entenderem e estiverem prontos para se esforçar em realmente querer conversar, faremos o que for preciso. Eu me sinto desconfortável ao dar a eles tanto poder. Eles não têm feito um bom trabalho, mas eu estou pronta para ter essa conversa franca e fazer com que as pessoas se sintam muito desconfortáveis”, fala a diretora.
O diretor faz questão de ressaltar toda a pompa e a circunstância com a qual são recebidos os chefes de estado. Destaque para o presidente norte-americano Donald Trump e sua comitiva pousando em dois enormes helicópteros.
Ele é o grande destaque dentro de um verdadeiro panteão composto por nomes como o do presidente francês Emmanuel Macron, da chanceler alemã Angela Merkel, da então primeira-ministra britânica Theresa May e da presidente do FMI Christine Lagarde.
Em contraposição, Vetter dá grande ênfase na forma bem mais humilde como a diretora-executiva do Greenpeace chega ao evento, desembarcando em uma estação de trem e carregando a própria mala andando a pé em meio à neve.
E é tentando equilibrar lados tão antagônicos que Klaus Schwab e sua diplomacia quase mágica são retratados no filme. Ele protagoniza momentos onde tal capacidade é posta à prova, como no Fórum de 2001.
Na ocasião o líder da autoridade palestina Yasser Arafat faria uma participação conjunta com o primeiro-ministro israelense Shimon Peres. Ambos subiram de mãos dadas ao palco, dando a impressão de que o Fórum poderia ser o berço de algum fato relevante para as negociações de paz entre os dois povos.
O que se seguiu foi uma sequência de situações embaraçosas que tornaram ainda mais complicadas as tratativas para um acordo entre Israel e Palestina.
Relações com o Brasil
Dois anos depois da primeira edição do Fórum, Klaus Schwab veio ao Brasil e conheceu D. Hélder Câmara, um dos ícones da Teologia da Libertação e da esquerda no país.
Ele foi um dos primeiros convidados de fora do circuito governo/grandes empresas, e causou constrangimentos à organização, que, como conta Schwab, sofreu boicotes de empresas que decidiram não participar mais do encontro.
“Este momento foi muito significativo, pelo menos para mim e minha esposa. Foi um teste crucial na história do Fórum. Será que deveríamos cancelar tudo ou deveríamos nos ater aos nossos valores?”, lembra o fundador do Fórum.
O Brasil volta a ser destaque no filme já em sua parte final, quando retrata a participação de Jair Bolsonaro no evento de 2019. Naquele ano Trump travava uma batalha contra os democratas na questão da construção do muro na fronteira dos Estados Unidos com o México, e por isso não foi a Davos.
Emmanuel Macron, que lidava com os protestos dos coletes amarelos em Paris, também cancelou a participação no Fórum. Theresa May não compareceu ao evento, já que como primeira-ministra britânica estava no olho do furacão das discussões sobre o Brexit. Os primeiros-ministros do Canadá, Justin Trudeau, e da Índia, Narendra Modi, também cancelaram suas participações. Restou ao presidente brasileiro o papel de um dos protagonistas do encontro.
Mesmo assim, o filme retrata Bolsonaro como se estivesse deslocado em uma festa. As imagens mostrando outros participantes em francas e animadas rodas de conversas contrastam com o presidente brasileiro sozinho com sua comitiva e observando tudo de longe.
Três breves interações são mostradas no filme. Uma brevíssima com um homem que se identifica apenas como sendo de Hong Kong. Outra com a diretora-executiva do Greenpeace, em que ele apenas ouve o que Jennifer Morgan fala, sem responder. Na sequência, Morgan conta o “feito” de ter ido falar com Bolsonaro a uma interlocutora, e ambas comemoram com uma afetação quase adolescente.
Por fim, O Fórum traz a conversa entre Bolsonaro e o ambientalista e o ex-vice-presidente norte americano Al Gore que ficou famosa durante o período de divulgação do filme.
Gore se apresenta como grande amigo do jornalista, ex-deputado federal e Coordenador Executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima Alfredo Sirkis (1950-2020), não se sabe se de forma intencional para provocar Bolsonaro.
O presidente afirma ter sido inimigo de Sirkis, que morreu em 2020 vítima de um acidente de carro, na luta armada – fato contestado por jornalistas e internautas – e afirma que a “história passada do Brasil dos militares foi mal contada”.
Gore continua, dizendo que está profundamente preocupado com a Amazônia, e recebe uma resposta que foi bastante repercutida por opositores de Bolsonaro. “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas, e gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”, diz o presidente do Brasil, que ouve de Gore “eu não entendi muito bem o que isso quer dizer.”
Em sua parte final, O Fórum mostra a participação da adolescente Greta Thunberg e sua ascensão como referência entre os ambientalistas.
Mostrando desde as primeiras entrevistas em um acampamento no meio da neve em que ela fala que o encontro é uma oportunidade de mudar as coisas – ao ser perguntada sobre o que precisa ser mudado, a menina faz uma longa pausa, responde vagamente “tudo” e é saudada por uma salva de palmas – até seu infame discurso em que pede que as pessoas não tenham esperança, mas que entrem em pânico porque “nossa casa está em chamas.”
Klaus Schwab, que do alto de seus 81 anos ainda cuida de todos os detalhes do Fórum – como por exemplo decidir em qual mesa sentará qual político, qual presente deve ser comprado para o filho da primeira-ministra da Nova Zelândia ou qual lembrancinha os participantes levarão de Davos, um cristal ou um sininho chamado “cowbell” – ainda tem tempo de escrever uma carta para Greta Thunberg, em que sinaliza que nas próximas edições vai cobrar dos integrantes do Fórum um compromisso com ações ambientais.
Como resposta, ele recebe da adolescente uma descompostura na forma de frases como “sua inação [quanto à questão ambiental no mundo] é inaceitável e imperdoável.”
Se tenta manter um tom equilibrado em seu começo, o filme termina como um manifesto ambientalista, com direito a inserções diretas de imagens de geleiras se desfazendo, florestas queimando, água poluída e aves mortas. Mostra exemplos de países como a Costa Rica, que deve ser uma das primeiras nações a ficar livre de impacto do carbono na atmosfera, em contradição ao Brasil e suas árvores em chamas.
Artifícios mais sutis, como a trilha sonora soturna bem pontuada e os olhares de desconfiança da plateia que ouve de Bolsonaro que o Brasil é o país que mais tem florestas preservadas no mundo, completam a obra, que está disponível no Globoplay, Now, Vivo Play, AppleTV, Google Play, Youtube Filmes e Looke.
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