Eric Voegelin compara, em seu fundamental livro A Nova Ciência da Política (1952), as semelhanças entre os puritanos ingleses do século XVI, obcecados pelo mito da Jerusalém Celeste, e as ideologias totalitárias do século XX, como o Nazismo e, mais especificamente, o Comunismo. Ambos eram reações de gnosticismo contra o pensamento cristão, com toques de aspecto messiânico e apocalíptico. Ou seja, sua razão para entrar na luta pelo poder era nada mais nada menos que consertar todos os problemas do mundo.
Mas antes que o leitor acredite que este termo – “gnosticismo” – seja somente o apelido de alguma seita religiosa de uma era remota, saiba que não se trata nada disso. Para sermos mais precisos, entender a síndrome gnóstica – algo tão aparentemente diverso na sua multiplicidade de significado, mas que, no fundo, guarda uma implacável unidade de sentido – significa entender alguns dos eventos mais recentes do mundo político, tanto no âmbito nacional como no internacional. Essa síndrome é nada mais, nada menos que a raiz existencial da “revolta das elites” diagnosticada por Christopher Lasch em seu livro-testamento de mesmo título – e não por acaso um dos últimos textos escritos por este crítico cultural americano, ainda em vida, foi justamente sobre este assunto (intitulado apropriadamente de “Gnosticismo – A Religião do Futuro”).
Ali, Lasch atacava o ponto principal dos adeptos dessa atitude: para eles, a salvação da alma está necessariamente restrita a uma elite espiritual – e esta última só poderia dar seus frutos em um ambiente de intensa confusão religiosa, no qual a antiga fé estaria evanescendo e nenhuma outra surgiria como a novidade que pudesse se afirmar como sua “sucessora”. Portanto, no mundo pós-moderno, o cristianismo perdia o seu papel de unir o corpo e o espírito – e, segundo Lasch, o gnosticismo se apresentava como a possibilidade de ser “a religião do futuro”, uma vez que seria o pilar existencial das elites que então pretendiam comandar o resto da população que vivia no globo terrestre.
Contudo, há um equívoco na abordagem de Lasch. Ele supõe que o “gnosticismo” é um mero problema estrutural religioso, uma forma mentis na qual a mudança de uma perspectiva por outra implica alguma alteração para outra cosmologia, talvez mais evoluída, talvez menos sofisticada. Não se trata nada disso. Como bem apontou o poeta brasileiro Bruno Tolentino, nas páginas introdutórias de O Mundo como Ideia (2002), o gnosticismo não é somente “uma questão religiosa, nem de uma questão de doutrina, e menos ainda de doutrina estética”. Seguindo os passos de Voegelin, ele afirma que se trata, antes de qualquer outra veleidade intelectual, de
“um componente inseparável da mente humana em seu estado sempre virtual de perversidade antifilosófica; um estado de rebelião inerente ao espírito dissatisfeito, uma enfermidade do espírito – doença da injustiça, ou nosema tes adikias, segundo Platão – da qual provêm cada vez mais acentuadamente todas as metástases do orgulho, da destruição e do caos. Gnosis, segundo o mestre, apesar do termo grego original significar ‘conhecimento’, é hoje o que em realidade sempre foi: a revolta, a sanha do arcanjo caído, o furto, tão inútil quanto impossível, do fogo do Céu por um Prometeu ensandecido. Sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticações construções da mente humana, não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em ódio a esse saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, em certas colocações esconde-se, hoje como antes, sempre a mesma e antiquíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem enfermo de orgulho, a sede de um ‘saber’ que desminta ou, melhor, substitua a divina sabedoria. É o sonho louco de uma possessão-deste-mundo que abolisse a dependência da criatura ao Criador, instituindo o reino conhecedor (gnóstico...) de Caim, de Eva, da Serpente, numa palavra, o paraíso do fruto arrebatado”.
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Um dos poucos que percebeu a insanidade desta proposta logo em seu germe na história da modernidade, em pleno século XVI, foi o teólogo inglês Richard Hooker. Em A Nova Ciência da Política, Voegelin o cita com o prazer de ter descoberto um diagnóstico preciso para todas as épocas, inclusive a nossa. “Em primeiro lugar, sempre haverá alguém com uma ‘causa’”, escreve ele, “e, ao ‘ouvir o clamor da multidão’, criticar severamente os males sociais e, em particular, a conduta das classes altas”. Os problemas detectados pelos puritanos são corretos e até merecem uma resolução justa. Contudo, a culpa deles não cai nas costas do ser humano e sim no mundo em que vivemos – portanto, na própria criação divina. A “causa” se torna, dessa forma, uma maneira de modificar a situação, e quem tem esta noção se transforma imediatamente no detentor de toda a justiça e de todo o bem; e quem se opõe à “causa” é logo tachado de inimigo e, como o bem sempre vence o mal, este último deve ser extirpado.
O problema é que a identificação destes puritanos com os desejos divinos (“Deus escolheu os mais simples”, afirmava um de seus panfletos) leva a uma pirueta diabólica em que o homem se revolta contra Deus e deseja se tornar nada mais, nada menos que a própria divindade. Isso chegaria às raias do absurdo lógico, na nossa modernidade, com a “filosofia da História” de Hegel, em que o Estado se torna o fim de todas as coisas, e a “morte de Deus”, de Nietzsche – além de desaguar no nazismo, no socialismo e no comunismo. Mas, se o leitor leu direito as semelhanças descritas, verá que vários grupos partidários ou várias comunidades internacionais contemporâneas, especializadas em infligir sofrimento, sempre em função à tal “causa”, possuem as mesmas características dos puritanos analisados por Hooker e Voegelin. Aqui no Brasil, seria o Partido dos Trabalhadores (PT) ou, atualmente, os neo-integralistas que apoiam o governo de Jair Bolsonaro, perseguindo pessoas normais nas redes sociais só por causa da mera divergência de opiniões; lá fora, organizações terroristas como a Al-Qaeda, Hezbollah e, mais recentemente, o terrível Estado Islâmico – boa parte agrupadas nesse guarda-chuva conceitualmente sinistro que, na falta de nome melhor, chamamos de “Islã Radical” (ou jihad global, na terminologia de Richard Landes).
Eles são, de fato, os novos puritanos, embebidos ora pela ideologia marxista, ora pelo estudo equivocado de um Corão que ainda precisa passar por uma completa reforma filosófica, ora por um desejo de se transformar em um Napoleão de fardas, dotado de perfeição, e que, misturados a certo tempero local (especialmente aqui no Bananão, como diria Ivan Lessa), insistem na mesma “causa” sem saber como concretizá-la. Esta indecisão leva a atitudes insólitas que chocariam seus antepassados ingleses como, por exemplo, no caso do PT, desde o momento da sua fundação, ao insistir que sujeitos orgulhosos de nunca terem feito uma faculdade sejam inseridos em cargos públicos, e que, ao mesmo tempo, tenham uma conversa com um genocida de marca maior (ninguém menos que o falecido El Comandante Fidel Castro). Infelizmente, nunca soubemos se faziam por malícia ou inocência – e se este foi o caso, o nome “puritano” seria um insulto, já que, pelo menos, Oliver Cromwell era afoito para mostrar sua inteligência, enquanto nosso partido dos trabalhadores ou os nossos neo-integralistas ficam excitados pela pureza da ignorância dos seus líderes.
Mas, pelo menos, a Inglaterra tinha o seu Richard Hooker para avisá-la do circo de horrores. O Brasil nem teve essa sorte. Nos últimos anos, desde que o PT foi eleito para o cargo-maior da nação, e após a vitória de Jair Bolsonaro, quando aparecia alguém com coragem suficiente para mostrar a hipocrisia dos novos puritanos, os asseclas destes se infiltravam na mídia e nas redes sociais do país, com seus arapongas e inocentes úteis, moldando a cultura em regras de propaganda política, e expulsando o opositor para o gulag das ideias. A esquerda e a direita sempre seduziram os incautos por substituir a aventura heroica da fé, e, como muitos preferiam ser um verme a dar o exemplo de uma resistência espiritual digna do nome, vários jornalistas, escritores e intelectuais também acreditaram estar imbuídos de uma “causa” e tentaram resolver o dilema moral da humanidade como se fosse uma “luta de classes” entre os ricos e os pobres, os patriotas e os comunistas, “nós e eles”.
Trata-se de uma ajuda mortal, literalmente. De um lado, quem opta pela esquerda fez uma escolha moral abominável. O que ela fez de bom para o mundo quando se sabe, na URSS comunista, 32 milhões de pessoas foram executadas, sejam elas cristãos, judeus, muçulmanos, e muitas delas opositores de Lênin e Stalin? Onde está o bem desta esquerda quando a China de Mao-Tsé Tung devastou o Tibete, com tamanha lentidão que a expressão “tortura chinesa” adquire um novo sentido? E onde está o bem ao saber que Fidel Castro jogou o povo de Cuba numa apatia espiritual que nenhuma medicina pode curar?
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Isto não são opiniões. São fatos, e quem os nega também quer negar o mundo onde nós vivemos. E tudo isso em nome de uma “causa”, de um “dever moral”, de uma “escolha ética” – enfim, de uma “ideia” na qual o Bem deve triunfar sobre o Mal por quaisquer meios necessários. Por “meios necessários” entenda-se: usar a justiça e a imprensa para calar a boca de qualquer tipo de oposição; grampear telefones e computadores, vasculhando a intimidade da pessoa; manipulação e adulteração da História, com uso da hipnose, técnicas de programação neurolingüistica e as indefectíveis drogas, glamourizadas a tal ponto que, talvez por medo, talvez por motivos de recreação particular, o jornalista se torna porta-voz involuntário da bandidagem quando anuncia a grande denúncia que colocará o seu inimigo em maus lençóis.
Esta credulidade beócia invadiu até mesmo as nossas universidades, absortas em discussões bizantinas, e onde um nome como o de Eric Voegelin, até muito recentemente, não fazia parte da lista básica de leituras de um estudante de Filosofia porque era tachado de “direita”. “Left is right and right is left”, já dizia H.L. Mencken, e a frase se aplica com perfeição por aqui. Mesmo com a saída do Partido dos Trabalhadores do Planalto – e a prisão de Luís Inácio Lula da Silva por causa do escândalo do Petrolão –, todas as ideologias políticas controlam as próximas decisões políticas como se tivessem a certeza da descida da Jerusalém Celestial – o que comprova que um pleito eleitoral não passa de um mero evento para demarcar o fim de um projeto de nação que, independentemente da elite que o elaborou, sempre será contra a sociedade civil e, em último caso, contra o indivíduo que está muito acima da categoria de “cidadão”.
Afinal, se o establishment não tiver plena ciência da reviravolta política que acontece no Brasil e no mundo, qualquer um que entre nesta casta de iluminados será convidado para jogar o primeiro punhado de pó. Por quê? Porque somente no Brasil o lema da bandeira nacional – Ordem e Progresso, como todos devem se lembrar – transformou-se em uma piada ao ser inspirada no positivismo de Augusto Comte, outro defensor entusiasta de uma “causa”, além de ser um arremedo de filósofo que faria Platão e Aristóteles se revirarem no túmulo. Foi assim que somente aqui a ideologia esquerdista foi considerada como um exemplo de cultura brasileira quando, na verdade, transformou-a em algo pior do que uma prostituta no Cairo – e na raiz existencial de uma direita que a macaqueia em seus métodos mais imundos.
A pureza da ignorância deu lugar ao elogio da burrice. No Brasil, ser inteligente, possuir alguma espécie de caráter e ter alguma opinião individual tornou-se um pecado mortal. Afinal de contas, eles são o Bem; os outros são o Mal. Chegou a hora em que devemos embaralhar o que você pensa que sabe. Na verdade, não se sabe de nada, e quem pensa que conhece alguma coisa caiu na falácia de construir uma pseudo-narrativa para explicar o fato de que, até agora, ninguém mais controla o “apocalipse político” do gnosticismo dos nossos dias. Muito pelo contrário: é este último que nos controla, desde os nossos atos mais íntimos até a linguagem cotidiana com a qual nos expressamos. As palavras impressas aqui são a lâmina que marca os tolos e os inconsequentes, e se você tinha dúvidas sobre a verdadeira causa que anima a intenção deste texto – e não a “causa” que legitima a barbárie do pensamento e quebra os ossos dos outros –, é porque sua consciência perdeu o bem comum de pensar por conta própria há muito, muito tempo.
Síndrome gnóstica
Como bem descreveu Hans Jonas, no artigo “A síndrome gnóstica: tipologia de seu pensamento, imaginação e disposição espiritual”, este tipo de narrativa nos nossos tempos pós-modernos (e de pós-verdade) tem alguns elementos comuns. Trata-se de um anseio amparado no dualismo existencial, entre homem e mundo, e, além disso, entre mundo e Deus, sendo que, em ambos os casos, estamos falando de um dualismo de termos antitéticos – isto é, não complementares. Por um incrível paradoxo, estamos falando também de um dualismo que é fundamentalmente um só: aquele que espelha a rivalidade entre o homem e o mundo, em especial no plano da experiência, para depois ser refletida no dualismo primordial entre Deus e mundo, cujo “primeiro princípio” não é apenas a oposição ao mundo, mas sobretudo a sua separação plena dele. A única maneira de escapar desse impasse é criar uma forma sincera de “doutrina de salvação” que, por sua vez, terá como consequência prática um intenso elemento de rebelião e de protesto a respeito da condição humana como qualquer um que a vivencia. Jonas demonstra que essa “rejeição do mundo” tem como eixo
a violência peculiar, muitas vezes vituperativa, e geralmente notamos uma tendência ao extremismo, ao excesso de fantasia e de sentimento. Suspeitamos que a situação metafísica deslocada, da qual o mito gnóstico fala, possui sua contrapartida numa situação real deslocada: a de que a forma de crise do seu simbolismo reflete uma crise histórica do próprio homem. Uma tal crise, claro, aparece em outros fenômenos do período também: judeus, cristãos e pagãos, muitos dos quais revelam um estado mental profundamente exaltado, uma grande tensão na alma, uma disposição ao radicalismo, a expectativas hiperbólicas e a soluções totais. [grifos nossos]
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As intelligentsias brasileiras e internacionais só conseguem pensar exatamente nesses termos, independentemente de serem da esquerda ou da direita. A síndrome gnóstica se dissimula em ideologia política – ou seja, em recortes da realidade que fazem de tudo para distorcê-la conforme seus interesses pessoais, tão mesquinhos e tão pobres de motivação que nem o doutor Freud teria coragem de explicá-los. Ao procurar ver o mundo através de um véu, e mostrá-lo em sua personalidade como uma máscara (para usar a metáfora de José Guilherme Merquior em O véu e a máscara), o intelectual e o político do Ocidente têm o medo terrível de enfrentar a única vida que vale a pena viver, a vida que aceita o mistério como algo vital e que não pode ser compreendido por meio de revoltas dualistas – a vida do espírito.
E o que raios significa isto?, perguntará o leitor. Seria ir à igreja todos os dias, rezar o Pai Nosso, a Ave-Maria e a Salve Rainha mais de trezentas vezes e se sentir salvo? Seria ir a algum culto evangélico e acreditar piamente que está salvo pela Graça Divina depois de escutar uma versão melindrosa de “Segura na mão de Deus e vai”? Ir a um show-missa dos padres Marcelo Rossi e Fábio de Melo? Beijar a mão do Papa? Cantar em hebraico? Ajoelhar em direção à Meca todo o final da tarde? Tomar um chá do Santo Daime e acreditar que teve uma “conexão com o Universo”?
Nada disso. A vida do espírito é o segredo que move o destino humano e está intimamente relacionada aos pequenos e grandes detalhes do cotidiano, seja o curso da História, como o Terror de 11 de setembro, ou as trapalhadas do governo federal brasileiro, como provaram as ações do Partido dos Trabalhadores e, mais recentemente, o golden shower de Jair Bolsonaro. Ela não se mostra por meio de atitudes exteriores, como pensa o leitor – mesmo que algumas dessas atitudes sejam ritos simbólicos que possuem uma relação intrínseca com o espírito. No entanto, como tudo neste mundo é de uma ambiguidade implacável, estes atos exteriores perdem o seu sentido transcendente e tornam-se, em si mesmos, exemplos de ideologia as quais resultam na perda do sagrado e tratam o mundo como uma ideia a ser moldada conforme o bel-prazer do sujeito que tem pretensões de ser um revoltado.
No fundo, como já foi apontado por Bruno Tolentino, isto é uma doença, talvez a mais frequente de todas, mas também a mais difícil de diagnosticar. Seu principal mecanismo é a fuga. Carlos Drummond de Andrade mostrou isso de forma notável no seu grande poema, “A máquina do mundo”. Aqui, um homem caminha na estrada pedregosa de Minas, sufocado por um céu de chumbo, cercado de dúvidas até que, de repente, a máquina do mundo – um símbolo para a ordem perfeita do cosmos – aparece à sua frente, revelando todos os seus mecanismos, visíveis e invisíveis. Ao ver o clarão tolerável, recusa o que ela estava querendo ensinar – um verdadeiro ato de apostasia. “Baixei os olhos, incurioso, lasso/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita ao meu engenho”, diz a persona do poema, que lhe resta apenas retornar ao caminho pedregoso, avaliando o que perdera com suas mãos pensas.
Este comportamento é típico da casta intelectual. A renúncia à máquina do mundo – ou seja, à aventura heroica da fé – foi substituída por algo mais fácil: a ideologia política, hoje transformada em uma espécie de pseudo-mitologia. Por isso, temos a sedução pela visão “progressista” da vida, a “imaginação liberal” examinada por Lionel Trilling, em que o social impera sobre o ser humano como uma força inexorável e determinante; o mesmo ocorre com os liberais clássicos, os libertários e até mesmo os que se dizem ser conservadores, os quais, apesar de uma noção mais aguda do fenômeno social e da natureza humana, ou preferem ver a História como um movimento rumo ao progresso tecnológico e institucional, ou então como um retorno a uma tradição que não existe mais, caindo, de uma forma ou outra, na armadilha hegeliana do sentido imanente. Nos nossos tempos, em que “o apocalipse político” da síndrome gnóstica tornou-se a única constante, tanto a esquerda como a direita são visões caducas, não porque são ultrapassadas dentro de suas épocas, e sim porque nunca tiveram nada de importante a afirmar para a civilização que é observada pelo olho da eternidade. Quando tiveram algo a dizer, o resultado foram revoluções sangrentas, regimes totalitários e a canalhice travestida de democracia.
É claro que há uma razão mais profunda para tal acontecimento: a vida do espírito exige uma dose perturbadora de solidão e um constante carinho pelas sombras da existência. Pascal dizia que, para provar se um homem era saudável, o certo seria trancá-lo sozinho dentro de um quarto e observar se conseguia ficar tranquilo lá dentro. Boa parte da humanidade grita de pavor ao pensar somente nessa possibilidade. O confronto com a escuridão, e o necessário mergulho nela, para então descobrir a claridade, obriga o homem a se confrontar com sua finitude – algo que qualquer tipo de ideologia ameniza a todo custo.
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Para os políticos, que desejam o poder como um elixir da juventude, a morte atrapalha os seus planos – logo, por que não retirá-la da nossa vida por meio da aceitação de uma simples ideia? Os intelectuais, por sua vez, são parasitas do poder e somente seguem os políticos, com toda a pompa e circunstância que esse tipo de ritual bizarro possui. Mas quem perde com isso é o mistério da existência – o que não significa que este esteja morto. No combate com seu maior inimigo – o Estado-Leviatã –, o indivíduo que se dedica a esta vida de exílio deve se lembrar sempre das palavras de Ezequiel quando o profeta hebreu disse que os corpos sem o sopro do espírito são desprovidos de músculos e de sangue, sobrando apenas seus ossos, todos secos. Eis a metáfora exata para descrever os esquerdistas, os conservadores e os liberais que conduzem o destino do país e do resto do mundo, tanto em termos políticos como intelectuais: uma pilha de ossos secos, prontos para serem queimados em algum holocausto – no caso, o nosso.
Assim, fica claro que, ao ouvir essas perguntas que indicam uma evidente limitação de inteligência – “Qual é a sua ideologia?”, “Você é da esquerda ou da direita?” –, ou então escutar o famoso ditado “A ideologia move o mundo”, a vontade deste escriba que vos fala é dar um piparote na testa do infeliz. Claro que sempre tem um engraçadinho que dirá que este texto que está a ler é um exemplo de ideologia, mas aqui não estamos discutindo meras ideias. Nossa única intenção aqui é refletir sobre o tênue fio da existência, sobre a incerteza em um mundo que, a princípio, parece ser algo negativo, mas que, no fundo, revelar-se-á como um princípio extremamente benéfico para todos nós que a aceitarmos – algo que só a filosofia pode fazer, jamais a ideologia. Podemos nos expressar por meio das ideias; contudo, entre endeusar a Dama Ideia (como diria Tolentino) e entender o que a torna tão querida, surge um grande abismo. É nesta lacuna que os ossos secos se revestem de músculos, sangue e pele, e nos tornamos seres humanos. Enquanto isso, a terra se prepara para ser devastada, o vento sopra para onde quer, e caminhamos vagarosos pelas estradas pedregosas, sufocados por um céu de chumbo, prestes a avaliar de mãos pensas o que será perdido se continuarmos a viver desse modo.
Gnosticismo, democracia e apocalipse
Dos diversos disfarces que a síndrome gnóstica pode ter entre as ideologias políticas, nenhuma delas é mais insidiosa do que o demótico – ou, como é melhor conhecida, a democracia. Ninguém parece (ou, melhor, quer) notar, mas o sistema democrático e igualitário que aparentemente corrige os rumos da nossa política moderna é, em sua essência, gnóstico e apocalíptico. O nosso vocabulário é possuído por esses slogans milenaristas: “igualdade”, “direitos humanos”, “justiça social”, “multiculturalismo”, “tolerância” – e, o mais recente, “transhumanismo”. Contudo, poucos reconhecem os sintomas da síndrome gnóstica porque são os próprios intelectuais que manobram a linguagem – com uma perícia de dar inveja ao George Orwell que anteviu a “novalíngua”, no seu romance 1984 –, a serviço da manutenção perpétua da sua “revolta das elites” particular.
O scholar Richard Landes, notório por analisar as relações ocultas entre o “apocalipse político” dos nossos tempos, a nossa sensibilidade demótica e até mesmo a jihad radical, comenta que este emaranhado de pensamentos antevê, sem nenhum motivo para ser visto como algo concreto, uma era futura e messiânica, na qual a terra será sempre abundante, onde os justos tratarão os outros com correção absoluta, para assim vivermos em um mundo perfeito, pacífico e alegre – uma comunidade global vibrante e iluminada. A chave deste tipo de atitude está naquilo que atualmente chamamos de “outro”, uma característica marcante da retórica do dualismo da síndrome gnóstica que sempre antevê uma guerra de proporções cósmicas. É um jogo de “soma zero” cujo argumento principal é uma aparente renúncia à violência peculiar e vituperativa do gnosticismo, fomentada na retórica do tal do “soft power”, mas que induz, na verdade, a um outro tipo de violência, que se alimenta da interioridade do ser humano, na qual a visão demótica de um mundo anseia por uma transformação apocalíptica, em que a aristocracia com pretensões de ser guerreira (ou os burgueses imperialistas, conforme são chamados pelos revolucionários) abandona voluntariamente suas armas violentas e opressivas em favor de instrumentos de trabalho manual honesto. A guerra deixa de ser de trincheiras e passa a ser exclusivamente cultural.
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Eis aqui o importante papel do italiano Antonio Gramsci. Preso durante os anos 1930 por Benito Mussolini, ele foi um teórico que acreditava no socialismo como poucos, divertiu-se no cárcere escrevendo tratados sobre como tornar uma população dócil a um regime que amputava a liberdade individual. Fez isso porque se encontrava numa enrascada: como explicar que, na Rússia, a terra prometida do proletariado, o povo não aceitava um governo que deveria trabalhar a seu favor e assim este tinha de impor o seu poder à força? Materialista emperdenido, Gramsci se esquecera que os russos são, na sua maioria, conservadores e religiosos, uma tradição preservada até hoje, mesmo com trinta anos de stalinismo nas costas e com Vladimir Putin assoprando no cangote de cada cidadão. Para resolver esse impasse, fechado nas grades da prisão e nas de sua alma, o bom Antonio, depois de ter treslido Maquiavel, criou uma nova forma do socialismo chegar ao poder que atingia diretamente a nossa consciência e nosso espírito.
Os teóricos gramscianos chamam este processo de “Revolução Cultural”. As palavras-chave para entendê-lo são: “Bloco Histórico” (a História é o que importa e ela é somente o movimento da luta de classes), “Hegemonia” (em outras palavras: poder absoluto para quem se importa somente com a História), “Intelectual Orgânico” (aquele que joga no time do proletariado), “Intelectual Inorgânico” (aquele que não joga sequer uma pelada com um operário) e – o ápice de todo esse raciocínio – o “Novo Príncipe”, o comandante coletivo que governará tal rebanho.
A teoria de Gramsci atua, como já antecipamos, na área da cultura, entendida aqui como o debate de ideias, a defesa de uma tradição e a educação das virtudes morais. Seus principais soldados são jornalistas, artistas, intelectuais e políticos. Mas engana-se os que pensam que eles estão contribuindo para o aprimoramento da sociedade. Ao contrário: transformam a cultura em propaganda ideológica, desprezando o passado em relação ao presente, ao dissipar o sentido das palavras na criação de uma inversão de valores que se impregna no senso comum de cada indivíduo, em que o bandido vira o mocinho e a vida em uma piada sem sentido. O fim evidente disso é a tomada de poder que, apesar de não usar nenhuma espécie de violência explícita, é tão sutil quanto um elefante – confirmando assim a sensibilidade demótica e apocalíptica que permeia o gramscismo
Parafraseando Dante Alighieri, a tarefa de narrar essa selva escura, rude e forte, é dura, e volve o medo à mente que a figura. Talvez seja por isso que dois ex-presidentes, vários deputados, alguns senadores e a maioria dos conselheiros de plantão se perderam no pandemônio que cercou Brasília e não conseguiram detectar que a verdadeira pergunta não é mais quem manda em quem e sim quem ganha com tudo isso – o famoso Cui bono?. O temor de se confrontar consigo mesmo, e não perceber que a busca sincera pela verdade virou instrumento de propaganda política, é a prova de que, mesmo com suas supostas oposições, todos os seus envolvidos erguem um altar escondido, mesmo de maneira involuntária, a este fantasma da Sardenha.
Quem, afinal, ganha com esse cenário desolador? O problema é que a elite brasileira se tornou uma espécie de monastério que pratica as ideias de Gramsci em todos os seus pontos principais. É só ir a qualquer reunião social e perceber como são usados jargões da moda como “preconceito” e “tutela”. Aqueles que deveriam ter a “obrigação moral de serem inteligentes”, segundo as palavras de Lionel Trilling, constroem silogismos primários para defender a ideologia esquerdista de qualquer crítica que envolva o fato de que o Partido dos Trabalhadores (a nossa encarnação tupiniquim do “Novo Príncipe”) liderava um gigantesco esquema de corrupção. Essa mesma elite aliviava a gravidade dessas evidências ao amenizar o papel do PSDB, igualmente gramsciano de corpo e alma, louvando a ilusão de que seus integrantes sempre quiseram praticar a verdadeira social-democracia (seja lá o que fosse isso). O bom Antonio não poderia ter escolhido melhores discípulos pois, em alguns anos no poder, não houve um político ou intelectual que não desejasse ser, a qualquer custo, o Messias que Mestre Gramsci tanto sonhou.
No entanto, a tal da “Revolução Cultural” funciona até um certo ponto. Depois, quando parte para a ação concreta, as coisas se complicam – especialmente, neste território inóspito como o Brasil, onde ideias estrangeiras de direita ou de esquerda, que servem tanto para explicar o comportamento do intelectual como o peculiar modo de vida dos políticos, também não servem para entender adequadamente esse bicho estranho chamado “mentalidade patrimonialista” – sempre defensora de que a coisa pública deve ser tratada como se fosse uma propriedade privada da elite política. Por meio de uma maquiagem de “racionalidade”, eis aqui outro filhote da síndrome gnóstica, o solo sedimentado na história brasileira para a Revolução Cultural florescer sem nenhum pudor, como nos mostra Ricardo Vélez-Rodriguez em A Grande Mentira – Lula e o patrimonialismo petista:
“O processo de racionalização da política completar-se-á, no contexto do patrimonialismo/gramscismo petista, mediante a privatização das decisões pelos intelectuais orgânicos que aparecem no universo ideológico contemporâneo: as lideranças sindicais e as que se situam à frente dos denominados ‘movimentos sociais’. Intelectuais orgânicos a serviço do proletariado, como João Pedro Stédile, são guindados à condição de ‘pensadores brasileiros’, nas universidades federais, e chegam até a frequentar, como aconteceu recentemente, a Escola Superior de Guerra. O assembleísmo sindical garante a clareza das decisões, bem como a racionalidade das mesmas. Estamos vendo ressurgir [em 2015] o velho fantasma da República Sindical, só que agora iluminado com filosofia própria: o gramscismo acadêmico, habilmente apropriado pela intelligentsia petista e que passou a reforçar a velha tendência [...] do cientificismo marxista.
[Se continuar nesse ritmo], a racionalização da cultura em prol da classe trabalhadora ocorrerá, no modelo em andamento, pelo controle de toda a produção pelas lideranças sindicais, no terreno específico do jornalismo (com o malfadado projeto de dominação da classe pelo correspondente sindicato, proposta que ressuscitou na lei corporativista aprovada recentemente no Congresso e que, felizmente, recebeu o veto presidencial, graças à forte pressão exercida pela sociedade civil), bem como no campo das produções culturais (lembremos o abortado projeto do Ministério da Cultura). É bem verdade que, no caso da cooptação da grande mídia escrita e televisiva, os tecnocratas petistas do BNDES deram uma mãozinha, mediante generosas operações financeiras, que terminaram produzindo o estranho fenômeno da “mexicanização” da imprensa. Quem se comportar bem terá os seus créditos com o mencionado Banco religiosamente garantidos; já quem agir contra os interesses da hegemonia petista, será lançado às trevas exteriores dos juros astronômicos. Assim se explica a ‘fritura’ a que foram submetidos conhecidos âncoras, bem como a exclusão de colaboradores críticos, em jornais de grande circulação. As coisas, no terreno do controle sobre as comunicações, não param por aí: começa a ser chamada, pelo Secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, a massa dos militantes, para que se constituam em policiais dos blogs da internet, a fim de ameaçar com processo aqueles que ousarem criticar o candidato do governo, no decorrer da campanha que ora se inicia”.
Graças a esta “racionalização”, a política cotidiana, destituída de uma vida espiritual autêntica, tornou-se um jogo fútil em que um apunhala o outro pelas costas, e naquela terra devastada como Brasília, onde o culto a um projeto utópico faz a cidade lamentar não um fantasma do passado, mas um futuro que já se tornou um espectro, o choque com a realidade produz um nevoeiro ímpar. Gramsci, como todo bom socialista, é muito bonito no papel, mas na hora da prática, torna-se um manual de ciladas, e, no caso, o Partido dos Trabalhadores, representado pelas figuras de Dilma Rousseff e de Luís Inácio Lula da Silva, foram as iscas mais recentes que seduziram o povo brasileiro.
Na verdade, não há ganhadores nesta história. Aquele que se preocupa só com a História acaba virando sua vítima. Um governo onde os vivos são dominados pelos seus mortos, resultará em entropia e quem imaginava estar no comando se transforma em uma marionete nas mãos de algo que está além da compreensão humana. Como a perda é o nosso bem mais precioso, e isso nenhum gramsciano suporta, os revolucionários apocalípticos querem levar todo mundo à anulação do sentido da vida. Dessa forma, não haverá ninguém que possa dizer, como o sobrevivente no Livro de Jó: “E eu fui o único que escapei para lhe contar a história”.
Guerra cultural
Ninguém escapará para contar a sua própria história porque a tal da guerra cultural – expressão surgida do alemão kulturkampf – se espalhou pelo globo terrestre e, graças aos seus defensores e opositores, camuflou a sua verdadeira essência: a de ser uma guerra contra o espírito humano. Neste aspecto, Philip Rieff, em seu polêmico ensaio “A Imodéstia da Transgressão”, é implacável ao afirmar que a verdadeira capital da cultura do Ocidente não é mais Roma, Paris, Londres, Moscou ou Nova Iorque – mas sim São Francisco. A guerra cultural dos nossos dias é, atualmente, a imposição dos padrões homossexuais e transhumanos na natureza de todos nós, tal como a conhecemos desde a revelação de Israel e o surgimento da Filosofia. E isto é feito por meio da estética, pois é a autoridade desta última como formadora da nossa sensibilidade que provoca a transformação do nosso sistema moral em um mero perigo aprazível. A kulturkampf é, a partir de agora, um dramma giocoso, um drama jocoso no qual o transgressor é um Don Juan andrógino, capaz de copular tanto com homens como mulheres, e, como se isso não bastasse, igualmente possível de se tornar uma máquina imortal, digna de ter “singularidade” em relação aos meros seres humanos. Seu vestiário é composto de paródias de times de futebol ou de beisebol, de casacos de couro, ambientações sado-masoquistas, que, lentamente, entram no cotidiano da família heterossexual, provando que é no seio da “sagrada instituição” que habita a alma deste campo de batalha. Não é por acaso que um bom leitor perceberá que toda essa “ambientação de veludo”, por assim dizer, encaixa-se perfeitamente no clima de sátira criada por George Orwell em 1984, como já meditamos no artigo anterior desta série.
Afinal de contas, foi justamente um satirista romano – Juvenal, o Orwell daquela época – que fez a seguinte pergunta há dois mil anos na Roma antiga: Pone seram, cohibe. Sed quis custodiet ipsos Custodes? (Coloca o ferrolho, impeça. Mas quem vigiará os próprios vigilantes?). Ele falava dos representantes do Senado imperial, mas atualmente isto se aplica aos profissionais da imprensa, pois o fato é que o jornalismo, a arena onde acontece essa guerra cultural que destrói o espírito, está morrendo há muito tempo. Enquanto existir o veneno da ideologia política que alimenta o dramma giocoso, seja do lado da direita ou da esquerda, o jornalista não deve ser vigiado não só por si mesmo, naquela busca sincera pela verdade que caracteriza qualquer ser humano digno, mas por algo além da nossa compreensão, que ultrapasse o poder do dono de jornal, a fuga impossível da maldade e a vaidade fajuta da notícia.
Portanto, quem deveria ajudar os jornalistas, esses profissionais da superficialidade, nesta vigilância constante de si mesmos? Se você balbuciar a palavra “intelectual”, na crença de que este seria o vigia mais adequado, é porque nunca soube que, em 1927, o escritor francês chamado Julien Benda publicou um livro chamado A Traição dos Intelectuais (La Trahison des Clercs), que tinha como assunto justamente o fato de que, em uma atitude muito pior do que os nossos homens da notícia, os intelectuais também se deixaram corromper ao fazer o pacto de substituir a visão moral da vida pela visão da doutrina ideológica-política. Este livro escrito há quase 90 anos ainda incomoda os seus pares por sua simples conclusão: o intelectual se vendeu por muito pouco – e por muito menos do que o jornalista.
Trinta anos depois de Benda, outro francês, o sociólogo Raymond Aron, lançou O Ópio dos Intelectuais, um dos mais devastadores tratados contra a intelligentsia. Aron foi mais agudo que Benda: para ele, o intelectual tornou-se um agente político a favor de uma única ideologia – a marxista, que atuava como uma espécie de “religião política” que entorpecia suas consciências e provocava influências nefastas no senso comum do cidadão, distorcendo toda a noção de valores tradicionais, sempre na expectativa de que a “Jerusalém celeste” suspendesse enfim o “combate mental” que sempre os atormentou. É desnecessário dizer que, por causa dos seus diagnósticos doloridos, em ambos os casos, Benda e Aron foram tachados de conservadores, reacionários e paranoicos (quando, na verdade, talvez fossem os exemplos mais sofisticados de uma “imaginação liberal” à procura de um justo pluralismo na sociedade onde viviam).
É muito rara, no Brasil, a linhagem de intelectuais que criticam seus pares, pelo simples motivo que ninguém tem coragem de apontar o dedo para si. A teoria de Sergio Buarque de Holanda do “homem cordial” aplica-se com perfeição à intelligentsia brasileira, não só pelo fato de que são amáveis ou serenos, e sim porque é uma regra básica não falar mal do seu parceiro de grupo. Esta psicologia de avestruz termina atualmente em “panelinhas” que giram em torno de dois templos – a universidade e a ágora das redes sociais.
O comportamento do intelectual – muitas vezes camuflado em jornalista, professor e artista – é sempre ser um parasita do poder. O único sentido que encontrou na vida das ideias foi o de não deixar os bolsos puídos. A possibilidade de se inserir na cultura de uma determinada tradição se torna um meio de sobrevivência no mundo – e não uma forma de compreendê-lo para, enfim, transcender a realidade mundana e encontrar uma unidade permanente sobre a confusão que parece reger a multiplicidade.
O paradigma desta decisão era Hegel que, como mostra Eric Voegelin em seu fundamental estudo “Hegel: a study on sorcery” (Hegel: um estudo em feitiçaria, de 1962), foi financiado por seitas gnósticas e maçônicas, provocou uma mistura indigesta de filosofia com magia negra em sua obra, confundindo consciência com cognição, isolando o Espírito Absoluto como um processo à parte da realidade, endeusando o Estado como a única autoridade possível, na imposição de colocar o ser humano sob a tirania do progresso e do sentido imanente da História. A atitude bifronte que ele tinha perante sua vida e sua obra é a prova de como o intelectual está perto de ser um perfeito neurótico, pois sua atitude moral frente aos resultados idealistas que seus escritos deveriam ter na existência real é, no mínimo, ambígua, ao preferir sempre que os fatos se encaixassem à teoria – e nunca o contrário.
Neste ponto, o intelectual tupiniquim acompanha direitinho o seu mestre prussiano. Um exemplo disso é que, após o afastamento do PT do Poder Executivo, já surgiram imediatamente, na pauta das redações e das cátedras universitárias, o futuro das eleições presidenciais de 2018. Estava claro para os jornalistas e os intelectuais que, angustiados ao verem que o PT teria nenhuma chance de ganhar qualquer coisa nesse pleito, graças às trapalhadas em que o partido se envolveu com o Mensalão, o Petrolão e outros escândalos de corrupção sistêmica, eles só teriam como única saída apoiar algum cacique do PSDB, no caso Geraldo Alckmin, um pobre-diabo seduzido pelo poder do Estado, ou então algum partido nanico ou novato, como o Rede de Marina Silva. Não à toa, obedecendo habilmente ao esquema da “desinformação”, surgiram, nos jornais, artigos de simpatizantes do pensamento de esquerda que começaram a criticar tanto o PT como Lula como se fossem amostras de um “neo-coronelismo” que se deixara contaminar por um “conservadorismo” tipicamente brasileiro – e que seria depois representado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, sempre com a insinuação de que ele era um resto da “extrema-direita”, oriunda do regime militar.
Com isso, ficava implícito que a opção mais equilibrada seria alguém do PSDB, como se fosse uma continuação do governo Fernando Henrique Cardoso, também padrinho de alguns cargos públicos para boa parte dos jornalistas esfomeados que rondam as redações do país e que seguem à risca os ensinamentos progressistas.
A tática dos opositores que tentaram impedir o surgimento da candidatura de um Jair Bolsonaro não deve nada à habitual ausência de ética de quem já fez parte do “mundo subterrâneo” da esquerda revolucionária: grampos ilegais, arapongas, dossiês secretos, falsas acusações de crimes, uso da Justiça como meio de coerção política – e, last but not least, um atentado contra a vida do então deputado federal.
Tudo isso prova que o espectro desta social-democracia obscurantista (termos de Paulo Mercadante)diminui qualquer diferença ideológica entre os supostos inimigos, mais do que supõe a nossa vã filosofia. Graças à reação covarde dos formadores de opinião, chegamos ao ponto em que Lula e o PT foram diminuídos à classificação fajuta de “meninos bonzinhos, porém corrompidos pelo sistema”, perto da libido dominandi de Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, Marina Silva, Ciro Gomes e qualquer outro que viva segundo tal cartilha. Pula-se da frigideira para o fogo: se o governo do PT durante esses treze anos representou a revelação de um processo revolucionário que se estendeu secretamente na vida cotidiana, a manutenção de qualquer partido político na cúpula da elite política e que permaneça nessa crença progressista é semelhante a permanecer em um estado de apatia completa, no qual o Brasil ficará agonizante sem que ninguém perceba. A tal da direita, simbolizada na figura de Bolsonaro, pode ser pintada como um bicho papão, mas esta é igualmente anquilosada, caindo na mesma armadilha de um nacionalismo antiquado, transformado em bode-expiatório já na época do governo FHC. Este, por sua vez, também incentivou a trapaça do dramma giocoso na guerra cultural – e a maior prova dessa estratégia equivocada é a omissão criminosa do próprio grupo da “nova direita” que se encontra em Brasília a respeito da verdadeira guerra que importa nesse momento histórico: a da cultura.
Neste panorama insólito, em que a direita é fragilíssima e a esquerda ainda tem tentáculos demais, os intelectuais ficam de camarote, na tentativa de querer influenciar ambos os lados, conforme a sua conveniência. E se alguém vai contra a corrente desta morte do pensamento, em busca de alguma espécie de oásis neste deserto, esses mesmos intelectuais não hesitarão de banir esta pessoa do convívio humano, alegando que ela não tem “a serenidade suficiente” para fazer um diagnóstico com necessário distanciamento.
Esta paralisia do espírito é típica de quem está completamente contaminado pela síndrome gnóstica. Sempre foi assim, desde dos tempos de Santo Irineu de Lião, quando este decidiu escrever o seu grande tratado, Contra os Hereges. Christopher Dawson explica em minúcias, em A Formação da Cristandade, como a “grande obra de Santo Irineu contra os gnósticos é muito mais uma refutação polêmica dos erros dos hereges”. Trata-se de
uma defesa original e profunda de todo o plano cristão da salvação – uma filosofia cristã da história, uma teologia da criação e da encarnação, bem como uma definição da missão da Igreja como a guardiã da tradição apostólica e veículo da vida do Espírito. Contra as especulações cosmológicas e teosóficas dos gnósticos, insistia na necessidade de limites ao conhecimento humano ou mesmo da revelação cristã, uma vez que esta nunca pretendeu ser uma iniciação aos mistérios cósmicos e nas divinas teogonias. É simplesmente a história das relações de Deus com a raça humana, a paulatina educação da humanidade pelas primeiras dispensações registradas na Escritura e a recapitulação do processo da encarnação do Verbo, por quem a humanidade, finalmente, alcança seu bem-aventurado objetivo divino. Desse modo, todos os mistérios da fé são referentes às condições da natureza e do conhecimento humanos. Todos se ocupam de um único tema – a doutrina em relação à educação e à regeneração da raça humana, que é a razão da criação e do propósito da história. E já que o homem é uma criatura material, esse propósito abraça o corpo assim como a alma. O homem não é salvo do corpo, como ensinavam os gnósticos, mas no corpo. O dom do Espírito é consumado no corpo, como a obra da Encarnação foi incluída e completada na Igreja. O plano divino é realizado pelas sucessivas eras de existência física do universo em realidades concretas da natureza e história humanas.
Portanto, o que a síndrome gnóstica propõe, na prática, é a existência daqueles “homens ocos” que Eliot tanto temia – donos daqueles olhos que ninguém quer ver quando estivermos no abstrato reino dos sonhos da morte. São esses mesmos sujeitos que, isolados em torres de marfim burocráticas, intelectuais e técnicas, querem dominar o nosso cotidiano, separando a carne do espírito, e criando assim o clima ideal para a perfeita execução de uma “política gnóstica”, na qual, de acordo com Eric Voegelin, pretende alterar a natureza”, pois “pretende realizar o impossível a qualquer custo, tendo a ação política como meta absoluta”, sendo que, na sua essência, este tipo de ação “deve ser interpretada como uma doença espiritual, com o termo nosos, no sentido dado por Platão e Schelling: uma perturbação na vida do espírito que é completamente diferente de uma doença mental, se esta fosse observada usando a psicoterapia”.
A virtude do intelectual
Esta virtude essencial do intelectual – a tal da “serenidade” que divide o corpo do espírito e que, no fim, é uma moléstia, como já afirmamos no início deste texto – ocorre justamente porque ele prefere a ideia ao ser humano. Quem quer ser sereno em uma realidade onde domina a degeneração da vida espiritual é tonto ou louco. Está na hora de mandar essa serenidade para o quinto dos infernos. Numa guerra, seja contra a violência ou a estupidez, devemos saber que a traição dos intelectuais contra sua vocação moral é o estopim para o surgimento do PT, da Al-Qaeda, do Estado Islâmico e de outras psicopatias mais sutis, como as que vemos nos burocratas de terno e gravata que comandam o nosso país e das outras nações, ou o bolsonarismo agora em voga. Julian Benda e Raymond Aron têm razão: o engajamento político foi um preço muito baixo para ideologias tão castas quanto as de prostitutas que cobram três dólares por programa. Não se pode mudar a situação com um estalar de dedos, mas qualquer um com o mínimo de dignidade é responsável de avisar ao seu próximo a respeito destas síndromes gnósticas para que, algum dia, elas sejam purgadas da face da Terra pelos seus próprios erros.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015).
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