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Num ato que lembrou os recentes protestos de jogadores da NFL, vereadores negros do PSOL permaneceram sentados em seus assentos durante a execução do “Hino Rio-grandense”, o hino do estado do Rio Grande do Sul, durante a cerimônia de posse da câmara de Porto Alegre.
A controvérsia toda foi causada por um verso: “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Para os integrantes da chamada “bancada negra”, composta por membros do PT, PSOL e PCdoB, o trecho seria racista. Segundo o vereador Matheus Gomes, do PSOL, “não temos obrigação nenhuma de cantar verso que diz que o nosso povo não tem virtudes, por isso foi escravizado”. Gomes é mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição que em 2018 decidiu deixar de tocar o hino, justamente pelo suposto racismo do trecho.
Regente refém
O hino foi composto em 1838, durante a Guerra dos Farrapos, conflito que por dez anos colocou separatistas da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul contra as forças do Império do Brasil. Teria sido feita às pressas, quando os revolucionários tomaram a cidade de Rio Pardo, e sua melodia composta por um maestro negro, Joaquim José de Mendanha, regente da banda do II Batalhão de Fuzileiros do Exército Imperial, capturada pelos rebeldes do Exército Farroupilha durante o episódo, que se tornou conhecido desde então como a Batalha do Barro Vermelho pela quantidade de sangue que derramado sobre o solo local.
De acordo com algumas versões, Mendanha teria então sido obrigado por Antônio de Souza Netto, um dos líderes da Revolução, a compor a melodia de um hino para o movimento, sob encomenda de Bento Gonçalves, o principal líder separatista, enquanto era mantido como prisioneiro de guerra; já outras versões alegam que ele teria sido pago para fazê-lo, e existem indícios de que teria de fato recebido pagamentos. Depois de cinco dias ele teria entregue a melodia pronta, baseada numa valsa do célebre compositor austríaco Johann Strauss (o pai, e não o filho, conhecido hoje em dia por obras como “Danúbio Azul”), e a ela se adicionou uma letra escrita por um dos capitães rebeldes, Serafim de Alencastro.
Alterações no hino
O trecho controverso, no entanto, não fazia parte dessa primeira versão. Na verdade, ele só veio a ser incluído na terceira versão da música, feita em 1934, durante o centenário da Revolução Farroupilha.
O poeta e militar Francisco Pinto da Fontoura, dito “Chiquinho da Vovó”, foi escolhido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul para escrever uma nova versão do hino, que havia sido adotado extra-oficialmente pelos gaúchos depois do fim do conflito, e a melodia foi adaptada para a nova letra por Antônio Corte Real.
Este também nem foi o único trecho que causou controvérsia; em 1966, durante a Ditadura Militar, o hino foi oficializado pela lei 5.214/1966. O deputado Getúio Marcantonio pediu, na ocasião, que a segunda estrofe, que dizia “Entre nós, reviva Atenas, para assombro dos tiranos; sejamos gregos na glória e, na virtude, romanos”, fosse retirada.
A despeito dos rumores que diziam que o trecho incomodava as autoridades da ditadura por sua menção à democracia ateniense e a “assombro dos tiranos”, existe praticamente um consenso nos dias de hoje que o trecho foi removido simplesmente por não ter qualquer relação com a história do estado ou seu povo, que simplesmente deixava de fora o trecho durante suas execuções.
A discussão atual
A questão causou um acalorado debate no cenário político gaúcho. Para o vereador Ramiro Rosário, do PSDB, o termo “escravo” não tem qualquer relação com a escravidão dos negros, mas sim com o conceito na Antiguidade greco-romana, na qual um escravo era alguém que, ao contrário dos cidadãos livres, não tinha direitos políticos nem participava das tomadas de decisões.
Rosário menciona ainda os lanceiros negros, corpos de soldados compostos por ex-escravos libertos que participaram da Revolução Farroupilha ao lado dos separatistas, para descartar qualquer tipo de racismo na letra, e acusa os partidos de esquerda de estarem se utilizando do tema para criar um conflito ideológico.
Em entrevista para o jornal gaúcho Zero Hora, o historiador Ivo Bittencourt também aponta o problema na interpretação do termo “escravo”, que, segundo ele, estaria sendo tomado literalmente, quando na realidade estaria ali num sentido figurado: “O Hino Rio-grandense valoriza o cultivo de princípios virtuosos para que um povo se mantenha em liberdade, através da continuidade da capacidade de decidir segundo seus próprios valores. A utilização da palavra "escravo" está no sentido figurado, sendo o vício entendido como o oposto da virtude, como o fator escravizante”.
A vereadora Comandante Nádia, do DEM, chegou a pedir, durante a sessão em que ocorreu o protesto, que aqueles contrários ao hino deveriam se retirar da Câmara dos Vereadores durante sua execução: “Atitudes dessa forma desrespeitosas, de indisciplina, não estão [permitidas] aqui dentro dessa Câmara Municipal de Vereadores. Nós temos, sim, que fazer a correção dos atos para que isso não aconteça dentro da Câmara que legisla Porto Alegre.” Já Mônica Leal, do PP, apresentou um projeto de lei que tornaria obrigatório “postar-se de pé e em posição de respeito durante a execução do Hino Nacional e do Hino do Estado do Rio Grande do Sul".
Lanceiros negros
O Movimento Tradicionalista Gaúcho, uma das principais organizações que defende e fomenta as tradições culturais e históricas do Rio Grande do Sul, declarou através de sua Diretora de Manifestações Individuais e Espontâneas, Julia Graziela Azambuja dos Santos Dutra, que o trecho em questão “não tem nada de discriminatório”, e apenas “diz respeito a uma submissão da então Província de São Pedro ao Império”. Dutra, que é negra, acrescentou que “O MTG reconhece a importância dos negros e dos próprios Lanceiros Negros na revolução e na construção de nossa identidade regional. Desviar o foco dessa luta desvia o foco daquilo que deve realmente ser discutido. Enquanto a comunidade negra, na qual integrantes do próprio movimento se inserem, se prende a este tipo de polêmica, perde um precioso tempo de ser protagonista de uma nova história”.
A questão dos lanceiros negros permanece envolta numa discussão ferrenha e espinhosa, sem qualquer previsão de ser encerrada. Os farroupilhas começaram a conceder a alforria a negros quando viram que não tinham tropas suficiente para combater de igual para igual o governo imperial, mas apenas concediam liberdade aos negros dos adversários, continuando a ter seus próprios escravos.
As tropas do Império, por sua vez, responderam à criação destes pelotões — que chegaram a totalizar 10 mil homens, quase um terço do total do exército farroupilha — com a Lei da Chibata, que sentenciava todo negro capturado pelas tropas do governo servindo aos rebeldes a uma punição que poderia chegar a 1000 chicotadas.
A participação dos lanceiros no conflito culminou com um episódio trágico que ficou conhecido como o Massacre dos Porongos, no qual mais de 100 combatentes negros foram chacinados e outros tantos reescravizados durante uma emboscada das tropas imperiais. A questão até hoje desperta uma polêmica feroz. Segundo muitos autores, os lanceiros foram mortos depois de serem traídos pelo próprio general, Davi Canabarro, que, apesar de ter liderado o ataque, conseguiu escapar ileso. Diz-se que eles teriam até mesmo sido desarmados antes do massacre.
A história do compositor
Mendanha, o compositor-refém da melodia do hino, nasceu em 1801 na cidade mineira de Ouro Preto. Um mulato liberto que logo cedo foi para o Rio de Janeiro, então capital do então Reino de Brasil, Portugal e Algarve, para perseguir seu fascínio pela música, conseguiu uma vaga na Capela Real do Rio de Janeiro, onde eram realizadas as cerimônias religiosas celebradas por Dom João VI e sua família, até que com 23 anos se viu sem o emprego, depois do retorno do monarca para Portugal, e se alistou no exército, quando supostamente teria conhecido o tenente Luís Alves de Lima e Silva — futuro Duque de Caxias — de quem acabou se tornando um amigo por toda a vida.
Assumiu o posto de maestro da Banda Militar do chamado II Batalhão de Caçadores de Primeira Linha das forças imperiais no Rio Grande do Sul, deslocado sob o comando do coronel Guilherme Lisboa para combater os guerrilheiros independentistas rio-grandenses.
Depois da já mencionada Batalha do Barro Vermelho, foi capturado, como diria o relato do general Antônio de Souza Netto: “Fizemos presa de uma rica banda de música, que felizmente ficou intacta”. Depois de ser utilizado para animar os bailes dos soldados farroupilhas, recebeu a encomenda do hino, então republicano, e posteriormente estadual, que acabou por ser indissociavelmente associado ao seu nome.
Depois de passar um ano como refém dos insurgentes, conseguiu novamente sua liberdade e fixou-se em Porto Alegre, onde regeu diversas orquestras e corais, além de dar aulas.
Apesar de ter composto o hino farroupilha, nunca deixou de ser um fervoroso defensor do Império, a ponto de retornar a Rio Pardo para dar um enterro digno aos restos de seu ex-comandante, e de reger um “Te Deum” em homenagem a Lima e Silva, então ainda Barão, depois que o título de “O Pacificador” lhe fora concedido por Dom Pedro II pela vitória no conflito.
Fundou a Sociedade Musical Porto-Alegrense, e era a figura central do cenário musical da capital da província, presença obrigatória em todas as solenidades, como a inauguração do Theatro São Pedro. Em 1877, seu velho amigo imperial o homenageou com a Ordem da Rosa. Já tinha se tornado uma figura afável e quase folclórica, célebre por estar sempre vestido de maneira impecável — fato registrado numa crônica de Achylles Porto-Alegre.
Morreu aos 85 anos, em 1885, sem jamais deixar de, nas palavras do historiador Walter Spalding, deixar de ser “modesto, muito simples, espírito profundamente liberal embora imperialista”, cuja vida resumiu-se à atividade musical — embora, paradoxalmente, nas palavras do mesmo Spalding, só seja lembrado hoje em dia pelo hino, pois “tudo quanto compôs se perdeu ou perdeu sua identidade ao cair em domínio público, passando para o campo do folclore”.