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Não pensamos fácil em George Orwell como escritor cômico. Tampouco pensamos nele como um romancista em primeiro lugar, embora tenha escrito seis romances, incluindo A Revolução dos Bichos (Animal Farm) e 1984, os livros que lhe valeram a fama duradoura. Enquanto gênero, o romance reivindica um grau de irresponsabilidade e desinteresse inconsistente com nossa ideia do homem que criou a Sala 101. [Trata-se da sala de tortura do Ministério do Amor em 1984. (N. t.)]
Os dois romances cômicos de Orwell da década de 1930, Keep The Aspidistra Flying (1936) e Um pouco de ar, por favor! (Coming Up For Air) (1939), lembram como o impulso satírico era essencial ao seu anti-totalitarismo. E ainda que tenham sido publicados com um intervalo de apenas três anos, esses romances mostram a transformação de Orwell em profeta sombrio enquanto a Inglaterra se preparava para a guerra com a Alemanha. [O primeiro romance recebeu pelo menos três títulos no Brasil: Mantenha o sistema, Moinhos de vento e A flor da Inglaterra. (N. t.)]
Talvez as nossas dificuldades em aceitar Orwell como um humorista comecem com o seu rosto. O George Orwell que nos encara das capas de livro é grave e sério, usando um casacão duro, cinza e marrom, sob a face comprida e sorumbática, de magreza ascética e opressa pelo peso do conhecimento indesejado. Tal é o Orwell icônico e global, o que foi lido por dissidentes na Birmânia e no Irã. É claro que Orwell era sério, no sentido fundamental de preferir uma realidade nefasta a uma ilusão reconfortante. Ele atribuía a si próprio o crucial “poder de se defrontar com fatos desagradáveis.”
Orwell desconfiava do prazer e sobretudo do conforto. A decisão axial da sua vida foi declinar a bolsa em Oxford que o admitiria na elite da Inglaterra e preferir um posto nada promissor como oficial de polícia colonial na Birmânia. As escolhas que ele fez depois disso – levar uma vida de vagabundo, duro feito um coco nas ruas de Paris e Londres; lutar pelos republicanos na Guerra Civil Espanhola; e, por último, dar as costas aos ex-camaradas da esquerda stalinista – parecem todas uma coda da primeira.
Como um contrapeso para essa integridade pétrea, o humor era essencial para Orwell, não como uma mera forma de alívio, senão como um aspecto do seu realismo. Seus escritos sobre chá são em si mesmos um compêndio cômico. Ele levava o chá muitíssimo a sério (“o chá é uma das bases da civilização neste país”), o que ele entendia ser engraçado como qualquer obsessão trivial. Estava perfeitamente disposto a morrer pela República Espanhola e quase morreu, mas passou por grandes penas (ou fez sua mulher passá-las) para conseguir que chás decentes fossem enviados à frente de batalha. Quinze anos depois, enquanto morria de tuberculose num hospital londrino, o seu último presente, enviado pelo amigo Paul Potts, era um sachê de chá que ele não viveu para tomar. Em A Nice Cup of Tea [Uma boa xícara de chá], Orwell afeta uma rigidez doutrinária quanto ao preparo adequado, escrevendo com uma ironia tão leve que passa despercebida fácil. (“Estes não são os únicos pontos controvertidos a surgirem em relação ao ato de beber chá, mas bastam para mostrar como a coisa toda se tornou sutil.”) É um tipo complexo de humor, ao mesmo tempo alerta e tolerante quanto à excentricidade humana – o que somos tentados a chamar de humor do liberalismo democrático, exceto pelo fato de que é abundante na literatura russa também. É o humor que celebra a parte de nós que o Estado nunca pode alcançar.
De modo adequado, a incapacidade de Gordon Comstock de se servir de uma xícara de chá em seu quarto sem os truques de Philbyish, uma prática proibida por sua senhoria, é uma das suas maiores humilhações em Keep the Aspidistra Flying, o romance semi-autobiográfico de Orwell sobre etiqueta e pobreza no mundo das letras: “Gordon foi até a porta, empurrou-a um pouquinho e escutou. Nenhum som da Srª. Wisbeach. É preciso muito cuidado; ela era bem capaz de se espreitar escada acima e pegá-lo em flagrante. Esse jeito de fazer chá era uma grave ofensa à casa, mais ou menos como trazer mulheres para dentro.”
Keep the Aspidistra Flying é uma espécie de anti-bildungsroman: a história de Comstock, um jovem poeta pobre de Londres que “fez do seu propósito especial não ter sucesso.” O romance começa depois de Gordon desistir de seu emprego como publicitário, o que previsivelmente o leva a uma queda do seu padrão e ao que ele acredita ser a determinação definida de sua namorada, Rosemary, de não dormir com ele até ele melhorar. Não é que Gordon não entenda a sua relutância. “Você não vê que toda a personalidade de um homem está atrelada à renda?”, pergunta a ela. “A personalidade dele é a renda dele. Como pode ser atraente para uma moça quando não tem dinheiro?”
Gordon odeia os jovens bem-sucedidos que entram na livraria. “Essas jovens bestas endinheiradas deslizam tão graciosas de Cambridge para as resenhas literárias.” A pobreza se insinua em cada aspecto de sua vida, em parte porque Gordon, com sua sensibilidade de poeta, é tão permeável. Ele é o tipo de reclamão incansável que leva tudo para o pessoal. “Num país como a Inglaterra”, observa ácido, “é mais fácil ter cultura sem dinheiro do que entrar para o Clube de Cavalaria sem dinheiro.”
O segundo volume de poesia de Gordon, no qual ele nunca tem tempo para trabalhar, se chama Prazeres de Londres – uma piada sutil com um homem que tem dificuldade para encontrar prazer no que quer que seja. Não há nada que de fato o impeça de escrever – exceto o seu próprio ódio curtido. No começo, sua indignação é engraçada; depois, cansativa. O autor corre um grande risco ao pedir que nos identifiquemos com alguém tão tedioso. (Uma versão cinematográfica da Aspidistra de 1997, estrelada pelo travesso Richard Grant, corrige algumas das falhas do romance aliviando o tom e dando a Gordon um pouco mais de energia.) Gordon representa o relato masoquista de Orwell sobre o jovem que ele por pouco escapou de ser.
A sátira amarga da Aspidistra com certeza foi, em termos psicológicos uma postura defensiva de Orwell – em particular, uma resposta ao problema do sexo numa sociedade puritana. O sexo é ao mesmo tempo santificado e, no aspecto físico, tido por indecoroso, o que cria uma forma especial de dissonância cognitiva. Gente sem humor tende a ser gente sem sexo; ou, nos extremos da opinião boêmia ou vanguardista, profundamente interessada nos aspectos sensuais do sexo enquanto nega espalhafatosamente sua validade cultural e moral.
O problema de Orwell com sexo era tanto um problema do seu tempo e espaço quanto um problema dele próprio. Tivera o azar de ser ao mesmo tempo sexualmente ávido de incompetente com as mulheres. Era improvável que fosse um belo espécime físico, muito alto e magro, com cara de velho desde jovem e um bigode algo sinistro. Suas roupas em geral eram erradas, não apenas fora de moda, mas com mau caimento e, quando jovem e muito pobre, nem sempre limpas. Em tempos mais licenciosos, um homem com sua argúcia e gentileza básica poderia dar um jeito de encontrar satisfação sexual, mas na Inglaterra dos anos 20 e 30, sexo sem casamento era difícil para homens sem boas perspectivas.
Orwell não se via só como feio, mas também fisicamente ridículo. Gordon Comstock é descrito em termos análogos: “Do vidro empoeirado, sua própria cara o olhava de volta. Não era uma boa cara […], já carcomida. Muito pálida, com linhas amargas inerradicáveis […], um queixo pontudo e pequeno […]. Cabelo cor de rato descabelado […]. Ele odiava espelhos nos dias de hoje.”
A vergonha corporal de Orwell, redobrada pelo que ele deve ter sentido algumas vezes como uma falta de continência e auto-respeito ao lidar com as mulheres, era um poderoso tema para sátira. Ele entendeu que um homem com a aparência nada heroica de Gordon poderia ser torturado pelo seu criador sem a reprovação do leitor.
Contemporâneo exato de Orwell, Evelyn Waugh (também nascido em 1903), teve êxito como um romancista cômico num nível não alcançado por Orwell, e a comparação é instrutiva. Waugh tinha várias vantagens sobre Orwell. Foi uma das “coisas jovens brilhantes” da Londres do pós-guera e portanto teve a segurança de um insider. Quanto a Orwell, a dor de não ter os pais corretos, não ter dinheiro bastante e nem saber os jeux d’esprit que só essas duas coisas permitem, impossibilitou-lhe o tom leve, brilhante e desalmado que Waugh assumiu tão bem. O destino de Tony Last (de A Handful of Dust, de Waugh), o aristocrata decente porém incompetente que é capturado e forçado a ler Dickens para um taberneiro analfabeto e tirânico, é algo engraçado; em Aspidistra, os sofrimentos mais prosaicos de Gordon Comstock cortam mais fundo porque o reconhecemos como o do próprio Orwell. [Eis um testemunho de diferença cultural: entre os anglófonos, a tristeza e a amargura são associadas à pobreza, coisa bem diferente no Brasil. Essa diferença cultural irritava bastante os comunistas daqui, que não encontravam sentimentos revolucionários no povo. (N. t.)]
Embora tenha sido escrito apenas uns anos mais tarde, Um pouco de ar, por favor! é um romance muito mais negro. A começar pela epígrafe, tomada de uma canção popular: “He’s dead, but he won’t lie down.” O romance conta a história da sacada de George “Gordinho” Bowling de que, embora tenha só 45 anos, sua vida emocional e sentimental já tinha acabado. [Lie down tem duplo sentido: ficar deitado e submeter-se. Daí: “Ele está morto, mas não vai ficar deitado”, ou “Ele está morto, mas não vai se submeter.” (N. t.)]
“Sou um tipo de gordo alegre e fortinho", Gordinho nos conta. “Um camarada como eu é incapaz de parecer um gentleman […] vocês imediatamente me tomariam por algum tipo de panfleteiro.” Orwell tendia a pensar nas pessoas como tipos; em A caminho de Wigan (The Road to Wigan Pier) (1937), os carvoeiros são feitos de modo que pareçam exatamente iguais. A individualidade, segundo pensava Orwell, era justo o que se negava à classe trabalhadora inglesa. Ainda assim, há algo irreprimível em Gordinho Bowling. A especificidade de suas memórias de infância e a excentricidade de suas afeições fazem dele um indivíduo.
No começo do romance, Bowling, um corretor de seguros de meia idade, ganhou algum dinheiro numa corrida de cavalos, e começa uma viagem extravagante para visitar Lower Binfield, uma cidade nas Terras Médias onde crescera como filho do comerciário. Ao chegar, porém, acha o local irreconhecível. Por acaso, encontra uma ex-namorada, mas agora ela está exaurida pelo tempo e pela labuta, e o cumprimenta como a qualquer cliente (“Procurando um cano, senhor?”). Sua decepção final é descobrir que a roça aonde ele ia pescar quando criança dera lugar a construções, e o lago particular do qual ele pretendia desfrutar tinha virado um depósito de lixo. Durante da viagem, a guerra iminente se intromete, e a ameaça se torna real quando uma bomba cai acidentalmente na cidade, matando uma mulher do local. Quando Bowling volta para casa, descobre que não consegue compartilhar essas experiências nem o seu significado com sua mulher, Hilda, que ele vê como sem empatia nem imaginação. Resolve mentir quanto à viagem e prefere correr o risco de ela achar que ele foi visitar uma amante, em vez de tentar dividir com ela algo de sua vida interior.
O humor se funde com a elegia quando Orwell nota o fim da Inglaterra de sua juventude. Todos nos tornamos Gordinho Bowling quando o mundo de nossa infância vai embora, substituído por um outro que tendemos a olhar com desconfiança. Ninguém cuja vida dure morre no mesmo mundo em que nasceu, e os avanços tecnológicos em aceleração tornaram esse processo ainda mais desorientador. A nostalgia de Gordinho é a reação mais comum a essa perda, e provavelmente a mais inofensiva. Ao fim de Um pouco de ar, por favor!, sentimos afeição até algo parecido com amor por esse homem, o qual poderíamos conhecer ordinariamente em nossa porta tentando nos vender algo que não queremos comprar. Há uma doçura no romance de Orwell, uma beleza abandonada. Bowling parece bom o bastante, quando pensamos no que veio depois dele. Ele é amável porque é um homem; ele é um homem porque é um indivíduo; e ele é um indivíduo porque seus apegos e memórias assim o fizeram.
© 2022 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.