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Declínio

O Império Americano está com os dias contados?

Bandeira americana em frente ao capitólio traz os dizeres RIP (descanse em paz): os Estados Unidos podem estar em declínio, mas seu papel como exportador de valores democráticos segue mais importante do que nunca
Bandeira americana em frente ao capitólio traz os dizeres RIP (descanse em paz): os Estados Unidos podem estar em declínio, mas seu papel como exportador de valores democráticos segue mais importante do que nunca (Foto: EFE/EPA/JUSTIN LANE)

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“É um dos truísmos da história que impérios erguem-se e caem”, pontua Niall Ferguson, em seu Colosso - ascensão e queda do império americano. Admitam os EUA ou não, há um imperialismo americano e é impossível ignorar que os “dilemas enfrentados pela América hoje têm mais em comum com aqueles enfrentados pelos últimos césares do que com os enfrentados pelos Pais Fundadores”, diz.

Declínio moral, inflação, dívida pública, desigualdade econômica, corrupção, gastos em expansão militar, proposta de congelamento de preços, fissuras culturais e políticas: as mesmas tintas que pintaram a queda do Império Romano em 476 d.C. podem ser usadas para retratar a América atual, e encarar esses sinais como simples clichê de “declinismo” pode ter um preço alto. “Não é sensato manter a ficção de que existe algo completamente único quanto à política externa americana”, acentua Ferguson.

A crítica tem razão de ser. No livro O futuro da América, Simon Schama conta que quase todas as pessoas que ouviu em sua jornada através da história americana “mais cedo ou mais tarde, invocaram Jefferson ou DuBois, Teddy Roosevelt ou FDR [Franklin Delano Roosevelt], Reagan ou Hamilton, como se não houvesse nenhuma distância entre eles e os YouTubers, o que, em longo prazo, não há. É como se, nos momentos mais urgentes da decisão americana, o tempo histórico se dobrasse sobre si mesmo e todos os seus protagonistas formadores estivessem lá, como um coro fantasmagórico, para testemunhar e instruir”.

Esse “hábito da história na América” confere um otimismo, como o descrito por Schama: “por pior que seja a perspectiva, é impossível pensar nos Estados Unidos em um beco sem saída”. “Isso também os Pais Fundadores esperavam: que nada estivesse além da reinvenção americana, exceto sua Constituição, que também, é claro, poderia ser alterada. Mas se o país sair correndo dos portões de suas várias calamidades com um senso de renovação nacional impelido pelo fogo, será porque seu povo se baseia incessantemente nas vidas e sabedorias de seus ancestrais.”

Mas é preciso olhar para a História. Se a experiência de Roma é a primeira que emana quando se pensa em queda de império, os Estados Unidos espelham bastante a Grã-Bretanha de um século atrás, na opinião de Naill Ferguson. “Os americanos preferem tirar lições da história dos Estados Unidos, mas pode ser mais esclarecedor comparar o país com seu antecessor como hegemônico global anglófono, pois os Estados Unidos hoje em muitos aspectos se assemelham à Grã-Bretanha no período entre guerras”, analisa o escritor.

Guerras, crises financeiras, pandemia (de gripe espanhola) e uma “montanha de dívidas” marcavam a nação britânica na primeira década do século XX. “Embora o país continuasse sendo o emissor da moeda global dominante, não era mais incomparável nesse papel. Uma sociedade altamente desigual inspirou políticos de esquerda a exigir redistribuição, se não socialismo total. Uma proporção significativa da intelectualidade foi além, abraçando o comunismo ou o fascismo”, enumera Ferguson.

Economia em crise 

Os problemas econômicos da América pipocam no noticiário. No início deste ano, a dívida pública dos Estados Unidos ultrapassou US$ 30 trilhões, pela primeira vez na história, segundo dados do Departamento do Tesouro. O aumento foi de quase US$ 7 trilhões em relação a janeiro de 2020, pouco antes da pandemia. Na tentativa de conter a pior inflação dos últimos 40 anos, o Federal Reserve (Fed), Banco Central dos Estados Unidos, elevou em 0,5% ponto percentual as taxas de juros, maior aumento em mais de duas décadas.

Em maio, senadores do Partido Democrata propuseram um projeto de controle de preços, proibindo que empresas com receitas iguais ou maiores que US$ 100 milhões vendam produtos ou serviços “a um preço exorbitante”. A medida lembra o dito dos Preços Máximos, do imperador romano Diocleciano, no ano 301, que resultou em uma desastrosa escassez de produtos e serviços.

Ameaça chinesa 

O avanço da China - que pode ultrapassar o PIB dos EUA em alguns anos, caso o cenário se mantenha - tem efeitos que já começam a ser sentidos dentro do próprio “quintal”. De acordo com uma análise feita pela agência de notícias Reuters, a China cresceu em termos comerciais em grandes áreas da América Latina, ampliando sua diferença em relação aos EUA, desde que Joe Biden assumiu a presidência do país. A agência analisou dados de 2015 a 2021 e constatou que, tirando o México, a China ultrapassou os EUA na América Latina em 2017 e ampliou essa diferença no ano passado.

Segundo o levantamento, as importações e exportações entre países latino-americanos e a China chegaram a quase US$ 247 bilhões em 2021 (em 2015, eram menos de US$ 175 bilhões). Já com os EUA os fluxos comerciais totais foram de US$ 174 bilhões no ano passado (contra quase US$ 195 bilhões em 2015).

Se há um consenso entre republicanos e democratas, afirma o filósofo e economista Francis Fukuyama, é que a China representa uma ameaça aos valores democráticos. Nesse sentido, ele defende que Taiwan (cobiçada pela China) deve ser um teste mais profundo para a política externa americana que o Afeganistão.

Niall Ferguson concorda com o risco de uma “guerra desnecessária”, envolvendo Taiwan, da mesma forma que Churchill considerou a Segunda Guerra Mundial, que poderia ter sido evitada caso as democracias ocidentais tivessem tomado medidas mais decisivas no começo dos anos 1930. Para o historiador, a China não é imparável, assim como não eram Alemanha, Itália e Japão.

“Se a dissuasão americana falhar e a China apostar em um golpe de Estado, os Estados Unidos enfrentarão a dura escolha entre travar uma guerra longa e dura – como a Grã-Bretanha fez em 1914 e 1939 – ou desistir, como aconteceu em Suez, em 1956”, projeta.

Pressão externa ou implosão? 

Autor do famoso ensaio O fim da história, Francis Fukuyama, está entre os que defendem que o pior inimigo dos EUA está dentro e não além-território. “As fontes de longo prazo da fraqueza e do declínio americanos são mais domésticas do que internacionais”, afirma. Para ele, o país não recuperará (nem deveria aspirar) seu status hegemônico, mas pode seguir como uma grande potência “por muitos anos”. O grau de influência global, porém, vai depender mais da capacidade de resolver problemas internos do que da política externa.

“A sociedade americana está profundamente polarizada e tem achado difícil encontrar consenso sobre praticamente qualquer coisa. Essa polarização começou em torno de questões políticas convencionais como impostos e aborto, mas desde então se transformou em uma luta amarga sobre identidade cultural. A exigência de reconhecimento por parte de grupos que se sentem marginalizados pelas elites foi algo que identifiquei há 30 anos como um calcanhar de Aquiles da democracia moderna. Normalmente, uma grande ameaça externa, como uma pandemia global, deve ser a ocasião para os cidadãos se reunirem em torno de uma resposta comum; a crise da Covid-19 serviu para aprofundar as divisões da América, com distanciamento social, uso de máscaras e agora vacinas sendo vistas não como medidas de saúde pública, mas como marcadores políticos”, pontua Fukuyama.

Esse imperativo de “recuperar o senso de identidade nacional e propósito”, defendido por Fukuyama, faz eco ao que Simon Schama afirma sobre a necessidade de “cuidar uns dos outros” no “infortúnio compartilhado”, como uma condição para a manutenção da sociedade americana. “A independência americana não será ameaçada pela interdependência americana”, defende.

Schama ressalta que “a história americana sempre foi um diálogo entre a fé ilimitada no individualismo heróico de Jefferson e as obrigações de comunidade mútua expressa por Lincoln e Franklin Roosevelt”. Aliás, construir “um propósito comum sobre a obstinação do seccionalismo” era, à época em que escreveu o livro, uma das esperanças do autor sobre o recém-eleito Barack Obama — o que, o tempo mostrou, acabou não se concretizando.

Declínio moral 

Além da polarização, o declínio moral também pode ser um fator que impulsione a implosão americana. No ano passado, o país superou, pela primeira vez na história, 100 mil casos de overdose por drogas em um período de 12 meses.

Em seis estados (Alasca, Colorado, Nova Jersey, Novo México, Oregon e Vermont) e no Distrito de Colúmbia, o aborto é legal em todas as fases da gestação.

Em seu clássico Declínio e queda do Império Romano, Edward Gibbon atribui ao cristianismo um papel na queda de Roma. Nos EUA a religiosidade em queda - quase um quarto da população declarava não ter filiação religiosa em 2018 (em 1972, o percentual era de 5%) - também deixa antever suas consequências.

No começo dos anos 1990, a ligação da identidade americana com a fé começou a se romper. “No século 21, ‘não religioso’ tornou-se uma identidade americana específica – que distingue brancos seculares e liberais da direita conservadora e evangélica”, afirma o jornalista Derek Thompson, do The Atlantic.

Em um artigo para o Spectator, o médico australiano Graham Pinn, afirma que “o declínio da religião resultou em sua substituição por mudanças climáticas, Black Lives Matter e pseudo-religiões #MeToo [movimento contra assédio e agressão sexual], enquanto o advento da Covid interferiu ainda mais nos relacionamentos normais e acentuou as visões extremistas”.

“O cânone ocidental foi baseado no cristianismo, casamento, direitos de propriedade, liberdade de expressão e democracia; enquanto sua evolução vem de mudanças graduais nos padrões éticos. A abolição da escravatura, a melhoria dos direitos das mulheres, a liberdade sexual e a eliminação da discriminação racial evoluíram nos últimos 200 anos no Ocidente. Com essa evolução, a influência tradicional do cristianismo caiu de 70% para cerca de 40%, e a probabilidade de os casais se casarem caiu de 80% para cerca de 15%. Douglas Murray, em seu livro The Slow Death of Europe [A morte lenta da Europa], comentou que, apesar de a igualdade ter sido alcançada em todas essas áreas, o ativismo exige ainda mais mudanças, mudanças que pretendem minar nossa cultura”, critica.

Democracia em risco 

No mês passado, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que, após sua eleição para a Casa Branca, foi alertado pelo ditador chinês, Xi Jinping, que as democracias estão morrendo e darão lugar às autocracias. "Ele disse que as democracias não podem ser sustentadas no século XXI, as autocracias governarão o mundo. Por quê? As coisas estão mudando tão rapidamente. As democracias exigem consenso, e isso leva tempo, e você não tem tempo", revelou Biden, durante seu discurso para a turma de formandos da Academia Naval dos EUA, no fim de maio.

Biden usou a guerra na Ucrânia para argumentar que “Xi [está] errado”. Segundo o presidente americano, na tentativa de “finlandizar” a Europa o que Vladimir Putin conseguiu foi “otanizar” o continente. "Estamos vendo o mundo se alinhar não em termos geográficos - leste e oeste, Pacífico e Atlântico, mas em termos de valores. A América lidera não apenas pelo exemplo de seu poder, mas pelo poder de seu exemplo. Pense no motivo pelo qual a maioria das nações concordou em nos apoiar", afirmou Biden. "A ferramenta mais poderosa é nossa rede incomparável de alianças globais e a força de nossa parceria", disse aos presentes.

Diante do declínio do império americano, analistas acreditam mais em um mundo multipolar, o que seria um “estado mais normal” na visão de Fukuyama, do que em apenas uma nação tomando a posição de superpotência. Nesse novo contexto, ele afirma que os EUA seguem tendo um importante papel: “sustentar, com países que pensam da mesma forma, uma ordem mundial amiga dos valores democráticos”.

Olhando para a História e para um possível confronto com a China por Taiwan, Niall Ferguson alerta para o risco de que o declínio da América não seja tão pacífico. “Talvez seja hora de encarar o fato que Churchill entendeu muito bem: o fim do império raramente é um processo indolor”.

A respeito do futuro da América, Simon Schama, o historiador inglês que gosta de ressaltar que passou mais da metade da vida nos Estados Unidos, é mais otimista. “Ainda quero que as coisas corram bem para este país e para aquela parte cada vez menor do mundo que olha para ele, apesar da evidência de sua decadência e quase colapso, em busca de inspiração e renovação. E apesar de tudo que minha cabeça sabe, meu coração diz que talvez ocorra.”

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