No conto “Good People” [Pessoas boas], de 2007, o escritor David Foster Wallace nos mostra a consciência atormentada de um cristão cuja fidelidade ao Evangelho é posta à prova pela reverência que ele presta à autonomia. Querendo ou não, Wallace expressa o dano causado pela ideia da escolha perfeitamente deliberada – o dogma do consentimento absoluto.
Os protagonistas de “Good People” são estudantes universitários com alguma boa vontade. Eles não conseguem se livrar da sensação de que, ao tramarem o aborto do filho que sem querer conceberam, estão exercendo o papel de antagonistas de Cristo. Criados sob o regime da autossoberania — que Patrick Deneen descreve como “uma das mentiras mais danosas” do nosso tempo — eles percebem o vácuo e a violência da decisão. E são incapazes de repetir o coro terapêutico de termos da novilíngua como “direitos reprodutivos” e “meu corpo, minhas regras”.
A história começa com um silêncio efervescente. Sobre uma mesa de piquenique às margens de um lago, em silêncio, Lane A. Dean, Jr. e sua namorada, Sheri, não dizem o nome do procedimento a que ela se submeterá. Mas tudo o que os cerca – o “buraco no chão” o “elmo submerso” que “dispersa células pela água” — são sinais de um feto prestes a ser assassinado. Mais assustador do que tudo é o coração de Lane, porque apesar de “saber que está errado, saber que algo estava sendo exigido dele”, ele se mantém indeciso quanto ao que é “certo e verdadeiro”, fingindo que essa decisão é para “o bem da namorada”.
Lane conhece bem a coerção. Na faculdade, ensinaram a ele uma versão diluída da frase de Jean-François Lyotard, segundo a qual “a persuasão também é violência e supressão”. Quando Lane “entrega a questão a Jesus Cristo, em oração”, ele se vê como um jogador de beisebol, “envolvendo o punho com a outra mão e o girando devagar como se ainda jogasse, moldando a luva para permanecer atento e alerta”. Nesse dia às margens do lago, porém, esse gesto lhe parece “cruel e indecente” – aparentemente ele teme que a visão do punho fechado signifique coerção.
Ele acalma temporariamente sua consciência prometendo a ela companhia. Lane “garante a ela mais uma vez que a acompanhará e estará lá com ela”, elaborando isso como “a única coisa segura e decente” que poderia dizer. Mas Sheri ri “de uma forma infeliz que era apenas ar saindo de suas narinas”, esclarecendo que ele não poderia acompanhá-la durante o aborto; ele ficaria na sala de espera.
Pelo olhar atormentado de Lane, Sheri parece “convicta de sua fé e valores”, características que ele considerava admirável e atraente, mas que agora teme. Esse medo impede Lane de buscar aconselhamento pastoral. Esse medo o convence de que o que ele e Sheri fizeram, longe de ter sido “um ato consagrado em si”, como em “A Letra Escarlate”, foi “um pecado real e não apenas um resquício de puritanice do passado”.
O teólogo John Henry Newman diz que os princípios do liberalismo submetem, confrontam e ostracizam os princípios da fé. Almas livres defendem “direitos de consciência tais que todos devem defender o direito de professar e ensinar o que é falso e errado em questões religiosas, sociais e morais, dado que à consciência privada tudo parece certo e verdadeiro”. Se isso fosse verdade, explica Newman, por consequência “os indivíduos têm o direito a ensinar e a praticar a fornicação” – ou matar os frutos da fornicação.
Até agora movido por suas escolhas livres, Lane começa a ver – quase tarde demais – que limites à sua autonomia na verdade servem para salvá-lo. Verdades aleatórias se insinuam pela consciência de Lane, libertando-o da ideia falsa de um autodomínio que o imobiliza como uma camisa de força. Naquele momento, a possibilidade do distanciamento eterno de Deus lhe parece plausível.
Comparando a bondade de Sheri com seus pensamentos corrompidos, ele começa a refletir sobre o inferno e a danação. Antes, quanto o assunto surgiu durante um culto, ele “tolerou o inferno como se tolera um emprego que permite que você economize para fazer o que realmente deseja”. Agora, porém, ao perceber a facilidade com que mente para alguém tão cheio de fé e verdade, ele se percebe como um hipócrita que “contesta as palavras”. Ele até mesmo se pergunta como pode continuar rezando. Sem meias-palavras, Lane começa a sentir “o sabor da realidade do que pode ser o inferno”. O inferno, para ele, seria o afastamento tanto de Sheri quanto de Deus, por mais próximo que ele se veja de ambos.
Wallace sobrepõe a frieza de Lane ao “lago de fogo” infernal, que até então Lane considerava incompatível com a compaixão divina. Como Dante, Lane começa a ver o inferno como um lugar frio, não quente; como uma imobilidade que se prolonga pela eternidade: “imóveis, olhando um para o outro e percebendo algo profundamente diferente e estranho, algo que eles não conseguiam compreender, sem poder ouvir a voz um do outro nem entender suas expressões, assim paralisados, incompreensíveis e antagônicos, por toda a eternidade”.
Mas então é como se esse horror infernal passasse por uma fase de degelo cheia de ambiguidades. Assim que Lane tenta menosprezar “a realidade do que significa o inferno”, ele vê um reflexo nas águas do lago. Sob a luz do sol, “dava para ver o fundo do lago” – numa superficialidade que parece mais do que literal.
Sozinho, Lane faz mais do que “enxergar o que se passa sob a superfície” e nesse exato instante ele vivencia “uma espécie de visão” que mais tarde chamará de “um momento de Graça”. Se a história fala da consciência surpreendida entre a cultura da escolha e a ética autotranscendente cristã, então esse momento de Graça é questionável.
Já perto do fim da história, Lane imagina Sheri dizendo que “procurou a resposta dentro de si e decidiu” que “não pode fazer isso” – não pode matar seu filho. Essa conclusão surge como uma fantasia baseada mais na ficção do consentimento do que nas exigências do Evangelho. A Sheri imaginada por Lane insiste que essa decisão é só dela e que “não o obriga a nada”. Ela o encoraja a buscar sua felicidade e repetidamente garante ao pai de se filho que não está exigindo nada dele, exceto que ele “respeite o que ela tem que fazer”. O que Lane entende por Graça parece ser a liberdade de não cumprir com suas obrigações. Isto é, ele constrói um cenário no qual a escolha – desprovido do sentido de dever e da bondade inata – é a primeira e última medida pela qual ele aceita Sheri e o filho. Claro que nem a Graça nem a Lei Natural são maiores do que o livre-arbítrio, mas só há algo de bom em nossos sofrimentos se nossos sofrimentos forem livres.
Para uma consciência embalada por uma cultura de autodefinição e consentimento, a escolha, camuflada de Graça, sempre será preferível ao sofrimento real e aleatório. Ainda assim, Lane é inteligente o bastante para perceber que a Sheri que ele imagina está mentindo quanto lhe tira a responsabilidade por ela e a criança. Lane pode aprender a aceitar o peso da paternidade, uma responsabilidade que até agora ele fingia não ter nome.
Essa verdade dura é algo que nos resgata do inferno da deliberação interminável – que, como disse o filóofo Alasdair MacIntyre, é a marca registrada da teoria moral contemporânea. Devemos nos regozijar na esperança ou suspendê-la quando uma alma como a de Lane, vendo que a mãe de seu filho “não tem mais alternativas”, se pergunta pela primeira vez “por que tem tanta certeza de que não a ama”? Devemos criticar o questionamento interminável de Lane ou devemos ficar feliz por ele ter se perguntado, numa linguagem que combina com sua devoção superficial, mas que vai além do que seu coração imaturo pode entender, “o que Jesus faria?”
Joshua Hren é fundador da editora Wiseblood Books, cofundador do Honors College em Belmont Abbey e cofundador do Mestrado em Escrita Criativa da University of St. Thomas.