“Um sonho é um desejo do nosso coração”. Se é mesmo, então os sonhos revelam nossos desejos. Mas sonhos também são estranhos. São delírios do inconsciente sem a barreira da consciência. Quando a razão está dormindo ou intoxicada, o apetite assume o trono e se lança em águas nunca antes navegadas. Os sonhos geralmente reúnem porções da realidade — eles raramente são coerentes. Apesar da natureza aparentemente caótica e incontrolável dos sonhos, Freud dizia que eles revelam algo de verdadeiro que foi suprimido ou escondido. Eles são nosso eu verdadeiro.
Em geral consideramos a liberdade a capacidade de fazer o que desejarmos. Se alguém me proíbe de tomar um balde de sorvete de uma só vez, me sinto menos livre. A proibição de estacionar o carro em certos quarteirões restringe meu poder de escolha. Hamlet está limitado pelo “cânone contra a autoagressão”. Leis e tabus restringem minha capacidade de fazer o que quero, por isso não sou livre. Nesse modelo, o homem mais livre é aquele mais capaz de submeter a realidade a seus desejos. Mas para os antigos a liberdade era adaptar a alma à realidade. Eles diziam que a liberdade total é na verdade a pior forma de escravidão.
No livro VIII da "República" de Platão, Sócrates descreve como um regime passa da aristocracia para a tirania. A cada etapa, a alma e cidade se afastam do bom e racional para o mau e o desejo irracional. Desejos puros governam a cidade tirânica. Respondendo à questão de ordem levantada no começo do livro, Sócrates diz que o tirano na verdade é menos feliz do que o justo mesmo tendo o poder absoluto. O poder absoluto nada mais é do que a escravidão absoluta.
A tirania nasce da democracia. O regime democrático valoriza a liberdade e, assim, permite que todo indivíduo faça o que lhe é de direito. A cidade se orgulha tanto dessa diversidade que Sócrates a descreve como um tecido multicolorido. Mas é dessa liberdade extrema que nasce a escravidão extrema. As massas pobres exigem que o tirano tire dinheiro dos ricos. Ele o faz para agradar o povo, mas daí descobre que é mais fácil amamentar um filhote de leão do que afugentar um leão adulto. Depois de provar do néctar do poder, o tirano se volta contra o povo e expulsa todos os que se opõem a ele. Ele não poupa nem os amigos de infância, o pai ou a mãe.
Sócrates descreve isso como uma parábola da alma humana. Um homem acostumado a ceder a qualquer prazer — a liberdade absoluta, sem restrição — logo se perceberá escravo desse desejo. Ele será incapaz de analisar ou escolher a quais prazeres deve ceder. O tirano será dominado pelos seus próprios apetites. Sócrates diz: “Ele está supostamente acordado, assim como descrevemos um homem sonhador”. O desejo conduz o homem à pobreza e ruína, roubo e assassinato, mentiras e corrupção, maldade e tristeza. Apesar de fazer exatamente o que quer, o homem é um escravo. “A tirania não conhece a liberdade ou a amizade verdadeira”.
Ser capaz de fazer o que você bem entende parece uma receita certa para a felicidade. Afinal, a maior fonte de nossa tristeza é o fato de não sermos capazes de fazer o que queremos, certo? Em "A Viagem do Peregrino da Alvorada", de C. S. Lewis, Caspian e sua tripulação se aproximam de uma ilha misteriosa. Quando dizem aos marinheiros que naquela ilha os sonhos se tornam realidade, eles ficam em êxtase. Mas o entusiasmo não dura muito. Um fugitivo da ilha rapidamente os esclarece. “Tolos! (...) Ouviram o que eu disse? É ali que os sonhos — sonhos, entende? — ganham vida, se tornam reais. Não fantasias; sonhos”. Isso basta para fazer com que a tripulação dedique suas energias a sair daquele estranho inferno.
Todos já tivemos sonhos assim, não? Desejos ou caprichos que zumbem em nossa mente feito abelhas temerosas de pousar nas flores. Mas a razão manda que nos ancoremos e que nos recusemos a perseguir esses sonhos. Se todo desejo se tornasse realidade — se agíssemos puramente por desejo ou impulso — seríamos parricidas, adúlteros, saqueadores, monstros. A capacidade de moderar e controlar os desejos por meio do intelecto é o que faz do homem homem. A alma tirânica não se controla. Ela elimina as barreiras entre o pensamento e a ação e a diferença entre o assassinato na intenção e o assassinato na prática.
A alma que sempre consegue o que quer não é livre, e sim escrava. Pior, escravizada pelos próprios desejos, ela se enclausura num inferno pessoal. Não pode deixar nenhuma porta aberta. Essa é a maldição do pecador: conseguir exatamente o que você quer quando deseja não é bom. Lewis, grande estudioso de Dante e Boécio, incorpora essa ideia em "O Sobrinho do Mago". O mago come do fruto da vida e jamais morrerá naturalmente, e sua existência é horrível. “Sempre consegue o que quer, mas nunca gosta”.
Em geral não sabemos o que queremos. Talvez sacrifiquemos vinte anos de trabalho por um barco, uma bela casa e aparelhos eletrônicos, mas daí desejamos ter passado mais tempo com nossos filhos. Os políticos alienam seus antigos amigos para entrar para um grupo restrito de burocratas, mas então deseja voltar às noites de baralho e cerveja sem escândalo. O caráter paradoxal do desejo leva o homem a comer todo um saco de salgadinhos sem se satisfazer. O pecado seduz, mas abandona o homem, que se odeia. O coração é um abismo insondável até mesmo para quem o possui.
No "Inferno" de Dante, o castigo para cada círculo do inferno é proporcional e de acordo com o pecado. Cada pecador sofre por aquilo que escolheu em vida. Os adúlteros Francesca e Paulo, que adoravam olhar dentro dos olhos de seus parceiros, ficam presos a um abraço eterno. Belos e adornados mantos pesadíssimos caem sobre as costas dos hipócritas. A morte violenta em rios de sangue que eles causaram correm pela terra. Cada pecador recebe o que deseja. O castigo não é apenas fruto do pecado — é o pecado mostrando o que de fato é. O pecado é o julgamento. Os pecadores se tornam prisioneiros de um inferno de seus próprios desejos, uma prisão que eles mesmos construíram.
O inferno é realizar os nossos desejos se eles não são bons. O aluno que mente e trapaceia para conseguir uma nota mais alta recebe sua recompensa: ele se torna um mentiroso contumaz. O homem que esconde seu vício em pornografia tem a “liberdade” de continuar destruindo sua relação com a esposa. A mulher que não para de reclamar das amigas e circunstâncias se isola da gratidão, do prazer, da amizade. Assim como a virtude é sua própria recompensa, o mais castigo pelo mal é ser mau.
É tentador imaginar a alma tirânica como dotada de um poder supremo. Assim como “rico” significa alguém com mais dinheiro do que nós ou “obesidade” se refere a alguém com um IMC mais alto, “tiranos” são os escravizados por desejos extremos. Mas o inferno é impiedosamente banal. Em "O Grande Divórcio", Lewis imagina que as almas do inferno conseguem visitar o Céu. Alguém optaria por não ir? Ao descrever vários personagens, descobrimos que todos são surpreendentemente simples em seus pecados. Há um homem obcecado pela carreira acadêmica, uma mãe obcecada pelo filho, um poeta que não teve reconhecimento em vida. Mas só um pecador entre tantos morre por seus desejos. Lewis conclui que “todos os que estão no inferno o escolheram”. Eles estão presos a suas próprias escolhas e desejos. O autoengano é a única trava na porta do inferno.
O caminho para o inferno é uma descida tranquila, sem buracos nem curvas bruscas. Se um homem escravizado por seus desejos acaba envolvido num acidente de carro ou comete um homicídio culposo, ele pode despertar. Mas pecados contínuos — conversar em meios aos hinos da igreja, deixar de orar ou ler as Escrituras, preencher o tempo livre com Netflix ou entretenimento vazio — induzem o homem ao sono e o tornam cego para sua situação. Assim como alguém que provocou danos ao próprio ouvido durante anos escutando música num volume alto demais, a alma seduzida pelo mal banal é incapaz de diferenciar o barulho da música. Ainda que incapaz de perceber a bondade e beleza do mundo, ele chama essa deficiência de “liberdade”.
Assim como todos os homens reconhecem na tirania o regime mais opressor possível, deveríamos reconhecer na alma tirana a mais custosa. A alma tirana consegue o que quer, mas isso é uma maldição, não uma bênção. “Os pecadores são menos felizes se realizam seus desejos do que seriam se não os realizassem”, escreve Boécio. “Porque se o desejo pecaminoso gera tristeza, uma tristeza maior ainda surge do poder de realizá-lo, poder sem o qual o desejo infeliz não pode se tornar real”.
É por isso que, quando Deus pune um homem, ele recorre a seus próprios desejos. As escolhas ilimitadas e insubmissas à lei ou castigo não são liberdade. Os amados por Deus são por Ele disciplinados e corrigidos. Ele impõe limites como uma forma de liberdade. Isso parece contraintuitivo, mas se aplica a todos os aspectos da vida. Você não se torna um homem mais livre se conclui que as estradas são restritas demais e acaba numa vala. O piloto não pode supor que as instruções do controlador de voo são uma limitação da sua liberdade pessoal. O impulso conservador de submissão à lei e ao autocontrole é necessário para a liberdade real porque tem como objetivo o bem.
A alma aristocrata tende a realizar seus desejos de acordo com a razão e o bem. Ela se submete a uma ordem externa e nela encontra liberdade. Essa alma está disposta a ser comandada pelo bem e as limitações justas a fim de ser livre. Ela não quer dominar, e sim ser dominada. Para essa alma, os mandamentos de Deus não são um fardo, e sim um prazer. Lewis escreve que “só há dois tipos de pessoa: os que dizem a Deus que ‘farei isso’ e os que ouvem de Deus ‘você fará isso’”. A alma pecaminosa tem seu desejo realizado e, portanto, sua recompensa.
Austin Hoffman é professor de latim e humanidades na Charis Classical Academy.
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