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As luzes de alarme acenderam na Netflix. Uma queda de 200.000 assinantes durante o primeiro trimestre e 2022 e uma previsão ainda maior de 2,5 milhões para o segundo trimestre são de preocupar. A notícia sacudiu a bolsa, com uma queda de 25% no valor de suas ações. Poderá resistir ao golpe uma empresa que celebra este ano seu vigésimo quinto aniversário?
Muita água rolou desde quando, em 1997, Marc Randolph e Reed Hastings criaram a Netflix, um videoclube que enviava seus filmes em DVD pelo correio nos Estados Unidos, após solicitação das mesmas através de uma interface na internet. Com esse sistema podiam oferecer todos os filmes e séries existentes no mercado neste formato, e a empreitada era entregá-los o mais rápido possível. Seu catálogo não tinha igual, e não precisavam das lojas físicas de seus rivais, dos quais o principal era a Blockbuster, que conseguiram eliminar literalmente. Então construíram uma imagem cool, com ideias como o estabelecimento de uma cota de assinatura mensal fixa que permitia ver todos os títulos desejados, podendo-se reter até três, e a suspensão das multas pelos atrasos na devolução.
O streaming mudaria tudo, e nem sempre do modo desejado pela Netflix. No começo tudo ia bem. A Netflix se adiantou à previsível competição entregando os filmes online como ninguém, iniciando sua expansão internacional e mantendo a filosofia de seu videoclube físico com o qual conviveu. E os grandes estúdios de Hollywood tinham uma fonte de receita extra, cedendo os direitos de suas produções por um período na internet.
Mas tal situação só podia ser temporária. Os Big Five começaram a desenvolver suas próprias plataformas de streaming e paulatinamente vedariam a grife do seu produto à Netflix. De modo que, ironia do destino, seu videoclube online disporia de muito menos títulos que o físico. A Disney colocaria seu produto, que inclui o catálogo da Fox, no Disney+, e a HBO Max faria o próprio streaming com o acervo da Warner, o que implicaria dizer adeus aos super-heróis da Marvel e DC, à franquia de Star Wars e às animações da Disney e da Pixar.
Produção própria e ampliação do catálogo
A solução para a Netflix, prevista desde quando se lançaram ao streaming em 2007, passava por criar um catálogo próprio de filmes e séries atrativo o suficiente para não evidenciar o impacto dos títulos que abandonavam o seu barco – isto com a condução sob a responsabilidade de conteúdos de Ted Sarandos, copresidente da Netflix com Hastings.
Por outro lado, o investimento em produção foi pesado: em 2019, chegou aos 8 bilhões de dólares, maior do que a de qualquer estúdio clássico. Injetando muito dinheiro, conseguiram contar com títulos de prestígio (Roma, de Alfonso Cuarón, O irlandês, de Martin Scorsese, Mank, de David Fincher, em busca de um Oscar de melhor filme, contra o qual há resistência) e outros muito populares, como Alerta Vermelho de Dwayne Johnson, ou séries como House of Cards e Stranger Things.
Ademais, desenharam uma estratégia de penetração em todo o mundo, apoiando as produções locais dos novos territórios onde se buscavam se estabelecer, logrando às vezes títulos que só triunfavam não ali, como tinham repercussão global. É o caso da série espanholaLa casa de papel ou a coreana Round 6.
O perigo de não se diversificar
Mas a fortaleza da Netflix é também a sua fraqueza. Desde o princípio fixaram uma meta: a de entregar aos clientes aquilo que queriam ver em suas telas, do modo mais eficiente e rápido possível. Sua concorrência, seja a associada aos estúdios (Disney+, Hulu, HBO Max, Paramount+, Peacock) ou a outro tipo de empresa (Amazon Prime Video, Apple TV+), conta com uma diversificação do seu negócio, porque vendem banda larga, a estadia em parques temáticos, canais televisivos, produtos tecnológicos, venda de qualquer tipo de mercadoria que se possa entregar a domicilio, etc. E embora isso possa produzir dispersão na hora de concretizar e cumprir objetivos, pressupõe a vantagem de que nem todos os ovos estão na mesma cesta.
Até o momento, a Netflix conheceu o fator sorte no seu negócio; por exemplo, tragédias como o 11 de Setembro ou a pandemia de covid levaram ao confinamento das pessoas, o que impulsionou as assinaturas. Mas em algum momento o vento teria de deixar de soprar ao seu favor.
A questão
A questão reside em saber se é sustentável uma empresa cuja única receita, na atualidade, provém das cotas de assinatura e da capitalização na Bolsa. Ainda que tenha havido grandes benefícios e liquidez todos os meses, a necessidade de investir em produção própria para fidelizar os clientes volta a gerar novos gastos, o que aponta para uma bolha que poderia estourar a qualquer momento. Entre outras coisas, porque não está claro que uma pessoa ou uma família queiram manter a assinatura de várias plataformas de streaming e, na hora de fazê-lo, é mais provável que se decidam por uma associada a una marca familiar, Disney, ou que disponha de um catálogo com dilatada história (caso das plataformas associadas aos Big Five). Nessa direção moveu-se a Amazon, com a decisão de comprar o catálogo da MGM para a Prime, o que ademais lhe concede a opção de produzir em torno de franquias desse catálogo, como James Bond.
De todo modo, não parece haver espaço para todas as plataformas, e quiçá ao final acabem se conformando como pacotes desmembrados e reintegrados, onde o usuário escolha o que deseja ver de verdade, agora disperso entre as diversas opções.
Uma crise anunciada
Apesar das manchetes alarmistas, a crise da Netflix já se avistava. Mesmo que até agora a companhia crescesse em número de assinantes, alcançando um pico em torno dos 222 milhões, já se vislumbravam alguns sinais de esgotamento e de tocar o teto. De fato, nos Estados Unidos a cifra está estagnada ou em leve retrocesso faz tempo, e eram os novos mercados, como o asiático, que conseguiam maquiar ligeiramente a situação.
Para tratar de compensar a queda na receita, no começo de 2022 se anunciou a subida da assinatura mensal, o que se justificava pela necessidade de seguir oferecendo estreias únicas e memoráveis. A Netflix converteu em obrigação a apresentação de novidades com caráter de evento, o que, no fim, é um pesado encargo ao qual não se pode sempre dar o alto nível desejado, nem mesmo contratando para suas criações os melhores artistas. A decisão de encarecer a assinatura não caiu bem, tampouco o anúncio de dar passos para evitar o compartilhamento da senha de acesso da Netflix com outros usuários, o que estaria freando o crescimento da companhia.
Ante duas medida tão impopulares, não faltaram comentaristas para apontar que a Netflix estaria ganhando ares de Blockbuster, ao cair em erros similares aos de sua antiga rival. A Netflix já não é a empresa jovem de outrora, com um pequeno grupo de trabalhadores pioneiros, esperançosos como uma família com a ideia de levar aquilo adiante. Agora é uma grande corporação cujos dirigentes gostam de se comparar com time de futebol, de modo que precisam ter em cada posição o melhor. Isto é, já são como quaisquer das outras empresas da concorrência, que pensam em primeiro lugar na conta dos resultados, e não na inovação e no desejo de oferecer uma experiência única ao usuário.
Se a Netflix estivesse em uma posição de força, talvez essas decisões para gerar mais receitas não caíssem tão mal, mas agora a sensação é de fraqueza, e algumas ideias expressadas por Reed Hastings sugerem medo de não poder superar a situação: “Os que acompanharam a Netflix sabem que fui contrário à complexidade da publicidade e que sou um grande admirador da simplicidade na assinatura”, assegurava há pouco… para acrescentar que “ainda sou um fã maior da escolha do consumidor”.
Certamente, a Netflix não tem experiência na comercialização de publicidade, mas a oferta de uma assinatura mais barata do serviço com anúncios já não parece impossível.
Novas ideias
Para atrair mais público, a Netflix testou fórmulas como os realities e inclusive está esboçando a oferta de videogames. Outras formas de aumentar as receitas, mesmo que não se fale delas, poderiam passar pela venda de direitos de transmissão na TV ou de acesso por outras plataformas, e a venda a particulares em formato físico ou baixado pela internet.
Também caberia dar mais vida a suas séries renunciando à sua decisão de estrear temporadas completas e oferecer capítulos semanais, como fazem quase todas as suas rivais. E oferecer espetáculos ao vivo, sejam esportivos ou musicais.
Ainda que talvez, no fim, o destino da Netflix acabe sendo a forja de uma aliança-fusão-absorção com alguma das companhias de Hollywood que ainda não tenham uma grande plataforma de streaming, como poderiam ser a Sony, a Paramount, que está engatinhando com Paramount+, ou a Universal, com um Peacock que não foi muito além das fronteiras dos Estados Unidos.
José María Aresté é autor do livro La guerra del streaming. (Madri: Rialp, 2021).
©2022 ACEPRENSA. Publicado com permissão. Original em espanhol.