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Alguns podem considerar estranho alguém falar em “lado bom” de uma pandemia e do pânico que a acompanha. O autor de um texto que sugira isso está sujeito a ser chamado de otimista irracional ou, pior ainda, pode ser acusado de querer tirar proveito filosófico, por assim dizer, de uma verdadeira tragédia para a saúde mundial.
Trata-se, contudo, de uma consequência lógica. O coronavírus já serviu como matéria-prima de reflexão sobre o poder totalitário da China comunista, que em janeiro pôs milhões de pessoas em quarentena, transformando megalópoles em cidades-fantasmas. Depois, serviu para pensarmos esse curioso e deplorável “fetiche da peste” que nos acomete de tempos em tempos, dando origem a um abjeto desejo de purificação da Humanidade.
Agora que a doença se espalhou pelo mundo e chegou ao Brasil, disseminando consigo o pânico que já afetou desde o mercado de commodities até a bolsa de valores e obrigou o ministro da Saúde a se pronunciar, nada mais natural, portanto, do que tentar tirar deste cenário de caos (que deve se intensificar à medida que o inverno se aproxima) algo de bom.
Porque é muito provável que daqui a alguns meses quase todos nós escaparemos ilesos do que hoje parece um bicho-papão onipotente. E, do outro lado deste caos, caberá a nós, os muitos sobreviventes, encontrarmos alguma espécie de sentido e ordem.
Do pó ao pó
O lado bom do pânico em torno do coronavírus, portanto, é que ele nos obriga a pensarmos em nossa mortalidade. E aqui, sem me alongar demais, já aponto o grande paradoxo que é a necessidade de pensar em algo que está estampado todos os dias nos jornais, na TV, nas redes sociais e, de uma forma tão explícita que até anestesia, no cinema.
A morte, ainda que onipresente, nos é cada vez mais estranha. Porque, ao mesmo tempo em que estamos acostumados a um cotidiano de crimes, também nos sentimos à vontade com todo um noticiário científico que fala em velhices saudáveis, mortes cada vez mais tardias e até em delírios de imortalidade.
Somos levados a crer que a morte existe só para o outro – e um outro distante física e socialmente. Até outro dia, a morte por causa do coronavírus era algo que pertencia ao exótico mundo oriental, onde pessoas se alimentam de animais silvestres e trabalham por uma ninharia em fábricas abarrotadas de gente. A mesma coisa acontece depois de acidentes de avião e catástrofes naturais distantes. A morte, tornada notícia, pode até gerar indignação, como no caso do rompimento da barragem de Brumadinho, mas ela é essencialmente antisséptica: mais um conceito do que uma realidade dolorosa e íntima.
A ameaça de uma pandemia, mesmo que as estatísticas demonstrem não se tratar de um vírus especialmente letal, nos coloca diante do espelho e nos faz evocar Sêneca, para quem viver só tinha sentido como uma preparação para a morte. O sábio romano também dizia que viver longamente era fácil. Difícil era morrer como uma pessoa honrada.
Vida digna
O que nos leva a outra questão suscitada pelo coronavírus e as mensagens desesperadas das pessoas no Whatsapp: estamos vivendo uma vida digna? Ou nossa existência só se resume a trabalho, prazer e batalhas travadas nas redes sociais? Mais do que isso, somos seres reais ou já nos deixamos tomar por personagens? Como nossos entes queridos e principalmente nossos inimigos se lembrarão de nós?
São perguntas ancestrais que parecem fora de moda. Ri-se de qualquer busca por algum tipo de transcendência. Mesmo muitos dos que se dizem religiosos vivem numa sociedade essencialmente ateia, para a qual só tem valor aquilo que pode ser observado – categoria que não inclui, obviamente, a realidade além-túmulo.
Nem sempre foi assim. De uma forma que hoje se convencionou chamar de macabra, o homem sempre teve uma relação muito próxima com a própria morte. Estão aí os poetas e filósofos que não me deixam mentir. Mas não só eles. Cientistas, líderes políticos, anônimos esquecidos pelo tempo, todos eles foram levados pela morte, isto é, pela inabalável certeza da finitude, a deixar uma marca positiva no mundo.
Tempos de modéstia
Outro lado interessante do pânico em torno do coronavírus é que ele tem o potencial de fazer com que reconheçamos nossas limitações enquanto espécie e sociedade. Não é pouca coisa, levando em conta que chegamos a um ponto de abundância tal que não raro cedemos à tentação de nos considerarmos onipotentes.
Essa sensação de onipotência se manifesta de várias formas. Política e economicamente, por exemplo, e apesar dos muitos exemplos em contrário, ainda nos consideramos capazes de organizar cientificamente a sociedade e de planejar economias a fim de alcançar uma versão muito particular de Perfeição.
Espiritualmente, buscamos em máquinas capazes de realizar bilhões de cálculos por segundo (invenção do engenho humano) as respostas para nossas origens.
E, no que diz respeito à saúde, essa sensação de onipotência é a mesma a garantir que somos praticamente invencíveis porque dominamos o sequenciamento genético e, com isso, em breve seremos capazes de ultrapassar quaisquer limites éticos (que muitos consideram uma superstição criada por filósofos primitivos) para gerar super-humanos.
Quando, na verdade, a ciência ainda está longe de alcançar feitos aparentemente simples, como definir se um vírus é ou não um ser vivo, e de nos proteger desse “pedacinho de má notícia envolta em proteína”, como bem definiu o escritor Bill Bryson.