Quando Leonel Sánchez se bateu contra toda a zaga suíça para encontrar o gol de empate a qualquer custo, 65 mil pares de olhos o acompanhavam desde as arquibancadas. Em 30 de maio de 1962, uma quarta-feira útil transformada em feriado, o Chile começava a disputar a Copa do Mundo em seu território, diante de um Estádio Nacional lotado, e foi naquele momento que o presidente Jorge Alessandri concluiu que a grande obra de seu pai não era um elefante branco. O Chile venceria a Suíça por 3 a 1 e o colosso de Santiago ainda receberia outros nove jogos da Copa, incluindo a final.
Muitos anos antes, o pai de Jorge, Arturo Alessandri, tinha sido um dos presidentes mais destacados da história chilena. Em seu segundo mandato, que assumiu em 1932, teve de encarar um país em crise, na esteira da quebra da Bolsa de Nova York e com as exportações reduzidas a apenas 20% do que haviam sido até poucos anos antes. Entre as medidas para movimentar novamente a economia, o governo de Alessandri pai investiu nas obras públicas, e a cereja no bolo foi a quixotesca empreitada de construir o maior estádio de trás dos Andes.
Inspirado no Estádio Olímpico de Amsterdã, que havia recebido os Jogos de 1928, o novo Estádio Nacional do Chile parecia impossível de lotar. Para muitos, era um projeto faraônico para um país cujo futebol era pequeno demais – mas nada disso impediu Arturo Alessandri de cortar a fita inaugural em 3 de dezembro de 1938, apenas três semanas antes de deixar a presidência. No jogo de abertura, o Colo Colo, time mais popular do país e atual campeão chileno da época, venceu por 6 a 3 um adversário improvável: o São Cristóvão, do Rio de Janeiro, que na época era um nome bem mais prestigioso, aqui e lá fora.
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Como costuma ocorrer aos pretensos elefantes brancos, a obra precisou ser justificada com atrações de fora. Se hoje os estádios da Copa de 2014 erguidos em Manaus, Cuiabá e Brasília tentam mascarar o vazio das arquibancadas com eventuais jogos de grandes clubes cariocas, o Chile se dedicou a organizar Copas América entre seleções – e também tomou a iniciativa de inventar novos torneios para seu estádio reluzente. Dois deles marcaram época: o Campeonato Pan-Americano de 1952, uma tentativa pioneira de incluir seleções das três Américas num torneio continental, e o Sul-Americano de Campeões de 1948, embrião da futura Copa Libertadores, que seria vencido pelo Vasco da Gama – representante do Brasil como vigente campeão do Rio de Janeiro, então capital do país
Nessas competições, todos os jogos eram invariavelmente disputados no Estádio Nacional, que chegou a receber até mesmo as finais do Mundial de Basquete de 1959, vencido pelo Brasil, em uma quadra improvisada atrás de um dos gols. A Copa do Mundo de 1962 seria o pretexto definitivo para a existência da cancha, que foi ampliada e lotou assim mesmo: na semifinal entre os anfitriões e a orquestra de Garrincha, 76.594 pessoas cruzaram as catracas para ver o Chile levar 4 a 2 dos futuros bicampeões.
A memória das arquibancadas lotadas permaneceu após a Copa do Mundo, e seguiu se repetindo em outras ocasiões. O Estádio Nacional nunca deixou de ser o campo número um do país, e cresceu também como cenário mítico do futebol sul-americano: nenhum outro campo foi usado tantas vezes nas finais da Libertadores que exigiram desempate em solo neutro. Mas foi apenas em maio de 1973 que a Libertadores se decidiu ali por força de um clube chileno, quando o Colo Colo atingiu a final e acabou derrotado pelo Independiente de Avellaneda. Quatro meses depois, aquele campo ganharia uma nova história, muito mais sombria, que passou a acompanhar para sempre as memórias dos feitos esportivos – nas semanas que se seguiram ao golpe de Estado de 11 de setembro de 73, que conduziu Augusto Pinochet ao poder, o Estádio Nacional converteu-se em uma gigantesca prisão política improvisada.
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Por seus corredores e vestiários passaram milhares de prisioneiros, frequentemente capturados pelas novas autoridades a partir de tênues denúncias. Eram apontados como “guerrilheiros armados” e acusados de conspirar para matar militares, embora boa parte dos prisioneiros não tivesse qualquer militância política formal conhecida além de expressar opiniões de esquerda. Muitos não saíram com vida: na nova geografia do complexo esportivo, os homens permaneceram presos no estádio de futebol, as mulheres foram levadas para as piscinas olímpicas, as torturas ocorriam no velódromo e os fuzilamentos podiam acontecer em qualquer lugar.
Algumas estimativas apontam que até 40 mil prisioneiros tenham passado por ali em dois meses, sem qualquer processo legal, e o estádio só foi esvaziado quando a ditadura – tentando dar uma aparência de normalidade à situação do país – transferiu os arrestados para outras partes, inclusive campos de concentração no deserto do Atacama ou nas imensidões geladas da Patagônia, a fim de realizar uma partida valendo vaga na Copa do Mundo de 1974, em novembro. O jogo, uma repescagem contra a União Soviética, jamais ocorreu: os adversários boicotaram a partida e o Chile fez um dos gols mais infames de sua história – sem oponente em campo, o time cruzou o gramado e chutou a bola em um gol vazio, simbolizando a classificação por WO.
O jogo da vergonha, que nunca ocorreu, faz 45 anos em 2018 – ano em que o próprio estádio completa sua oitava década cheia de existência. Quando o Chile venceu dentro de casa a Copa América algumas temporadas atrás, seu primeiro título oficial na história, não foram poucos os jogadores que se deram conta do simbolismo da campanha celebrada ali dentro: “Há uns dias me telefonou um professor que tive faz tempo, e me disse: oxalá que no estádio palco de tanto sofrimento, onde tanta gente desapareceu, você tenha a oportunidade de nos dar uma alegria tão grande”, revelou o meia Jean Beausejour, após a conquista.
O Estádio Nacional de Santiago nunca deixou de ocupar um espaço de destaque no imaginário – político e esportivo – do continente. O campo já é, por exemplo, um dos candidatos mais fortes na corrida para receber a primeira final de Libertadores em jogo único, prevista para o ano que vem. Atrás de um dos gols, onde um setor de arquibancadas foi preservado exatamente como era quando estava lotado de prisioneiros em 1973, hoje se lê: “um povo sem memória é um povo sem futuro”. Em La Cancha Infame: a história da prisão política no Estádio Nacional do Chile (Editora Zouk, R$ 31), busco olhar para essa outra história, recordando os dias em que os gritos de gol foram substituídos por outros, e o Estádio Nacional se converteu na maior prisão política da América do Sul.
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*Maurício Brum, jornalista e historiador, é autor dos livros “Estádio Chile, 1973: morte e vida de Víctor Jara, a voz da Revolução Chilena” e “La Cancha Infame: a história da prisão política no Estádio Nacional do Chile”.
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