Numa sexta-feira, em 22 de novembro de 1963, mais ou menos na mesma hora em que o presidente John F. Kennedy preparava-se para entrar na limusine preta que iria levá-lo ao centro de Dallas em direção a sua morte violenta, outra vida estava, de forma menos dramática, chegando ao fim, no outro lado do Atlântico, na Inglaterra.
Era fim de tarde na vila de Headington Quarry, a algumas milhas de Oxford, quando um professor universitário aposentado e enfermo, tendo apenas tomado seu chá da tarde, desabou no chão do seu quarto com um estrondo.
“C.S. Lewis está morto”, anunciou F. R. Leavis para os seus estudantes de literatura inglesa na Universidade de Cambridge alguns dias depois, enquanto o mundo lamentava por Kennedy.
D. Keith Mano, ensaísta e novelista americano, então estudante em Cambridge, recorda que Leavis continuou seu breve comentário sobre a passagem de Lewis da seguinte forma: “Dizem no Times que nós iremos sentir sua falta. Nós não. Nós não vamos.”
Talvez seja falta de caridade repetir esta breve anedota, revelando as palavras de um homem honrado – e inimigo de longa data de Lewis nas teorias de crítica literária –, quando certamente não foi o seu melhor momento. No entanto, vale a pena repeti-la, apenas para ilustrar algo da forte reação, favorável ou desfavorável que C. S. Lewis poderia – e continua a evocar – de seus leitores.
Apesar da negação de alguns críticos, Lewis é reconhecido mundialmente como um notável apologista cristão leigo, um escritor de livros infantis já considerados clássicos em seu campo, um novelista e ficcionista competente e um formidável erudito literário e lógico.
Nos anos seguintes a sua morte, seus livros atraíram um número cada vez maior de leitores e são objetos de estudo crítico cada vez maior. O Cristianismo Puro e Simples (1952), por exemplo, é considerado uma das pedras angulares da literatura cristã produzida o século XX e tem ajudado a muitas pessoas a compreender a fé cristã.
Enquanto isso, a solidez de suas teorias sobre escrever histórias foi confirmada por autores de vários interesses e perspectivas como J. R. R. Tolkien e o escritor americano de histórias de terror em ascensão, Thomas Ligotti.
Lewis teve também seus oponentes e detratores, com Leavis sendo, se não o primeiro ou o último, um dos principais de seus críticos que desejaram que a reputação e a influência de “Lewis Tapa-Buracos” (tal qual o chamava Wyndham Lewis) simplesmente desaparecessem.
Hoje está claríssimo que a popularidade de Lewis se recusa a diminuir. Na verdade, aproximadamente dois milhões de cópias dos livros de Lewis são vendidas a cada ano nos Estados Unidos e no Reino Unido – seis vezes mais do que o número vendido durante a vida do autor. Isso não significa que as estatísticas por si só são a medida mais segura da grandeza de um autor, caso contrário alguns dos principais escritores de folhetins da nação seriam, por esse padrão, considerados nossos principais artistas literários.
Os valores de Lewis
Mas não, no caso de Lewis, os números refletem em grande medida o grande apelo de sua habilidade em encantar os leitores enquanto os instrui sobre as verdades e os valores essenciais que ignoramos, ou desafiamos por nossa conta e risco – “as coisas permanentes”, como as chamava T. S. Eliot.
Pois, tanto em sua ficção quanto em sua não-ficção, Lewis, como Eliot, afirmava normas como a justiça da ordem, não a anarquia; a preferência de que a mudança cultural ocorra de modo lento e orgânico; e o alto valor do costume, da convenção e da continuidade. Ele também enfatizou a importância da responsabilidade individual por suas decisões e ações; a necessidade de reconhecer o homem como uma criatura imperfeita e de desconfiar do ego humano despido, e de toda conversa utópica de que os homens são como deuses; e o abrangente imperativo de reconhecer uma ordem transcendente na Pessoa de Deus, o Autor da Alegria, conforme revelado nas doutrinas ortodoxas do cristianismo.
Na base dos principais escritos de Lewis estão a alegria divina e as verdades que o leitor reconhece como adequadas a suas percepções e concepções do que é verdade. Os trabalhos de Lewis põem em acordo a compreensão adquirida pelo raciocínio, pela experiência pessoal, pelo costume e – se alguém teve a sorte de tê-lo adquirido em alguma medida – pelo conhecimento das Escrituras.
Como um escritor bem observou em algum lugar, nos livros de Lewis, o materialista, o ateu militante e o escarnecedor ordinário sofrem por terem suas próprias armas, há muito confiáveis, de lógica, ridículo e ironia, voltadas contra eles, com efeito devastador sobre suas próprias ortodoxias e um efeito encorajador sobre quem busca a Alegria.
E como escreveu Eugene McGovern, os leitores de Lewis sentem que seu autor:
encontrou suas dificuldades e lidou com elas, que antecipou suas objeções e as articulou melhor do que poderiam. Não é demais dizer que (como já foi dito do Dr. Johnson) ele convence seus leitores de que, por mais que eles voltem atrás, ele já esteve lá antes deles e eles o encontrarão no caminho de volta, depois de ter abordado esses assuntos que mais importam e tendo pensado neles até o fim, até "o maldito e absoluto fim".
As principais obras
De todas as obras de Lewis, as coisas permanentes são discutidas e defendidas talvez de forma mais direta no ensaio O Veneno da Subjetividade e em um dos mais finos dos muitos livros do autor, A Abolição do Homem (1943). Neste último, Lewis alerta para a destruição progressiva de todos os valores por meio da educação progressista, projetada para eliminar os conceitos tradicionais de objetividade, ditando, em vez disso, a crença de que não há verdade – além do fato de que não há verdade.
Lewis começa questionando os co-autores de um único livro de gramática inglesa, que ele identifica apenas como "Gaius" e "Titius". Usando exemplos retirados de seu livro, ele ataca o que percebe como uma tendência crescente no material educacional: o de apresentar todos os sentimentos, pensamentos e conceitos morais como simples questões de opinião – todos igualmente verdadeiros ou falsos, dependendo do ponto de vista de cada um.
Lewis prossegue para achatar esse argumento, invocando o que ele chama de Tao: a lei moral natural comum a todas as culturas, que (afirma ele) se concretizou plenamente no cristianismo e que ilustra com citações de apoio no apêndice de seu livro.
Tudo isso é um desempenho barato e arrogante, afirmam os críticos hostis. A Abolição do Homem, dizem eles, é meramente o trabalho simplista de um excêntrico tradicionalista, e é baseado em uma premissa duvidosa, para começar. Pois “Gaius” e “Titius” são apenas dois autores de livros didáticos, e apresentar seus preconceitos como típicos e então destruir sua alegada posição é uma briga de espantalho em seu estado mais pobre.
Mas muitos outros críticos – entre eles um número substancial de professores de escolas públicas e professores universitários – acreditam o contrário. Eles nos garantem que, se "Gaius" e "Titius" são espantalhos, são espantalhos em cujas veias fluem sangue quente e vermelho, e que não estão nem de longe tão isolados quanto afirmam os oponentes de Lewis.
Com os seguidores desses supostos espantalhos caminhando aos milhares sob as bandeiras do esclarecimento de valores e do politicamente correto, “Gaius” e “Titius” poderiam ser mais apropriadamente encobertos pelo pseudônimo único de “Legião”, pois eles são muitos.
Tudo isso sugere que os argumentos dos críticos hostis a Lewis às vezes refletem mais um preconceito imprudente e a fanfarronice condescendente do que alguma substância ponderada.
A Abolição do Homem, de fato, foi elogiado como o melhor livro de Lewis por um estudioso ilustre como o amigo de longa data e influência do autor, Owen Barfield, e considerado um trabalho importante pelo notável pensador cristão Francis A. Schaeffer.
Da mesma forma, Russell Kirk afirmou o valor da obra, escrevendo: "Eu acredito que A Abolição do Homem é o livro de Lewis mais pertinente para nossos descontentamentos presentes."
O livro pode ser lido como uma introdução mais apropriada e valiosa aos Enemies of Permanent Things [Inimigos das Coisas Permanentes] de Kirk (1969) e os mais recentes The Closing of the American Mind [O fim da mente americana] (1987), de Allan Bloom, e A World Without Heroes [Um mundo sem heróis] (1988), de George Roche.
“Cada época tem sua própria perspectiva. É especialmente boa em ver certas verdades e especialmente sujeita a cometer certos erros”', escreveu Lewis em 1944. “Todos nós, portanto, precisamos de livros que corrijam os erros característicos de nossa época. E isso significa os livros antigos.”
Pouco sabia Lewis, quando escreveu essas palavras, que chegaria o dia em que seus próprios livros seriam avaliados como tais – e ainda mais. Para muitos leitores, Lewis é o ponto de fusão entre a crença em Deus e a sensação de alegria e admiração que experimentam ao ler Tolkien.
O legado
Desde a morte de Lewis, o mundo não viu um apologista cristão ortodoxo com tal persuasão e influência. Enquanto isso, clássicos como Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz (1942), Cristianismo puro e simples, As crônicas de Narnia (1950-56) e a fantasia científica da "Trilogia Cósmica" – Além do Planeta silencioso (1938), Perelandra (1943) e Uma Força Medonha (1945) – encontraram novas gerações de leitores e influenciaram muitos escritores.
Interpretados, por exemplo, no romance de Frank E. Piretti This Present Darkness [Esta escuridão presente] (1986), uma obra que combina algumas das percepções espirituais de Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz com um enredo apocalíptico reminiscente de Uma Força Medonha. Estes e outros livros de Lewis continuam a fornecer horas de entretenimento, instrução e alegria para milhões.
Em seu livro Cartas a Malcolm (1964), concluído pouco antes de sua morte, Lewis finalizou sua última carta ao fictício Malcolm com a promessa de uma visita iminente de fim de semana, assinando com as palavras confiantes, "Até sábado." Ou, em outras palavras, até que nos encontremos no velho Sabbath. Até alcançarmos e conhecermos o descanso de Deus.
Até aquele momento, as aparências parecem indicar da obra de Lewis o que Eliot escreveu em seu próprio poema final: "a comunicação dos mortos é pronunciada com fogo além da linguagem dos vivos."
“Pense em mim”, Lewis escreveu certa vez em uma carta, “como um companheiro de quarto no mesmo hospital que, tendo sido internado um pouco antes, poderia dar alguns conselhos”.
Aqueles em busca de orientação espiritual, ensaios cheios de ideias sobre um assunto abrangente e ficção divertida não poderiam fazer nada melhor do que recorrer aos livros de C. S. Lewis.
Parodiando o final do famoso ensaio de Evelyn Waugh sobre P. G. Wodehouse: o mundo alegre de Lewis jamais pode mofar.
Ele continuará a libertar as gerações futuras de um cativeiro que pode ser mais cinza e totalmente pior do que o nosso. Para o benefício de todos nós, ele tornou vívida A Palavra e um mundo para vivermos e nos deleitarmos nele.
James E. Person Jr., editou e escreveu para diversas revistas dos Estados Unidos. Ele é o autor de “Russell Kirk: uma biografia crítica de uma mente conservadora” e “Earl Hamner: da montanha de Walton para o amanhã”.
© 2020 Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês.
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