Isso é Brasil". Não é raro que frases como esta se destaquem nos momentos em que escândalos de corrupção estão na ordem do dia. Elas refletem a noção de que o problema é um mal crônico e generalizado no país.
Autor dos livros A Cabeça do Brasileiro e A Cabeça do Eleitor, o cientista político Alberto Almeida diz que o histórico das pesquisas de opinião revela que esta percepção é consolidada na sociedade. "Pessoas botando dinheiro em sacos de papel, dólares na cueca, mensalinho. O simbolismo destes escândalos é muito forte", diz, em entrevista à Gazeta do Povo. "Todos os políticos são vistos como corruptos."
Esta generalização, no entanto, é questionável e pode ter efeitos negativos, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem. Uma delas é a professora e coordenadora do grupo de estudos e pesquisa sobre corrupção da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Rita de Cássia Biason.
Para ela, questões em que há extremos de fragilidade institucional, como no caso dos financiamentos de campanhas eleitorais e os processos de licitação, levam a uma percepção piorada da realidade.
"Quando olhamos para isso, obviamente a sensação é de que estamos mergulhados num dos universos mais corruptos do mundo. Mas não é assim", explica Rita, para quem o Brasil não é um país de corrupção endêmica como ocorre, por exemplo, em Moçambique, em que há uma prática institucionalizada de pagamento de "caixinha" para não haver vistoria em aeroportos. "Se a corrupção fosse sistemática, não haveria instrumentos de controle", destaca.
Cidadania
Um dos fatores que contribuem para o sentimento de generalização em todos os segmentos da cultura política e social é a subjetividade do entendimento sobre o que é a corrupção. Para Rita, é necessário separar o ato do chamado "jeitinho", por exemplo.
“O que nos interessa? O jeitinho, que alguns classificam como intolerável, ou a grande corrupção? Ou o que afeta o sistema democrático, a integridade do sistema politico? A corrupção abriu uma zona cinza, que é o que gera a percepção de que estamos perdidos num emaranhado de universo corrupto”, diz.
Uma das conclusões das pesquisas de Alberto Almeida aponta para a variação na tolerância à corrupção de acordo com a escolaridade.
“Quanto menor ela for, menor a importância do tema da corrupção. O tema nunca é o mais importante mesmo para a mais alta escolarização, mas a importância sobe”, explica.
A doutora em Ética e professora da Universidade de Brasília (UnB) Ligia Pavan Baptista liga os pontos: a política brasileira é o reflexo de um descaso histórico com a educação no país. "O exercício da cidadania, que vai muito além do voto, exige educação política, informação e conscientização", diz.
"A cultura da corrupção só se desenvolve onde não há noções de ética incorporadas em nossas ações do cotidiano. Não podemos cobrar da classe política honestidade se, em nossas ações diárias, cometemos pequenas infrações que comprometem o bem comum."
Cultura corrupta
A ideia de que o Estado reflete as práticas incorporadas em âmbitos sociais mais amplos é uma questão delicada, conforme explica o antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Otávio Bezerra. "Muitas vezes, as mesmas pessoas que são extremamente críticas em relação aos comportamentos corruptos não deixam de pedir a políticos ou conhecidos dentro da administração pública para agilizarem seus processos", aponta. "As pessoas incorporaram a concepção de que o Estado serve para isso mesmo, e não é possível outra relação senão essa de conseguir viabilizar benefícios específicos."
Mas o argumento de que a prática é uma herança cultural que remonta aos tempos da colonização tem um entendimento controverso. A transferência de uma cultura do privilégio e da desigualdade para o funcionamento do Estado é reconhecida por pesquisadores, mas os seus efeitos práticos são questionados.
"Não acredito que a corrupção no Brasil seja uma herança cultural ou mesmo algo que esteja preso ao sangue do brasileiro. Seria um tipo de determinismo muito inocente e que não apresenta soluções para este problema. Penso que as causas da corrupção estão na manutenção de um padrão tradicional e personalista de se fazer política no Brasil", opina o professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fernando Filgueiras.
"Precisamos compreender que o enfrentamento da corrupção é um processo, que teve início com a democratização em 1988, e que demanda a construção de instituições sólidas."
Bezerra alerta para a noção de uma cultura de corrupção que, de acordo com ele, existe, mas não pode ser entendida como imutável. "Se entendemos cultura como um conjunto de práticas historicamente constituídas, o modo como as pessoas têm se relacionado e compreendido a administração pública, aí se pode falar em algo cultural, mas não como uma coisa que não pode ser transformada", diz.
Rita Biason destaca o aspecto institucional como o mais importante para a questão. Para a pesquisadora, a corrupção não é um caso de subdesenvolvimento e os casos em países desenvolvidos como o Japão ilustram isso. A questão é de má gestão administrativa, e o Brasil está consolidando suas instituições.
"Cultura você não supera com medidas políticas, com decretos, com leis. Cultura você supera com educação, e aí vamos precisar de mais 200 anos. Mas quando olho para processos como a urna eletrônica, a Lei de Acesso à Informação, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei da Ficha Limpa e outros sucessos saudáveis que tivemos no processo pós-democratização, obviamente vemos outra realidade. Os mitos prejudicam mais que ajudam", aponta.
Um combate permanente
São inúmeras as fragilidades comumente citadas como sendo as brechas para a disseminação da corrupção: financiamento de campanhas eleitorais, licitações, dificuldade na implementação de políticas públicas, corporativismo nos mecanismos de controle. Na opinião dos entrevistados pela Gazeta do Povo, trata-se de problemas estruturais que podem ser resolvidos. No entanto, a corrupção nunca será erradicada e o seu enfrentamento deve ser permanente.
"Em qualquer sistema político sempre há níveis de corrupção", diz o cientista político e professor da UFPR Ricardo Costa de Oliveira. "Em qualquer lugar do mundo sempre tem essa dinâmica de escândalos, de processos, sempre se corre atrás de prejuízos", ressalta o professor, que lembra de uma figura um tanto esquecida nos escândalos políticos: o corruptor.
"Para que haja o corrupto, tem que haver o corruptor e toda uma cultura empresarial que vive dependendo desta prática."
A política, uma atividade cara, permeada de interesses e formas de cooptação, além de um potencial mecanismo de enriquecimento individual, se torna um campo sempre sujeito a oportunismos. "A corrupção é intrínseca à própria política", afirma a professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Rita de Cássia Biason. De acordo com o antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Otávio Bezerra, a democracia, por mais contraditório que isso pareça, fomenta práticas corruptas por meio do processo eleitoral. "Mas a própria democracia oferece instrumentos possíveis para combatê-la", diz Bezerra. "Assim como educação, saúde, políticas públicas voltadas para o coletivo, é importante que a corrupção também seja colocada como uma preocupação permanente do Estado, não de um governo. Aí, os casos serão tratados da maneira séria como merecem, não politicamente, como vem acontecendo", explica.
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A professora da Universidade de Brasília (UnB) Ligia Pavan Baptista chama a atenção para a mesma questão. "A corrupção é o maior entrave ao desenvolvimento do Brasil", afirma, amparada pelas estimativas bilionárias do custo da corrupção para o país.
Participação
Aliada às reformas estruturais, a participação da sociedade é apontada como um meio fundamental de combate à corrupção e, ao mesmo tempo, o ponto sujeito aos efeitos mais preocupantes de uma banalização do problema.
"É visível que a corrupção afeta a legitimidade das instituições. No Brasil, afeta principalmente o Congresso Nacional e os partidos políticos. Todavia, essa desconfiança dos cidadãos em relação à política tradicional não significa a desconfiança com relação à democracia, como já foi no passado", explica o professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fernando Filgueiras.
Rita de Cássia Biason também vê a questão de um ponto de vista otimista. "Meu temor não é que a corrupção se consolide, mas que gere uma apatia da sociedade. Mas o fato de as pessoas estarem indignadas com a corrupção que se alastra é um movimento contrário à apatia", aponta. A pesquisadora reforça, no entanto, que é preciso haver punição para evitar a indiferença da sociedade.
"O maior perigo da sensação de impunidade para crimes de corrupção no país é produzir essa generalização, e, como consequência dela, uma inércia e um ceticismo em relação à esperança de que nós podemos alterar esse cenário", destaca Ligia.
Fortalecimento de instituições fez pipocar escândalos
O Brasil nunca viveu na sua história um período democrático tão longo como o atual. Desde 1989, os brasileiros podem eleger o presidente da República. Nesses anos de reabertura política, não houve ameaças de golpes e a troca de faixas entre os eleitos foi tranquila.
Em 1988, foi promulgada uma nova Constituição. O documento previu o fortalecimento de instituições que fiscalizam os homens públicos. Com isso, o país viu explodir escândalo atrás de escândalo, em todas as esferas, do vereador ao presidente.
A liberdade de expressão fez com que muitos atos escusos cometidos por agentes públicos viessem à tona, por meio da imprensa. A divulgação de esquemas de desvios de dinheiro público ou facilitações irregulares criou a sensação de que o Brasil está mais corrupto. Para o cidadão, que por muitos anos não teve acesso aos bastidores do poder, isso é um fato. Segundo o cientista político Francisco Brandão, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), à medida que as instituições de fiscalização apuram as denúncias e os meios de comunicação divulgam os casos, faz crescer a sensação de que nos últimos anos a corrupção aumentou.
“Qualquer caso de corrupção, feito com menos peritagem, pode vir à tona. Isso cria uma impressão de que há mais corrupção. O que acontece é que eles [os casos de corrupção] são mais propalados. No período da ditadura, a maior parte dos casos não era divulgada, ficava escondida”, afirma Brandão, que é o coordenador do Núcleo de Teoria da Democracia da UFPE.
Ele diz acreditar que com a democracia se tornando mais consolidada no país, a corrupção diminua. “Mas não acredito que venha a se acabar.”
O promotor de Justiça Roberto Livianu, vice-presidente do movimento Ministério Público Democrático, compartilha da mesma opinião. “O aprimoramento das instituições gera uma situação de minimização das oportunidades para essas práticas [de corrupção]. Precisamos de um Judiciário que dê respostas. É importante para reverter essa percepção de impunidade. A modernização e o fortalecimento das instituições, e o engajamento da sociedade civil ajudam no resgate da capacidade de indignação. Tudo isso é importante para fechar o cerco contra quem comete corrupção.”
Fama
Tanto Livianu como Brandão concordam que a forma como o Brasil foi fundado favoreceu a criação da fama de país corrupto. Casos de mau uso de recursos públicos, abusos de poder e nepotismo são comuns desde a época que o país era uma colônia portuguesa.
“Sempre tivemos muita corrupção. A corrupção no Brasil acontece desde o início da história do país. Desde que o Brasil foi colonizado no sistema que incentivava a perda da linha divisória entre o público e o privado. Sistema em que as pessoas vieram para cá para saquear as riquezas. Em que havia grandes jogos de interesse, uma relação absolutamente clientelista”, alega Livianu.
Brandão lembra que a cultura política brasileira passa pelo comportamento do famoso “jeitinho”, de tirar pequenas vantagens, mas afirma acreditar que a formação de uma nova cultura política serve de contrapeso para vencer a corrupção.
Números
• 96ª é a posição do Brasil no ranking de corrupção de 2017 entre 180 países.
• Pelo menos R$ 50,8 bilhões do PIB foram consumidos pela corrupção em 2010.
• 57,6 mil escolas para as séries iniciais do Ensino Fundamental e 918 mil casas populares nos padrões do programa Minha Casa, Minha Vida 2 poderiam ser construídas com essa quantia, segundo o Índice de Percepção da Corrupção 2010 – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Histórico
Relembre alguns casos que afetaram a credibilidade dos presidentes eleitos após a reabertura política:
• 1990-1992 - O primeiro presidente eleito diretamente após o fim da ditadura militar (1964-1985), Fernando Collor, foi acusado de ser beneficiado por um esquema de corrupção organizado pelo seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias. Denunciado pelo irmão, Pedro Collor, e sem apoio do Congresso, Fernando Collor renunciou ao mandato, o que não o livrou do impeachment. Ele ficou inelegível por oito anos. Foi substituído por Itamar Franco.
• 1995-1998 - O primeiro governo Fernando Henrique Cardoso ficou marcado pelo escândalo da suposta compra de votos de parlamentares para aprovar a reeleição de presidentes, governadores e prefeitos no país. FHC, popular graças ao sucesso do Plano Real – que estabilizou a moeda e controlou a inflação –, foi beneficiado com a mudança na Constituição. Cardoso tinha a maioria no Congresso, conseguiu barrar a apuração da denúncia e foi reeleito.
• 2003-2006 - Luiz Inácio Lula da Silva também enfrentou um grande escândalo em seu primeiro governo. O mensalão veio à tona quando o deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) acusou o ministro da Casa Civil, José Dirceu, de comandar o esquema de pagamento de dinheiro a parlamentares para que votassem a favor do governo. Hoje, o ex-presidente cumpre prisão de 12 anos e um mês por corrupção e lavagem de dinheiro, condenado pela Operação Lava Jato.
• 2011-2016 - Em seu primeiro ano de mandato, a presidente Dilma Rousseff viu uma série de escândalos derrubarem seis ministros, todos envolvidos em supostas irregularidades. Em agosto de 2016, segundo ano de seu segundo mandato, Dilma Rousseff sofreu impeachment, condenada por senadores por crime de responsabilidade pela prática das pedaladas fiscais – atraso de forma proposital do repasse de dinheiro para bancos (públicos e também privados) e autarquias, para melhorar artificialmente as contas federais.
• 2014-Dias atuais - Em 2014, teve início a Operação Lava Jato, um conjunto de investigações da Polícia Federal do Brasil ainda em andamento, que apura um esquema de lavagem de dinheiro que movimentou bilhões de reais em propina. Mais de cem pessoas foram presas e condenadas durante a investigação de crimes de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, organização criminosa, entre outros. Em abril de 2018, o juiz federal Serio Moro determinou a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá a 12 anos e um mês de prisão. Ele está cumprindo pena na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
• 2016-2018 – O presidente Michel Temer, que assumiu após o impeachment de Dilma Rousseff, está envolvido em casos de corrupção que estão sendo investigados. Em junho de 2017, a Polícia Federal concluiu que houve corrupção passiva de Temer e de seu assessor Rocha Loures no caso JBS, a partir de delações, conversas gravadas a ações, como a que flagrou Loures correndo com uma mala de dinheiro. A Procuradoria Geral da República apresentou denúncia contra Temer, mas a Câmara dos Deputados recusou a abertura do processo penal contra o presidente por corrupção passiva. Outra denúncia contra o presidente, por organização criminosa e obstrução da justiça, foi arquivada pela Câmara em outubro de 2017.
Temer teve o seu sigilo bancário quebrado, em março de 2018, em uma investigação que apura suspeita de corrupção nos portos. Outra investigação apontou que Temer e outros integrantes do PMDB formavam uma organização criminosa para beneficiar empresários por meio de órgãos públicos. O presidente também foi incluído pelo STF em inquérito que investiga repasses ilícitos da Odebrecht para o PMDB.