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Segurança pública

O mito do pequeno traficante inofensivo

Policial militar prende suspeita de traficar drogas durante operação contra gangues na favela da Grota, no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 2010.
Policial militar prende suspeita de traficar drogas durante operação contra gangues na favela da Grota, no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 2010. (Foto: EFE/Marcelo Sayão)

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No próximo dia 2 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. A análise do recurso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo se refere ao artigo 26 da Lei 11.343/2006, que estabelece sanções para aqueles que "adquirem, guardam, possuem em depósito, transportam ou têm consigo, para uso pessoal, drogas sem autorização".

É fato que as penalidades atualmente previstas na lei não resultam necessariamente em prisão de usuários de drogas, mas apenas em outras consequências decorrentes do processo penal. Entretanto, os defensores da descriminalização alegam que o dispositivo cria uma zona cinzenta que favorece decisões discriminatórias de policiais e juízes, resultando no encarceramento de usuários.

Em artigo publicado nesta Gazeta, expliquei como o pressuposto se baseia num mito sem qualquer sustentação científica. Não existe nenhuma fonte crível que aponte para a existência de uma quantidade razoável de usuários encarcerados pela ação do dispositivo em análise nas Cortes. Ao contrário, o mais provável é que casos como esses, encaminhados pela polícia para abertura de inquérito, terminam realmente sendo liberados pela Justiça, quando não há quaisquer outros elementos probatórios envolvidos na acusação.

A eliminação do dispositivo, pelo contrário, retiraria das polícias um instrumento importante para apreensão de pequenos traficantes, que compõem o andar de baixo da hierarquia do crime organizado.

O problema é que os ministros da Corte não parecem considerar isso um problema. Luís Roberto Barroso, por exemplo, tem repetido a cantilena do pequeno traficante inofensivo desde sua nomeação em 2013. Por trás dessa ideia, ecoam afirmações solenes de cientistas sociais sobre o impacto negativo da prisão para a trajetória de vida de jovens presos pelo comércio ilegal de drogas. Nestes indivíduos, muitas vezes réus primários, o sistema penitenciário exerceria efeito embrutecedor, reduzindo-os a mão de obra do crime organizado.

Esse tom parece estar impregnado na mentalidade do restante do STF, por mais que prefiram falar do usuário como o foco principal da votação. Isso porque a proteção explícita do pequeno traficante não é uma posição inteiramente confortável para os ministros. Portanto, é preciso demonstrar que ela será o resultado inevitável do julgamento, caso os demais votos acompanhem a tendência até o presente momento. E explicar como o mito do pequeno traficante inofensivo só servirá para retirar da prisão uma grande quantidade de indivíduos violentos e propensos ao crime.

Os efeitos da proteção ao pequeno traficante

Por mais que o debate esteja focado na ideia de descriminalização, é importante ter em mente que a legislação brasileira atual já prevê que o usuário de drogas não pode ser condenado pelo simples porte da substância. Ainda assim, muitos deles podem ser levados para a delegacia ou mesmo responder a inquéritos caso a polícia entenda que há mais elementos probatórios para sua incriminação.

O que está em jogo, portanto, é uma tentativa de estreitar ainda mais essa “porta de entrada” no sistema de justiça criminal de pessoas presas com uma baixa quantidade de drogas, sejam elas usuárias ou não. Isso significa que, a depender da decisão final das Cortes, um indivíduo não poderá sequer ser levado para a delegacia se portar uma quantidade de drogas igual ou menor do que a estabelecida pelos ministros.

A mudança, portanto, reduzirá em muito as possibilidades que agentes da lei que atuam no policiamento preventivo possam atuar para coibir o tráfico de drogas no varejo. O chamado “pequeno traficante” se encontrará em posição privilegiada em relação às polícias militares, responsáveis mais imediatas pela manutenção da ordem pública e aplicação da Lei no sistema de justiça criminal. Basta que utilize algum espaço privado como base de operações e distribua drogas para sua clientela de pouco em pouco para garantir proteção contra qualquer prisão em flagrante.

Ao contrário do que muitos progressistas defendem, isso não afeta principalmente a figura daquele usuário que não raro faz do tráfico um meio para sustentar o próprio vício. Os chamados “donos da boca” também deverão se privilegiar da mudança. Com um dispositivo protegendo a livre circulação de determinada quantidade de mercadoria, é esperado que o tráfico do varejo se pulverize.

A tendência é que se popularize ainda mais o modelo conhecido em algumas cidades brasileiras como “bolsa crack”. Nesse tipo de empreendimento, um traficante dono de uma boca de fumo ou de várias delas deixa a droga armazenada em algum imóvel dentro da comunidade ou nos seus arredores, distribuindo pequenas quantidade de drogas para vendedores que atuam na ponta. Essa arraia miúda costuma usar uma parte das substâncias para seu próprio uso, enquanto disputa a clientela na ponta do varejo.

É importante lembrar que a violência característica do tráfico de drogadas está ligada a uma configuração específica de mercado. A ausência de direitos de propriedade formais, garantias para o cumprimento de acordos e mecanismos de resolução de disputas tem sido apontada pela literatura especializada como fator que influencia diretamente a dinâmica violenta do seu funcionamento. Mas não só isso.

Existem mercados como o de ecstasy ou designer drugs, cujo funcionamento não se liga tão diretamente a uma grande quantidade de crimes violentos. Isso porque eles são do tipo coberto e fechado, isto é, as transações ocorrem em espaços privados, envolvendo uma rede restrita de pessoas que se conhecem. Assim, os mecanismos de governança informal, como recomendação, amizade, fofoca e exclusão, costumam produzir mais efeito para garantir as transações. Da mesma forma, a diminuição da importância do domínio de determinado território de comercialização reduz a disputa entre grupos criminosos rivais.

O mesmo não acontece com outras drogas ilícitas, cuja venda se organiza em mercados abertos e descobertos. Isto é, qualquer um pode ir comprar a droga em um ponto de venda que funciona sem nenhuma restrição explícita para entrada ou saída. Ninguém se conhece, não há mecanismo informal de governança para garantir as transações, o ponto de venda é cobiçado por grupos rivais e a qualquer momento a polícia pode irromper em operações.

O mercado do crack ilustra bem essa situação. A venda da droga ocorre em áreas específicas conhecidas como "bocas de fumo" ou "cracolândias", embora esses locais possam mudar de tempos em tempos. É comum que os consumidores usem a droga logo após comprá-la. A interação entre os consumidores e os traficantes é intensa e frequente, mas a alta rotatividade impede o estabelecimento de laços de confiança duradouros.

No caso do crack, muitos usuários são dependentes e o consumo é intenso, o que aumenta a exposição dos pontos de venda. Enquanto a distribuição em grande escala é geralmente controlada por um número limitado de fornecedores que se conhecem e não disputam territórios específicos, a venda no varejo está constantemente sujeita à ação da polícia, concorrentes interessados em tomar pontos de venda por meio de violência, assaltantes, ladrões e diversos tipos de vigaristas.

Esses fatores contribuem para a ocorrência ocasional de violência nas transações de compra e venda de crack, além da forma como o crédito e o débito são operados nesses mercados. Isso ocorre porque a maioria dos consumidores é pobre e o consumo da droga é caro devido à intensidade do uso. Cada sessão de consumo envolve o uso de várias pedras de crack em um ritual que pode se repetir várias vezes ao dia. Junto com a alta competitividade entre vendedores, essa cultura de consumo coloca os traficantes na posição de oferecer vendas a crédito ou por consignação, o que se torna uma bomba relógio.

Afinal, a situação de pobreza, que muitas vezes é agravada pela dependência, faz com que muitos usuários se tornem devedores sem perspectiva de pagamento. Pequenos traficantes frequentemente são obrigados a usar parte de seu próprio negócio para pagar essas dívidas ou solicitar crédito aos fornecedores. Como resultado, a falta de pagamento das dívidas, os prejuízos decorrentes da interferência de concorrentes ou mesmo a ação da polícia podem desencadear uma sucessão de cobranças que resultam em violência e mortes.

No caso da descriminalização, é esperado que a dificuldade para o combate ao tráfico de drogas no varejo resulte em maior quantidade de vendedores engajados. Tendo em vista que a maior parte da repressão ao tráfico de drogas no varejo estaria concentrada nas polícias civis, tradicionalmente deficientes em termos de efetivo e capacidade de resolução de crimes, é mais do que provável que a impunidade em relação ao crime de tráfico de drogas suba vertiginosamente.

Com mais possibilidade de incrementar as vendas e menos chances de prisão, gangues e outras organizações criminosas engajadas no comércio ilegal de drogas tendem a aumentar sua presença e poderio nas comunidades. A maior quantidade de pessoas vendendo drogas resultará em mais disputa por território, que por sua vez deverão afetar o número de mortos em confrontos relacionados ao tráfico de drogas.

Efeito mimético

Isso possui um efeito potencial desastroso para o consumo de drogas, principalmente para os mais jovens. Afinal, o homem é um animal mimético. O consumo de substâncias ilícitas está relacionado a um universo de subcultura delinquente, no qual o amigo drogado, o bandido e qualquer um que pareça ter um status de superioridade opera como modelo para influenciar os demais.

Salvo em casos de necessidades básicas, vigora a regra que eu não quero aquilo que desejo, mas aquilo que quem eu quero ser deseja. Isso vale para a roupa que se compra por causa da celebridade que a ostenta, mas também para a droga, oferecida por um parente, amigo ou pessoa da comunidade que se tem como referência. Vale ainda mais para jovens na fase de desenvolvimento da personalidade, em que o parâmetro de referência se desloca para grupos de convivência distinto das famílias. [Exemplo de pesquisa aplicada que considera a influência de pares para o uso de drogas se encontra no estudo de Angela Keyzers, Sun-Kyung Lee e Jodi Dworkin, Peer Pressure and Substance Use in Emerging Adulthood: A Latent Profile Analysis. publicado em 2020 no National Library of Medicine. ]

Essa dinâmica tem um peso maior em comunidades ocupadas por grupos criminosos, que se destacam dos demais pela possibilidade de exercício da força sem regulação externa, pelo acesso a bens de consumo de alto valor agregado e pelo reforço mútuo que dão a um padrão de comportamento que se diferencia em tudo das pessoas normais.

Nesses contextos, é comum que o jovem sem referência familiar, com baixo autocontrole ou extremamente permeável a influências externas, queira se diferenciar dos “manés” e parecer com os “maiorais”, que mandam e desmandam no lugar. Se o bandido é uma referência, a droga que ele usa ou oferece passa a se tornar um objeto de desejo, como qualquer outro. Portanto, quanto mais bandido solto, usando ou vendendo droga, quanto mais gente usando droga livremente, maior é a chance que um jovem vá querer experimentar a substância.

Pessoas boas não se metem no tráfico de drogas

Esse fato remete a outro dado que tem sido constantemente ignorado no debate. Ao contrário do que o progressismo dominante afirma, o pequeno traficante não é um indivíduo inofensivo, que não representa maiores perigos para a comunidade. Esse modo de pensar rousseauniano costuma exibir a estatística real que parcela significativa dos pequenos traficantes apreendidos pela polícia não possui antecedente criminal. Porém, esse dado é só um indício entre tantos do risco potencial que um delinquente representa para a sociedade.

Ora, toda carreira criminosa costuma se iniciar em algum momento fora da vigilância das instituições de controle do Estado, ainda mais num contexto de alta impunidade como o brasileiro. Para se ter um indicativo real do risco que determinado indivíduo representa, no mínimo seria necessário questionar se teve passagem pelo sistema educativo. Isso para não falar de outras fontes de informação que podem ser consultadas.

Em um estudo de 2012 sobre o tema, Matthew D. Phillips, professor da universidade de Albany (EUA), procurou mensurar a influência tanto do uso de drogas quanto do tráfico. Para isso, utilizou dados do Rochester Youth Development Study (RSDY), uma pesquisa longitudinal [pesquisa longitudinal é um tipo de estudo que coleta dados de um mesmo grupo de pessoas em um longo período de tempo] de jovens em situação de alto risco. O RSDY foi iniciado em 1988, selecionando 1.000 estudantes do sistema público de Rochester ao longo da vida. Considerando uma série de métodos e variáveis de controle individual, Phillips chegou a conclusões que confirmam muito do senso comum sobre o tema.

A frequência com que um indivíduo vende drogas emerge como um preditor consistente da ocorrência de ofensas violentas por parte desse indivíduo. Esse achado se mantém independentemente da forma como a violência é medida. Aumentos na frequência de venda de drogas estão associados a um maior número de episódios de violência geral, violência grave e todas as formas específicas de violência abordadas neste estudo.

Além disso, a venda de drogas é um forte indicador da participação de um indivíduo em atos violentos. No entanto, é importante observar que o coeficiente de venda de drogas não se mostrou um preditor significativo apenas no caso da prevalência de brigas de gangues. Apesar disso, é importante ressaltar que a venda de drogas enquanto membro de uma gangue aumenta a frequência prevista de violência grave e brigas de gangues por parte do participante.

A descoberta de Phillips vai ao encontro da discussão sobre o caráter intrinsecamente violento relacionado ao funcionamento de certos mercados de drogas ilegais. No entanto, também aponta para a possibilidade que o tipo de pessoa que se envolve nessas atividades colabore em muito para sua ocorrência.

Afinal, que tipo de pessoa se envolve em transações de drogas ilegais?

A bibliografia estabelecida aponta para fatores como uso frequente de drogas, estilo de vida desregrado, péssimo desempenho escolar, histórico de violência interpessoal, desestruturação familiar e pais envolvidos com o mundo do crime.

Além disso, traços de personalidade mais associados à frequência de crimes incluem baixo autocontrole, falta de empatia, entre outras desordens psicossociais. Não surpreende muito que mercados formados por pessoas assim resultarão em níveis mais elevados de violência do que outras esferas de convivência humana.

Na hora em que as polícias não tiverem mais um mecanismo para identificar indivíduos assim e colocá-los atrás das grades, é provável que muitas carreiras criminosas encontrem mais oportunidades de florescimento. A tendência é que rapidamente se acumulem vítimas pelo caminho. Essa culpa pode recair sobre os ministros do STF cedo ou tarde, por mais que pensem que não tem a pele em jogo na hora de tomar decisões desconectadas da realidade.

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