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Ensaio

O mito do progresso e as provas de que ele não tem efeito sobre o homem

Líderes populistas se tornaram uma realidade e é hora de aceitá-los como são, e não como os iluminados do pensamento gostariam que fossem.
Líderes populistas se tornaram uma realidade e é hora de aceitá-los como são, e não como os iluminados do pensamento gostariam que fossem. (Foto: Pixabay)

Logo depois da leitura de O Povo Contra a Democracia, de Yascha Mounk, e Na Contramão da Liberdade, de Timothy Snyder, permanece um incômodo que foi articulado corretamente há alguns anos pelo crítico cultural americano Christopher Lasch em seu tratado sobre as origens do populismo político, The True and Only Heaven – Progress and its critics ["O único e verdadeiro paraíso: o progresso e seus críticos"], de 1991. Trata-se da seguinte questão: como pessoas extremamente esclarecidas ainda podem acreditar no mito do progresso, mesmo com todas as evidências macabras que aconteceram ao longo do século XX de que ele não tem nenhum efeito marcante sob o comportamento humano?

Este enigma continuaria nesta segunda década do século XXI, em especial após as vitórias inesperadas de Donald Trump, do referendo do Brexit e de Jair Bolsonaro – ao menos segundo a perspectiva destes esclarecidos. De acordo com o ponto de vista deles, esses políticos jamais poderiam ser alçados ao topo da elite política porque são o oposto de tudo o que o progresso solidificou desde o seu surgimento definitivo no nosso modo de vida, ocorrido entre os séculos XVIII e XIX. Mas o fato é que eles se tornaram uma realidade e é hora de aceitá-los como são, e não como os iluminados do pensamento gostariam que fossem.

É a partir desta investigação a respeito do mito do progresso que Christopher Lasch redescobre uma tradição política que existia de forma subterrânea e que sempre se opôs silenciosamente aos ditames da ideologia liberal – o “populismo conservador” (o uso aproximado desta expressão é meu). Em The True and Only Heaven – um livro de leitura tão fundamental quanto o seu testamento, A Revolta das Elites e a Traição da Democracia, publicado postumamente em 1994 –, Lasch esclarece que o principal interesse dele não é defender o populismo dos demagogos e dos políticos hipócritas (como fazem os jornalistas e os acadêmicos que usam esses conceitos como clichês sem sentido concreto no debate público). É mostrar ao leitor que tal tipo de visão de mundo tem uma sustentação intelectual a qual nos permitiria entender melhor não só o modo como a verdadeira política é executada como também nos impediria de sermos meros serviçais do liberalismo que, apesar de supostamente defender a liberdade humana, pode se tornar uma imperceptível tirania.

O combustível para essa prisão cognitiva seria justamente a crença inabalável na religião secular do progresso. Seu dogma central é a noção indestrutível de que a história tem um sentido definido – e que ela ruma para o aperfeiçoamento moral, técnico e espiritual do ser humano. Porém, como o próprio Lasch faz questão de nos lembrar, a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, o Holocausto, a Bomba Atômica e o Vietnam são provas irrefutáveis de que o progresso jamais teve esse prestígio entre seus defensores. Mesmo assim, eles o impuseram na maioria da população ocidental – e muito menos a sociedade aceitou isso de maneira impassível. Pelo contrário: volta e meia, existem reações de reserva moral em que o “povo” resolve combater essa pseudo-religião e escolhe governantes que explicitam tal oposição de maneira evidente.

Aí surge outra pergunta instigante: e o que seria esse tal de “povo”? Para Lasch, trata-se de um conceito muito abstrato e, portanto, amplo demais para ser debatido adequadamente. O populismo que ele defende não se baseia na noção de “povo” – que, sim, pode ser deformada para as demagogias que o jornalismo progressista adora denunciar. Para entendermos melhor isso, temos de usar outro termo – o da “comunidade”. Cada nação, cada estado, cada sociedade se fundamentam, mesmo de maneira inconsciente, nas bases de uma comunidade, formada por seres humanos que assumem a responsabilidade direta por seus atos, que desejam acima de tudo manter a sua liberdade individual para continuarem a viver sem nenhuma interferência de um poder superior arbitrário – e que, acima de tudo, desconfiam da expertise de intelectuais ou de técnicos que presumem, sem qualquer espécie de consciência moral, de que a sua especialidade substitui os paradoxos do senso comum e a enorme complexidade da vida cotidiana.

O “povo” surge dessa comunidade de céticos os quais, desprovidos da proteção governamental por causa do aumento excessivo da administração burocrática em suas vidas privadas, resolvem usar do único instrumento democrático que possuem – o voto – para sacudir o ambiente político daqueles que estão confortáveis na estrutura do status quo.

O “populismo conservador” analisado por Lasch é, na verdade, um discurso político que tenta sobrepor as vantagens vitais de se viver em uma comunidade contra as ordens petrificadas de um Estado corporativista, alimentado por leis e por uma retórica hipócritas que não funcionam mais no discurso do cidadão comum. Ainda assim, nada adianta usar e abusar da “sinceridade” e da “autenticidade” na fala se o político eleito por quem faz parte da comunidade não possui coerência com o que Lasch chama de “virtude republicana”.

E é aqui que o escopo de The True and Only Heaven se torna completamente diferente do de outros defensores do nacionalismo e do populismo pasteurizados. Ao contrário de ideólogos como Steve Bannon (que se diz influenciado pela obra de Lasch, o que não é o caso, como veremos em breve) e Yoram Hazony (com seu The Virtue of Nationalism, citado inúmeras vezes pelos defensores do “nacional populismo” soberanista, tão em voga nos Estados Unidos, na Europa e até mesmo no Brasil), Lasch deixa de lado o conceito de “comunidade” para então dar uma outra perspectiva ao debate político: a do republicanismo como o fundamento para uma democracia mais saudável.

Ao recuperar a tradição longínqua (e esquecida) da “virtude republicana”, Lasch sintetiza, em poucas páginas, uma vertente de forças que arregimentam entre si as mais diversas personalidades e as mais variadas formas de pensamento. Trata-se de uma linha tênue que começa com a polis ateniense e com a república romana; desapareceu durante a Idade Média; reapareceu na Renascença florentina; voltou com força total na Inglaterra com pensadores e poetas como James Harrington e John Milton; e continuou dessa forma na França com Montesquieu e Rousseau, chegando ao seu ápice, por meio do prisma inglês, na república americana que se sedimentou após a revolução de 1776 e a criação da Constituição de 1789-91.

Para vê-la como algo contínuo, é necessário perceber a persistência de duas preocupações características. A primeira é a noção de que existem formas de equilíbrio entre os regimes de governo (a tirania, a oligarquia e a democracia, segundo a classificação aristotélica) para impedi-los de caírem na degeneração constante; isto nos leva à segunda característica – a crença de que há uma “virtude” objetiva no interior da alma humana, e que esta seria o instrumento fundamental para se chegar numa justa medida a respeito de como se deve governar. Tal virtude implicava em um desenvolvimento pleno das capacidades e das forças humanas; sem ela, o homem seria alguém completamente dominado pelas suas paixões e por seus vícios, além de ser incapaz de captar os misteriosos movimentos da graça divina nos assuntos mundanos.

Contudo, a virtude não vinha com paz – e muito menos era sua intenção trazê-la aos membros da comunidade. Pelo contrário: a sua disciplina era conquistada por meio de luta, ascese, competição, exigência, disciplina e sacrifício pessoal. Só dessa maneira que a virtude poderia ser frutificada e fortalecida em um meio social onde o debate público tinha de ser livre e espontâneo, sem nenhuma amarra dos poderes e dos potentados.

Isso não significava que o político republicano, eleito pela comunidade desgastada pela tirania arbitrária, deveria ser “virtuoso” – isto é, belo, bom e recatado. Em geral, este sujeito poderia ser alguém absolutamente implacável e resoluto – como foi, por exemplo, Oliver Cromwell na época do Protetorado inglês, ou até mesmo os condottieres defendidos por Maquiavel durante o Renascimento (inspirados, por sua vez, nos imperadores romanos). O importante aqui, segundo a tradição da virtude republicana, é que a comunidade entendesse que o Bem Comum fosse amalgamado ao respeito inerente a cada cidadão – e que o deixasse em paz para fazer o seu negócio e tocar a sua vida, sem preocupações excessivas. A “virtude republicana” surgia do embate e do caos – jamais da harmonia racionalista e artificial entre os poderes. Portanto, a vigilância devia ser constante porque a liberdade era algo extremamente frágil.

Essa noção de que a ordem da comunidade é precária será fundamental para se compreender a defesa feita por Christopher Lasch a respeito do “populismo conservador”, oriundo da tradição republicana descrita acima, como a voz autêntica da democracia. Em um trecho já célebre de A Revolta das Elites e a Traição da Democracia, ele explica que este tipo específico de populismo

defende os costumes simples e o discurso simples e direto. Não fica impressionado por títulos e outros símbolos de elevada posição social, e não fica igualmente impressionado por alegações de superioridade moral feitas sob o nome dos oprimidos. Rejeita a “opção preferencial pelos pobres”, se isto significa tratá-los como vítimas indefesas das circunstâncias, absolvendo-os da responsabilidade ou desculpando-os de seus delitos na base de que a pobreza traz a presunção de inocência. [...] Afirma que os indivíduos detêm respeito por si mesmos até que provem que não possuem esse direito, mas também insiste que eles devem assumir a responsabilidade pelo que fazem. Reluta ao fazer alianças ou ter juízos fundamentados na ideia de que “a sociedade é culpada”. O populismo é “discriminatório”, para chamar um adjetivo comum no uso pejorativo de um termo que mostra a nossa capacidade de discriminar juízos enfraquecidos pelo clima moral da “preocupação” humanitária.

A defesa acirrada do respeito, feita por Lasch, é algo que aparentemente se complementa, por exemplo, ao que Yoram Hazony argumenta em The Virtue of Nationalism (2018). Se o americano privilegia a “virtude republicana” como a base de um populismo saudável, dando forças à comunidade, o cientista político israelense dá ênfase à lealdade como o elo que liga as pessoas não só entre si, mas na formação das nações que serão, posteriormente, o sustentáculo dos seus respectivos Estados. Para um, o respeito é uma consequência da virtude; para outro, a lealdade nacional vem antes de tudo e de todos. De acordo com Hozany, este vínculo só existia porque, antes de surgirem os Estados, a sociedade ocidental foi iniciada por meio de tribos e clãs que, suspensas entre as dominações anárquica e imperial, foram obrigadas a confiar em seus membros para sobreviverem.

Ser um nacionalista, nas palavras de Hozany, não significa de forma alguma uma limitação de perspectiva política. Na verdade, seria algo muito mais amplo do que supõem os progressistas que acreditam piamente que os nacionalistas são a principal razão das guerras e das mazelas civilizacionais (e, obviamente, esquecem-se que as duas maiores moléstias do século XX – o comunismo e o nazismo – não eram essencialmente nacionalistas, mas eram, antes de tudo, ideologias de expansão imperial). Esse novo horizonte sabe reconhecer que a humanidade tem um interesse maior de, por meio da dominação anárquica, compartilhar o mundo em nações independentes e autônomas, cada uma a perseguir aspirações que são suas e que não correspondem a nenhum outro território.

É algo completamente diferente de defender um direito utópico de ter uma independência nacional. O que Hozany quer articular é a criação de um ponto de vista que pode ser benéfico nos assuntos internacionais, no qual o nacionalismo será uma espécie de sentinela contra os projetos imperiais de uma União Europeia ou então do intervencionismo americano. Essa vigia constante protegeria a sociedade ocidental dos estadistas preocupados somente com questões burocráticas e abstratas – e que não sabem quais são as reais necessidades dos cidadãos cujas vidas eles influenciam decisivamente.

Mas ser um nacionalista é mais do que ter uma perspectiva, continua Hozany. É ter, antes de tudo, uma virtude. Dentro da sua alma, ele consegue manter dois aspectos bem generosos e de maneira simultânea. A primeira seria reconhecer que há uma grande verdade e uma grande beleza nas tradições nacionais do seu país e em manter a sua lealdade a elas; todavia, também sabe que essas tradições não são a soma definitiva do conhecimento humano, pois a verdade e a beleza existem em outros lugares que não compartilham das mesmas crenças da sua nação. Isto lhe dá um equilíbrio cético que o faria respeitar a sua própria herança nacional, a ser reconhecida como o produto de uma história e de uma circunstância específicas, além de prover o anseio para compreender melhor, conforme a sua experiência empírica, as vantagens das instituições e dos costumes dos mais diversos países.

Ao manter-se leal aos interesses e às perspectivas da sua própria tribo e do seu próprio clã – Hozany evita propositadamente o termo “comunidade” –, o nacionalista encontra a unidade orgânica dessas diversas nações e reconhece a paz que existirá entre elas. É o que lhe diferencia dos malfadados nacionalistas do passado, aqueles que, segundo os historiadores progressistas, causaram as duas Guerras Mundiais, pois o ceticismo moderado dessa virtude o faz ver que não só a sua própria nação tem méritos, mas o mesmo acontece com outros estados que podem ser ameaçados a qualquer momento pela expansão imperial dos grandes governos mundiais. A virtude do nacionalismo, portanto, seria essa “tensão gratificante” na qual a intensa lealdade entre sua nação e sua tribo resulta na mistura de ceticismo com empirismo e que lhe dá a plena consciência da diversidade de tradições, um contrapeso consistente contra o fanatismo do universal e uma apreciação moderada da diversidade de cada indivíduo.

É neste ponto que a aparente complementação entre as ideias de Lasch e Hozany terminam por completo. Apesar do seu brilhantismo conceitual e da sua engenhosa explicação histórica (mesmo que seja temperada com laivos de anti-cristianismo, em especial do lado católico, ao considerá-lo como uma ideologia imperial, quando não foi nada disso), o israelense desconhece por completo de que a sua virtude nacionalista, ao contrário da “virtude republicana” redescoberta em The True and Only Heaven, é também um resultado histórico do liberalismo que ele tanto ataca, pois também está contaminada pelo mesmo mito do progresso descrito no início deste artigo.

Esta inconsistência é típica de quem não quer reconhecer, especialmente no debate público, que os conservadores e os progressistas não passam de “irmãos siameses” que vivem numa bizarra “vastidão dos espelhos” a qual deturpa qualquer discussão mais profunda. O progresso se transformou, como bem descreveu o título da obra de Lasch, no único e verdadeiro paraíso, a única forma histórica encontrada por uma humanidade absolutamente incapaz de reconhecer o sentimento trágico da vida em suas ações e, com isso, não entender o que realmente significa perseverar em um mundo onde a única coisa sã a se fazer é ter a consciência dos seus limites.

Essa obsessão pelo ilimitado contaminou não só a conversação política, mas também a conversação cultural – como demonstra minuciosamente o escritor Bret Easton Ellis em White, um dos melhores lançamentos deste ano de 2019. Ellis é também um liberal-progressista, autor de romances inquietantes como Abaixo de Zero (1985) e Psicopata Americano (1991), que criticam com ironia a chamada Geração X, destruída pelo consumo desenfreado e pelas opiniões politicamente corretas que ocultam ações que nada têm de virtuosas em um mundo que já perdeu há muito tempo qualquer senso de comunidade ou lealdade.

Mesmo assim, talvez por ser antes de tudo um artista, ele consegue perceber, como poucos, a tirania do liberalismo e do mito do progresso no debate público, especialmente após a vitória de Donald Trump em 2016. A elite da qual ele faz parte se escondeu em uma bolha narcísica, baseada na crença de que o “povo” que apoiou o candidato do Partido Republicano simplesmente não entendia nada sobre o que é a verdadeira democracia. Ellis viu tudo isso com um distanciamento peculiar e notou que o resultado desse tipo de atitude seria catastrófico, uma vez que os liberais (e, por consequência, os conservadores) amputaram da cultura americana qualquer possibilidade de incluir na pauta tanto o contraditório como o paradoxal, tanto o fato de que se pode respeitar uma determinada instituição das artes e das letras, sabendo da sua importância histórica para o país onde se vive, como também admitir o detalhe perturbador de que essa mesma instituição prejudicou de forma subterrânea toda uma consciência nacional.

Essa ausência deliberada do contraditório e do paradoxo é a raiz dos males que afetam o progressismo. Eles ajudaram a petrificar, como se fosse uma gigantesca cicatriz, a polaridade entre liberais e conservadores, entre globalistas e nacionalistas – e entre as relações humanas dentro da própria família, presumivelmente a base de qualquer comunidade, de qualquer nacionalismo, de qualquer lealdade que seja de fato constante. Se Ellis vê que o liberalismo retirou as duas características que o tornavam únicos, em função de uma política identitária que corrói a imaginação artística – tudo por causa de um político que, cedo ou tarde, será passageiro no correr dos anos –, ele também insinua que o conservadorismo que apoia Trump e outros presidentes similares do nosso presente (entre eles, o nosso Jair Bolsonaro) é absolutamente incapaz de iniciar uma cura nesse tipo de discussão – culminando assim em uma militância absolutamente estúpida, infelizmente composta por intelectuais orgânicos que se comportam de acordo com uma “cooptação moral” das suas consciências individuais, pervertendo o que restou das suas virtudes.

Eis aqui a diferença suprema entre o “populismo conservador” defendido por Christopher Lasch e o “nacional populismo” elaborado por um Steve Bannon. O primeiro sabe que não se deve ver o mundo com filtros intelectualistas ou racionalistas – e sim com o “coração que vê”, com a “virtude republicana” que unificaria a mente, a emoção e a vontade, enquanto Bannon instrumentaliza a angústia do homem de bem e, pervertendo uma preocupação autêntica sobre o futuro de se viver neste mundo, deforma a tradição analisada em The True and Only Heaven com um neo-perenialismo influenciado por Julius Evola para instilar, na verdade, uma casta de jacobinos requentados que jamais se importaram com a aceitação do contraditório e do paradoxal em uma cultura que precisa mais do que nunca desses dois.

Não à toa que, no derradeiro parágrafo do seu livro, Lasch deixa muito claro qual é sua visão sobre o populismo – e profetiza como ele será transformado (para não dizer, pervertido) de acordo com as exigências pragmáticas de uma Nova Direita que então era apenas uma criança a dar seus primeiros passos:

A tradição populista não oferece nenhuma panaceia para todas as moléstias que afligem o mundo moderno. Contudo, faz as perguntas corretas, apesar de não dar um conjunto pronto de respostas. Ela criou pouco na trilha de uma economia da teoria política – e isto foi sua fraqueza mais evidente. Sua defesa está na produção de pequena escala e na descentralização política, mas essa tradição também não mostra como esses objetivos podem ser alcançados, em especial em uma economia moderna. Na ausência de uma clara teoria desenvolvimentista da produção, os populistas sempre foram presas fáceis das modas do dinheiro impresso e outras ilusões, assim como foram presas fáceis dos ressentimentos sociais que foram explorados de forma tão eficaz pela nova direita. Neste caso, um populismo dirigido para o século XXI teria pouca semelhança com essa nova direita ou com os movimentos populistas do passado. Mas encontraria a maioria da sua inspiração moral no radicalismo popular de outrora e, em geral, na crítica ampla do progresso, do iluminismo e da ambição ilimitada elaborada pelos moralistas cujas percepções foram moldadas pela visão de mundo dos produtores econômicos. O problema do “aumento indevido” gerou tanto uma forma peculiar de praticar a política como uma tradição idiossincrática de especulação moral que veio da experiência cotidiana (assim como das evidências de um grande fervor espiritual) e, portanto, é pouco provável que será passageiro.

Todavia, o “nacional populismo” de Steve Bannon (e de outros pensadores que entraram nessa onda apenas para ter um pouco do poder desta nova “submissão”) pretende ser o contrário do populismo (re)descoberto por Lasch – por ser justamente a panaceia que, conscientemente, criará novas moléstias para o nosso mundo.

O crescimento exponencial dessa atitude se deve a três fatores não suficientemente analisados pela elite intelectual (pois esta continua infectada pelo mito do progresso): a primeira é que ainda estamos dentro do centro de um fenômeno histórico que não foi articulado de forma adequada e, por isso, a nossa linguagem é limitada por conceitos históricos que tentamos usar ora por aproximação, ora por analogia – e dessa forma são insuficientes para entender com clareza a complexidade da situação (o exemplo mais gritante é o uso do “jacobinismo”); o segundo é, como bem percebeu Easton Ellis, a infantilidade psicológica com a qual tanto o conservadorismo como o liberalismo lidam com o contraditório e o paradoxal, sendo impossível para quem faz parte dessa bolha cognitiva entender algo aparentemente imprevisível como o surgimento de um Donald Trump (a mesma coisa ocorre no Brasil com a casta social-democrata obscurantista que ainda não aceitou a existência de Jair Bolsonaro); e o terceiro é que, somando a dificuldade de entender com a precisão da linguagem e a insistência de permanecer em uma constante adolescência, temos a radical incompreensão para quem é adepto do mito do progresso de que o populismo não seria uma tradição política viável em uma civilização dominada pelo relativismo e pela nostalgia de um mundo que, na cabeça de muitos, anda para trás.

Não se pode fazer muita coisa em relação aos dois últimos pontos, até porque estão fora do nosso controle, uma vez que são fatores que ocorrem essencialmente no domínio imprevisível da História. Mas podemos fazer algo a respeito do primeiro – o da linguagem adequada para se entender que raios está a acontecer conosco. Para isso, é fundamental retornarmos (e restaurarmos) à linguagem literária, em especial a da poesia. Aqui, a ajuda de C.S. Lewis será inestimável – e ele nos ajudará a abandonar imediatamente certos conceitos imprecisos, como os de comunidade, lealdade, tribo e clã.

Em um ensaio antológico intitulado “O Círculo Íntimo”, Lewis comenta que, em qualquer espécie de sociedade política, percebemos que existem “dois sistemas diferentes de hierarquia” de poder – um visível e outro completamente invisível a quem não perceber o seu código secreto.

O primeiro sistema pode ser registrado em um simples livrinho. Todos têm acesso a ele – e é algo constante e cristalino, no qual um general é sempre superior a um coronel, e um coronel, a um capitão. O outro sistema é uma espécie de “doutrina não-escrita”, uma “teia hierárquica” invisível (nos dizeres do historiador Niall Ferguson), não está impresso em lugar algum – e também não é uma sociedade secreta formalmente organizada com regras que serão conhecidas depois de alguém ter entrado nela. Lewis descreve com precisão os mecanismos psicológicos que fazem um sujeito ser uma espécie de “iniciado” nesta comunidade dentro de uma outra comunidade. Ele entra em um mundo de senhas, de expressões pré-fabricadas, de piadas que só quem faz parte daquele meio conseguirá entender. Começa a ter alguns privilégios que não teria em outro lugar. Ao mesmo tempo, não há admissões ou expulsões formais. Entra-se ali como se fosse algo “natural”.

Porém, não é nada disso. Temos aqui a “camarilha”, o “Círculo Íntimo” que, na verdade, criam falsas comunidades; também criam o tecido social como o conhecemos e o Estado Nacional que os cientistas políticos pensam existir de forma autônoma. É um Círculo que adentra nas redações dos jornais, nas universidades, nas igrejas, nos cafés e, atualmente, formatou-se também nas redes sociais, com seus grupos fechados de Facebook e correntes de Whats App.

A existência desses “círculos íntimos” não é intrinsecamente algo ruim, mas, como bem alerta Lewis, dá margem para que o ser humano comece a se comportar como um “canalha”, pois alimenta a impressão certeira que, já dentro da “panelinha”, ele seria um dos escolhidos que entenderiam melhor a sociedade onde vive. Contudo, pertencer a algum tipo desses círculos é um desejo que percebemos ser “uma das grandes e permanentes molas propulsoras da ação humana”.

E aqui está o seu perigo. Afinal, ficar fora desse mesmo círculo provocaria no pobre coitado um “desejo perverso” de se manter dentro da linha invisível que separa a turma do “nós” contra a do “eles” – e, “enquanto formos governados” por esse desejo, jamais teremos o que realmente queremos. Assim se inicia o esnobismo e o sectarismo que usam a exclusão não como algo acidental – e sim como a sua essência.

O que Christopher Lasch percebeu, sem entrar em contato explícito com a imagem de C.S. Lewis, é que o mito do progresso precisou de inúmeros “círculos íntimos” para impor a sua existência nas nossas vidas. A tradição populista da virtude republicana tentou, ao seu modo, romper com isso – mas logo surgiram os Steve Bannons que transformaram essa resistência em um novo “círculo íntimo”.

As comunidades analisadas em The True and Only Heaven são vinculadas não só pelo respeito ou pela lealdade (como quer Yoram Hazony), mas estão ligadas por algo muito mais além deste mundo provisório e, ao mesmo tempo, muito mais profundo – a esperança. É esta outra virtude que nos faz entender que a noção de comunidade é apenas uma forma permanente de descrever a philia entre os habitantes de uma outra pátria – a pátria do espírito.

Quando a amizade for destruída entre os seres humanos – algo que a política atual faz questão de provocar isso com uma habilidade quase metódica, junto com a corrupção da linguagem–, talvez sentiremos falta daquela época em que filosofávamos sobre a desgraça e o medo dos outros (como bons progressistas que somos, mesmo a contragosto). E então será o momento de cobrirmos nossos rostos com o véu da ignorância e chorar para sempre, perdendo a esperança de que o único “círculo íntimo” que vale a pena é o da nau dos esquecidos – aqueles que, apesar dos seus defeitos, ainda nos fazem ver subitamente, num piscar de olhos, a glória de toda a criação.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP).

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