O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, que tem repercutido até mesmo na imprensa internacional, pode se tornar ainda mais extremo, dependendo do resultado das eleições presidenciais deste domingo (2). Com a aposentadoria de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber – que completam 75 anos durante o próximo mandato – o chefe do Executivo terá a tarefa de nomear, pelo menos, dois novos ministros para a Corte, já em 2023. Isso significa um Supremo um pouco mais à direita (se ainda não mais conservador), em caso de reeleição de Bolsonaro – cuja promessa é indicar dois nomes que “jamais serão favoráveis ao aborto” – ou ainda mais progressista, caso Lula vença o pleito.
Embora os dois ministros na iminência da aposentadoria tenham sido indicados por presidentes do PT (Rosa Weber foi indicação de Dilma Rousseff, em 2011, e Ricardo Lewandowski, de Lula, em 2006), Lewandowski, por exemplo, votou contra o aborto em caso de anencefalia, em 2012. Na época, ele afirmou que qualquer decisão envolvendo um tema de tamanha relevância e complexidade deveria ser precedida de amplo debate público e submetida ao crivo do Congresso Nacional. De acordo com especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, no entanto, a tendência é que novas nomeações da esquerda ao STF tenham posicionamento menos conservador em pautas caras à população, como aborto, ideologia de gênero e descriminalização de drogas.
“Temos uma Suprema Corte extremamente politizada, marcada pelo ativismo judicial, que deveria se restringir ao que é levado a ela em termos de constitucionalidade ou não das leis. Entretanto, a Corte abre inquéritos, promove investigações que fogem de sua alçada, é autora, investigadora e juíza da causa. Isso tudo está saltando aos olhos, não tem como esconder a militância do STF. Até o New York Times, que é um jornal progressista, reconhece isso”, contextualiza o advogado civilista e previdenciário Afonso Oliveira, membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).
“Suponhamos que o presidente Bolsonaro seja reconduzido, ele terá a oportunidade de indicar mais dois juízes técnicos, e o STF terá quatro juízes com um perfil mais conservador, mais à direita, julgando conforme a lei e a Constituição. Apesar de não formar maioria [uma vez que são 11 ministros no total], já teremos um ponto de equilíbrio maior, porque hoje o Supremo é majoritariamente progressista e político, com nove indicados por presidentes de esquerda e ideologia marxista”, analisa Oliveira. “Suponhamos que Lula vença, os dois próximos indicados seguirão a mesma linha dos que lá já estão há muito tempo. E creio que teremos consolidado a intervenção do Judiciário nos demais poderes”, prevê o advogado.
O professor de Filosofia do Direito André Gonçalves Fernandes, que é pós-doutor em Antropologia Filosófica e em Filosofia e História da Educação, recorda como nomeações mais conservadoras à Suprema Corte dos Estados Unidos resultaram na recente reversão da decisão Roe vs. Wade, que legalizou o aborto em todo o país em 1973. “Vimos isso com Trump, na nomeação de Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e Amy Cony Barrett, que tornou possível a alteração de Roe vs. Wade, algo que eu nunca imaginei que seria revertido”, afirma. “Se formada por pessoas sérias, essas Cortes têm a sensibilidade de perceber qual o sentir do povo e a retidão de observar o clima, a situação, ainda que decidam de maneira contrária. Então, em tese, se ganhar [para a Presidência] o candidato A ou B, altera, sim [esse cenário]”, completa.
Aborto
Entre as pautas que tramitam atualmente no STF, está a descriminalização do aborto até três meses de gestação, cuja relatora é a ministra Rosa Weber. O pedido foi enviado à Corte pelo PSOL, em 2017. Atualmente, o aborto é tipificado como crime pelo Código Penal, com pena de até três anos para quem aborta e de até quatro para quem ajuda no procedimento. A punição não é aplicada em casos de anencefalia, estupro ou risco à vida da mãe.
Se de um lado, Bolsonaro sempre deixou claro seu posicionamento contrário ao aborto, em abril deste ano, Lula declarou que “todo mundo deveria ter direito” a ele, posicionando-se a favor da legalização. “Aqui no Brasil não faz (aborto) porque é proibido, quando, na verdade, deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha. Eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro. O que não dá é a lei exigir que ela precisa cuidar”, afirmou.
No mês seguinte à declaração do petista, uma pesquisa realizada pelo PoderData mostrou qual o sentimento do brasileiro em relação ao tema: 59% da população do país é contra a liberação do aborto no Brasil, taxa 4% maior do que a registrada no primeiro mês do ano. A parcela de cidadãos que afirmou ser favorável à liberação do aborto no país foi de 24%, mesmo percentual registrado na pesquisa anterior. Os que não sabiam somaram 17%.
"Essa eleição é de grande importância, talvez a mais importante dos últimos anos da nossa história republicana. Não estamos escolhendo o próximo presidente, mas qual será nosso regime, se vamos dar uma guinada à esquerda e ter um regime socialista, como alguns países aderiram: o Chile, com a proposta de nova Constituição, a Argentina, que vai bater uma inflação de mais de 100% ao ano, a Colômbia, que aboliu forças policias e legalizou as drogas”, acrescenta Afonso Oliveira. Para o advogado, duas indicações mais conservadoras podem ajudar a alcançar um “equilíbrio maior no debate e na tomada de decisão” em pautas que estão no STF, “como aborto, descriminalização das drogas, ideologia de gênero, família e educação”.
Leis abertas a maior interpretação
Fernandes alerta que, se antigamente, a função de julgar se limitava a uma aplicação pura e simples da lei escrita ao caso concreto, nos últimos 20 anos as leis trazem cláusulas mais abertas, permitindo a discricionaridade do juiz [liberdade de optar por uma dentre várias soluções válidas perante o direito]. “Isso é ótimo. Mas um problema da Filosofia Analítica entrou no Direito e, com isso, passou-se a ressignificar não só essas cláusulas abertas, mas conceitos jurídicos centrados em uma tradição de dois mil anos a partir do zero. Essa tentação atinge um juiz de primeira instância, mas muito mais uma Suprema Corte. Nesse caldo, a tentação do juiz de ‘reescrever a Constituição’, sem poder constituinte, é enorme”, alerta o professor.
Com base nas “últimas votações do Supremo em assuntos de interesse nacional”, em que “ficam só os dois nomeados pelo atual presidente [os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça]", Fernandes acredita em uma diminuição “na margem de risco de se reescrever a Constituição”, em caso de reeleição e de nomeação de mais dois ministros de mesmo perfil. “Vai demandar uma maioria mais qualificada, porque hoje é goleada. Teoricamente, dificulta o ativismo judicial do STF, que terá mais ministros contrários a essa prática, não só autoritária, mas abusiva e antidemocrática”, defende.
Uma virada no posicionamento do Supremo, como a que foi vista nos EUA, porém, “é uma construção”, pondera Afonso Oliveira. “Em um primeiro mandato se nomeiam dois ministros, no segundo mais dois. Daqui 12 ou 16 anos, tendo continuidade esse viés de direita na Presidência, haverá a oportunidade de nomear outros, porque há mais ministros que completam 75 anos nos próximos anos”, projeta.
“O modus operandi na política, como na vida em comunidade, é o avanço em alguns assuntos e retrocesso em outros. Tudo é um processo. Só há alterações bruscas em rupturas institucionais, como golpes de estado ou revoluções. O progresso contínuo positivista é um mito, em condições normais de temperatura e pressão é tudo um processo”, acrescenta André Gonçalves Fernandes.
Modelo semelhante ao americano
Especialista em Direito Constitucional e Civil, o advogado Miguel da Costa Carvalho Vidigal é crítico ao sistema de nomeação de ministros para o STF, “quase cópia” do sistema norte-americano. No Brasil, de acordo com o artigo 101 da Constituição, “o Supremo Tribunal Federal compõe-se de 11 Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. A nomeação é feita pelo Presidente da República, e a escolha precisa ser aprovada por maioria absoluta do Senado Federal. O mandato dura até o ministro completar 75 anos de idade.
“Isso não é muito comum em outros países que são exemplos no mundo do Direito, como Itália, França e Alemanha por exemplo. Essa forma de escolha tem se demonstrado inaplicável no país. No próprio EUA se mostra complicada, vide essa decisão do aborto modificada, que datava de 1973. Veja quanto tempo levou para o entendimento da Suprema Corte para corrigir um erro que tinha feito e ainda não corrigiu por completo”, exemplifica.
“A vitaliciedade não fez bem para a Justiça brasileira, some-se a isso o ativismo judicial cada vez mais forte no país, temos o STF hoje, umas das instituições que é das menos admiradas pelo público”, argumenta.
Vidigal acredita que modelos como alguns europeus, com mandato por tempo limitado, sem possibilidade de reeleição, e composição mais técnica que política, proporcionariam uma Corte com “atualização mais real para o momento da democracia”. “Não dá para ficar só na mão do presidente escolher, com a ratificação do Senado – no Brasil, só uma vez não se ratificou [desde a criação do STF em 1890, apenas cinco indicações do presidente foram derrubadas pelos senadores, todas em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto]. Até porque no sistema eleitoral brasileiro, se você perguntar a 3 milhões de brasileiros se votaram em quem queriam, 2997 milhões dirão 'votei no menos pior’”, critica.
“Se fossem aplicadas exigências mínimas para cargo de ministro da Suprema Corte, seria mais benéfico para o país. Também seria importante haver impedimentos, como a pessoa não ter alçado cargo de ministro nos dez últimos anos, porque acaba se fazendo política nesse cargo, e isso o ajuda a ser aprovado. A pessoa não é escolhida por capacidade técnica”, afirma Vidigal. O ministro do STF Alexandre de Moraes, por exemplo, foi ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Temer, em 2016.
Mais impactos das eleições
O advogado Afonso Oliveira recorda que, além das indicações ao STF, o presidente eleito também tem poder de nomear desembargadores e juízes no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e nos Tribunais Regionais Federais, que são a segunda instância da Justiça Federal brasileira. “A corte que mais impacta é o STF, mas as outras que formam os graus recursais do poder judiciário e também terão grande impacto”, lembra.
Na opinião de Oliveira, as eleições deste fim de semana também podem resultar em um “Senado mais equilibrado”, com base mais forte para o governo e o “desengavetamento de dezenas de denúncias contra ministros do STF”. “O primeiro ministro que vier a ser julgado pelo Senado, ainda que não se confirme seu impeachment, terá recebido o recado que o Senado está observando e determina os limites constitucionais para a atuação desses ministros. Só o fato de abrir processos assim é uma sinalização clara, republicana, de que o Judiciário pode muito, mas não podem tudo”, reforça.