O jovem iraquiano entrou, de cadeira de rodas, em uma sala de exames improvisada no melhor hospital público da capital e usou os cotovelos para subir na cama. Desatando uma série de amarras, retirou a prótese que usava na perna, um tanto gasta, para que o Dr. Munjed al-Muderis pudesse examinar o que restara de sua perna.
O ortopedista iraquiano naturalizado australiano voltava à terra natal pela primeira vez desde que fugira, em 1999, depois de receber a ordem de cortar o lóbulo da orelha dos militares desertores. Estava ali por causa de um pedido pessoal do primeiro-ministro, Haider al-Abadi, que tem várias companhias de soldados desmembrados devido à batalha cruel e incessante contra o Estado Islâmico.
Cerca de 200 desses mutilados foram convocados para a triagem, a ser realizada ao longo de dois dias. E enquanto os examinava, o médico de 45 anos nem se apoiava na mesa de trabalho, quanto mais se sentar. A certa altura, quando lhe perguntei se aquele era o maior número de amputados que via em um mesmo dia, ele respondeu:
"É o maior número de amputados que qualquer um já viu num dia só."
Ele procurava candidatos para a osteointegração, procedimento cirúrgico que foge da técnica centenária de encaixar um soquete sobre o coto. No novo método, o médico insere hastes de titânio no que restou do osso e os conecta a uma prótese avançada, criando um membro mais dinâmico.
Al-Muderis foi um dos pioneiros do uso da técnica com braços e pernas, originada a partir do implante dentário, operando dezenas de veteranos das guerras do Iraque e Afeganistão em hospitais na Austrália, Reino Unido, Camboja, Alemanha, Holanda e Líbano.
"É muito importante que voltem a se sentir normais", disse o primeiro-ministro ao médico, referindo-se as soldados feridos. Mais tarde, al-Abadi disse que al-Muderis "é a prova da resiliência dos iraquianos".
Al-Muderis, descendente de uma das nove famílias fundadoras de Bagdá, fugiu de um regime brutal, mas se deparou com o que descreve de "sistema de asilo desumanizador" na Austrália. Hoje vive em uma mansão à beira-mar em Sydney e vai para o trabalho, em um hospital particular, dirigindo um Aston Martin, onde faz cirurgias comuns de prótese de quadril e joelho, além de osteointegração.
Para mim, que cresci na Austrália como membro de uma família de imigrantes que durante 18 gerações viveu no Iraque, al-Muderis representa uma mistura fascinante de culturas e línguas, trauma e recuperação, ciência e religião. Eu o acompanhei na visita de três dias que fez a Bagdá, em maio, para examinar as feridas de um país que eu só conhecia à distância, e também para ver se um cirurgião realmente poderia estancar seu sangramento.
Uma jornada tortuosa
A família de al-Muderis, rica e sunita, era considerada "sadeh", ou seja, descendente direta do profeta Maomé. Por isso, o jovem Munjed cresceu rodeado de empregados e choferes.
Aos doze anos, depois de ver "O Exterminador do Futuro", ficou fascinado com o conceito de braços e pernas robóticos. Decidiu estudar Medicina na Universidade de Bagdá, mas a primeira Guerra do Golfo permitiu que se formasse só em 1996. Casou-se com uma colega de classe e teve um filho chamado Ahmed, mas a união não demorou a ser anulada.
Al-Muderis conta que fazia o primeiro ano de residência no Centro Médico Saddam Hussein, em 1999, quando chegou a polícia militar escoltando uma fila de desertores para dentro de uma sala de cirurgia imunda. Os oficiais mandaram os médicos cortarem os lóbulos das orelhas dos jovens, citando o decreto 115/1994 – e quando o cirurgião chefe se recusou a obedecer, falando do juramento de Hipócrates, foi levado para o estacionamento e morto a tiros ali mesmo.
"Se alguém mais for da mesma opinião, que se manifeste; se não, continuem trabalhando", disse o oficial.
Na época com 27 anos, al-Muderis disse que conseguiu sair de fininho e se esconder no vestiário feminino. A cada som de vozes e/ou passos que se aproximava, gelava. Após cinco horas escondido, decidiu que era seguro sair.
Menos de uma semana depois, sua família conseguiu levá-lo para a Jordânia. De lá, foi para a Malásia e depois para a Indonésia, onde embarcou em um pesqueiro com destino à Austrália. E descreve como "terríveis" as 36 horas de viagem, que passou cuidando das grávidas e passageiros mais velhos e mais suscetíveis na massa humana comprimida na embarcação, em meio a fezes, urina e vômito.
Em sua autobiografia, "Walking Free", escrita por Patrick Weaver, al-Muderis narra as péssimas condições, a violência emocional e racial e a crueldade com as crianças enquanto permaneceu no centro de detenção. E relembra que um agente da imigração chegou a lhe dizer que "os australianos não o queriam ali".
No entanto, conseguiu asilo em agosto de 2000. Mudou-se para Melbourne e se casou com uma refugiada iraquiana que conheceu no barco. Em questão de um ano, teve seu diploma de médico reconhecido. Passou a trabalhar em um pronto-socorro, com uma carga horária extremamente desgastante, que acabou sendo responsável por seu divórcio, alguns anos depois do nascimento dos dois filhos, Adam e Dean.
Mais tarde, casou-se com uma médica russa, Irina, com quem teve duas filhas: Sophia, de oito anos, e Amelia, de um. Em 2009, mudou-se para Berlim, na Alemanha, para estudar a técnica de osteointegração.
Entre seus pacientes está Michael Swain, um soldado britânico que perdeu as duas pernas para uma bomba talibã, no Afeganistão, e hoje é ciclista de longa distância.
"Para falar a verdade, ele é uma figura. Engraçado e meio bobo até. Como nós, soldados", diz Swain a respeito do médico.
Reabilitando o Iraque
Quando al-Muderis recebeu o telefonema do primeiro-ministro iraquiano, em fevereiro, brincou dizendo que era um esquema para matá-lo por ter fugido vinte anos antes, mas aceitou o convite por causa de uma curiosidade incontrolável e também um remoto senso de dever.
Al-Abadi explicou que seu objetivo era colocar os soldados amputados de volta no campo de batalha. "Psicologicamente, é muito importante para eles. Se estiverem em forma, podem voltar a lutar", afirmou a al-Muderis.
O médico deve voltar ainda este mês a Bagdá para operar pelo menos 50 pacientes. Na visita de maio, ele e dois assistentes australianos fizeram os exames e reuniram chapas de raio-x, em busca de candidatos à cirurgia.
Al-Muderis é secular e, às vezes, usa a eloquência para fazer da religião seu saco de pancadas. De volta a Sydney, ele começa o dia no centro cirúrgico proclamando em árabe: "Que Deus os amaldiçoe!", frase que reflete a opinião de que a medicina se baseia na habilidade e não na fé.
Ele conta que, na Austrália, já teve colegas ortopedistas que o chamaram de terrorista; além disso, ganhou um processo de difamação contra um ex-paciente que criou uma campanha on-line para acusá-lo de negligência após uma artroscopia de quadril, em 2010.
Em Bagdá, entretanto, foi recebido com herói, dando uma palestra para uma verdadeira multidão em um hotel, além da audiência com o primeiro-ministro.
Al-Muderis conta que já tinha visitado a sede do governo antes, tendo sido uma das crianças a participar de uma cerimônia para Saddam Hussein. Depois de tantos anos, ele caminhou pelas mesmas salas, recheadas de objetos de mármore e candelabros para ver al-Abadi, que quis saber tudo sobre a segurança e os detalhes da osteointegração.
Ao deixarmos o palácio, cujos jardins se mostravam impecáveis apesar do calor intenso, al-Muderis fechou os olhos por um momento, mas logo em seguida surgiu o utilitário blindado que nos levou de volta ao hospital, onde ele ficou até as onze da noite.